edição 3
| dezembro de 2005
um por um É grande. É de uma grandeza imensa é de uma imensidão gravíssima é de uma grandeza definitiva algo irreversível. É grande como continentes como áfricas inteiras como as cores maiores nos mapas como o oriente extremo fica longe é de uma distância crua e canônica. É
grande quase impensável aqui. É
também gelado. É também daquele frio desconsolo que vem colado à amplitude
murcha das solidões à concretude aguda das solidões. É frio de paisagem
onde os brancos imorredouros vencem onde se estremece no espanto de cada
passo (movimento) onde o abandono é tamanho que se fica que se prefere
ficar imóvel mesmo imóvel completamente com medo dos gestos significarem
um demais (cena de No?) pois sejam mesmo os menores parecem perigosíssimos
os gestos adquirem dimensões imprevisíveis sobre este pano de fundo. E
pode parecer sacrifício pode parecer mortificação flagelo engano imolação.
Aqui. É frio de pólo é frio de cume nevado é frio que ameaça as
extremidades do seu corpo põe em perigo cartilagens líquidos medulares
sigilos gomos e toma até o caroço. É
frio máximo aqui. E
é também quente da quentura das febres de graus elevadíssimos de
assustadores suores é inferno com o fogo dessagrado infinito lambendo
oscilando e mesmo se divertindo (cínico?). É calor de atacamas são saaras
são chamas num balé desguarnecido de senso que avançam deixando cinzas é
incontrolável. É calor de sede implacável é a crônica completa do objeto
se deformando ao sol do meio-dia eterno perpétuo desbotamento em
definitivo a se desmanchar em capítulos longuíssimos em detalhes
intermináveis e ainda adendos. É
calor de um desespero aqui. Aqui
os meus olhos escorrem meus olhos choram-se a si porque é escuro de adaga
e triste. É também um silêncio conforme conformado é ausência de sons
expressivos aquilo que faz ouvidos escutarem uma melodia flébil e
cambaleante uma melodia fosca e toda desprotegida nua mesmo tosca e
risível. Nenhum respirar se ouve aqui. Só o barulho da calha o barulho
remoto de um cachorro longe só a água nos canos só o relógio da
cozinha. Aqui
é a minha miséria. É o meu palco e o monólogo que decoro e desaprendo. É a
minha cara no vidro. É a minha roupa suja. Aqui é a solidão do cavalo na confusão da batalha sem seu cavaleiro, o destino da rolha daquela garrafa vazia dois dias depois da festa, a aflição do rato ao sair da toca e neva por todo o mundo e ele vê a neve implacável por tudo e não sabe o que terá para comer. A solidão as fotos de quem nunca mais existe e de quem ninguém mais lembra o nome e lá está naquela foto do álbum capa aveludada o rosto sorrindo eterno na pose destinada a um sempre. O pianista tocando no teatro de aluguel caríssimo onde só três cabeças a assistir o scherzo e a perfeição do staccato.
Aqui
é a minha cama. A
minha cama é grande é desertíssima é minguante. Tem a grandeza que eu
disse tem o frio que eu disse tem exatamente aquele (este) calor que eu
quis dizer. Aqui é a minha história do corpo - páginas onde o meu prazer
oco e insípido feito só com as mãos. Aqui a minha história do espírito
páginas rasas (serão amassadas) registro de gritos invisíveis que não
inauguram discurso nem próximos parágrafos e nem sequer um travessão. O
despropósito dos espinhos. Aqui é a minha cama. É um espaço que desafia as
leis da geometria é a equação complicadíssima que acaba dando sempre
apenas um. Onde toda noite a mesma noite. A geografia recomeça o canto a
capela se repete o relógio insiste e evidencia a eternidade dos segundos.
Arena onde se depõe as armas os desejos de emergência inútil.
E eu cumpro a instância do iniciado que encontra segredos na excrescência aqui eu cumpro a prática de uma ressurreição: a cada noite eu trago um punhado de esmeraldas dálias ramos e orvalho, saldo melhor do dia, pra morrer de uma lenta morte morrida - bem aqui.
Luci Collin (Curitiba, 1964). Graduada em Piano, Letras e Percussão. Doutora em Letras. Nove livros publicados. Recebeu premiações em concursos de literatura no Brasil e nos EUA. Representou o Brasil no Projeto Literário da EXPO 2000 em Hannover. Participa de antologias nacionais e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai e Argentina) e tem artigos e traduções publicados em diversos jornais e revistas. Mora em Curitiba e é Professora de Literaturas de Língua Inglesa e de Tradução Literária na UFPR.
viver cansa
Estou
cansada de acordar todos os dias ouvindo o despertador tocar. Cansada de
ver a lua cheia iluminando o meu quarto à noite e deitar sozinha para
dormir. Cansada de não poder fazer nada além do que eu já faço. Cansada de
marcar encontros comigo mesma. Cansada de me sentir um peixe beta num
aquário hexagonal. Cansada de pedir uma pizza gigante e ganhar só um grão
de orégano. Cansada dessa solidão que vira carência, que vira expectativa,
que vira dependência, que vira solidão de novo. Cansada da dorzinha de
cabeça que tem me acompanhado como se fosse o sexto dedo da minha mão
direita. Cansada do mau humor dos outros. Cansada do meu mau humor também.
Cansada de ir sempre aos mesmos lugares, fazer as mesmas coisas e me
desapontar com as mesmas pessoas. Cansada de ter um porta-retrato vazio.
Cansada de aparentar ser uma mulher bem resolvida. Cansada dessa solidão
que às vezes vira saudade de quem nem conheço e outras vezes vira vontade
de ser uma escritora suicida. Estou tão cansada, que não sei mais que dia
é hoje, porque não faz diferença. Qualquer que seja o dia, o despertador
vai tocar e vai recomeçar essa rotina que não tem nem sombras, porque não
tem luz. Pois é, estou sozinha. Sem ninguém, sem sal, sem assunto e quase
sem vida. Lavei com água o que estava colorido com gouache. Ficou tudo
preto e branco. Mais preto do que branco. Mais triste do que feliz. Mais
vontade de chorar do que de sorrir. Ficou tudo tão frágil, que não resiste
nem a um peteleco.
Márcia do Valle é carioca, escritora e vive procurando por si mesma. Já conseguiu encontrar suas mãos, seus braços, suas pernas, mas seu sentido continua escondido. Os pedaços de si mesma que já foram achados, podem ser lidos no seu primeiro livro, o romance 180 Graus (Editora Marco Zero), e em seu blogue, Solta No Mundo.
quinta-feira
Era
uma das primeiras a chegar. Toda quinta-feira, sempre às 19h, sentava
à mesma mesa. Bebia somente água mineral gasosa. Carregava um lenço
na bolsa, com o qual enxugava o suor do rosto afogueado pelos rodopios
e passos dos diversos ritmos. Um leque preto e dourado era agitado
freneticamente, entre um parceiro e outro, enquanto conversava com
as vizinhas de mesa bebendo pequenos goles da água. Era exímia dançarina
e funcionária pública aposentada. Seu corpo (aos sessenta e cinco
anos não confessados) ainda atraente e de uma agilidade não condizente
com a idade e as dores que sentia nas pernas (menos quando dançava).
O rosto mantinha um certo ar juvenil, apesar das rugas e vincos disfarçados
pela maquiagem e o verde olhar febril. Os vestidos eram sempre decotados,
brilhantes, bregas. Os seios rosados e flácidos (de filhos e alguns
pecados), dentro do sutiã de bojo duro (maravilhas da modernidade!),
arfavam entre o decote e o pescoço, onde veias latejavam excitadas
com a música e o abraço dos homens. Seu hálito (dropes de menta) e
seu sorriso branco (clareamento feito após ter abandonado o cigarro,
quatro anos atrás) eram exibidos a qualquer um que a convidasse para
dançar. E Irene dançava com todos... Já
namorara muitos parceiros de dança. Não discriminava cor, credo ou
idade. Há dez anos, desde o divórcio, freqüentava bailes e academias
de dança de salão para aperfeiçoar cada vez mais seu bailado. Os namoros
nunca duravam mais que alguns meses. O último tinha sido um mulato
alto, magro, dez anos mais novo que ela, sargento-bombeiro e vendedor
de planos de saúde nas horas vagas, dono de uma voz linda e de um
pau avantajado. Era casado, mas visitava Irene todos os domingos de
manhã após deixar a mulher na porta de um templo evangélico. Trepavam
durante meia hora, bebiam suco de acerola, comiam bolo de chocolate,
depois ele partia. Foi assim por quase três meses. Numa quinta-feira
ele disse que não poderiam continuar, que não era justo com a mulher,
coitada... Não apareceu no baile da semana seguinte, mas na outra
Irene o viu dançando com uma loura. Nada parecia abalar Irene. Ninguém
jamais percebeu qualquer tipo de ressentimento. Quando o baile acabava, à meia-noite, ela pegava uma van de volta a casa (quarto e sala num conjunto habitacional). Despia as sandálias altas, o vestido e o sorriso, trancava a porta do quarto (hábito que criara durante o casamento, assim que os gêmeos, hoje casados, completaram seis anos), acendia a luz azul do abajur (recomendação de uma prima esotérica), massageava os dedos dos pés, rezava um pai-nosso, enrolava um terço no pulso direito e dormia. Numa quinta-feira, Irene não apareceu. Na outra também não. Uma das "meninas" (assim Irene se referia às dançarinas) decidiu ir até sua casa. Soube, pela faxineira do prédio, que Irene morrera na madrugada do último baile, mas seu corpo só fora encontrado no sábado quando alguns vizinhos reclamaram do mau cheiro que invadia o corredor. O síndico arrombou as portas e encontrou Irene deitada, roxa, vestindo uma camisola de malha amarela, os olhos - borrados de rímel - arregalados, uma das mãos sobre a cabeça, a outra segurando o terço. Foi o coração, disse a faxineira. Todas as "meninas" concordaram, quando souberam.
Márcia Leite, carioca do mundo, empresária do ramo de retiradas estratégicas, tecelã de delírios e tapetes voadores para valquírias pós-modernas, editora do informativo literário "Deleite", atual vice-presidente da Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro, idealizadora de "Todas Elas e Alguns Deles" - evento literário APPERJ 2005, foco na voz feminina da poesia contemporânea. Teve sua poesia criticada por Maria Aparecida Fontes, em "Babel: Voz, Atopia e Figuras de Identidade", na antologia "Além do Cânone - vozes femininas cariocas estreantes na poesia dos anos 90", organizada por Helena Parente Cunha, editora Tempo Brasileiro. Publicou Curtos e Definitivos, poesia (Rio de Janeiro: Oficina Editores, 2000). No prelo, Via Versos.
rotina Era quase sempre madrugada quando, trôpego, retornava adivinhando caminhos e estrelas. A bem da verdade, perdia-se, às vezes. Já batera em porta errada, dormira em banco de praça, acordara na calçada abraçado ao cachorro do vizinho. Mas, quase sempre, chegava são e salvo. Subia as escadas, abria a porta sem ruído, tirava os sapatos e entrava, pé ante pé, na casa adormecida. Em silêncio. Para não despertar a solidão.
Márcia Maia (Recife/PE) é médica. Tem poemas publicados na Revista Poesia Sempre nº 15, da Fundação Biblioteca Nacional (novembro de 2001). Em 2002, seu livro Espelhos foi premiado no 3º Concurso Blocos de Poesia. Participou da Antologia Poetrix (2002), da Antologia Escritas (2004), do Livro da Tribo (2004 e 2005), da antologia Poesia do Nascer, editada em Lisboa, Portugal (2005). Foi incluída na antologia Pernambuco, terra da poesia: um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI (2005). Publicou Espelhos (2003), Um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas (2004) e Em queda livre (2005). Escreve em revistas e sites da internet. Edita os blogues Mudança de Ventos e Tábua de Marés.
o gato azul
Começou
na escola. As crianças que eu não gostava eram a maioria. De quem
eu gostava mesmo? Ah, eu deixava um garoto brincar com o gato azul
de borracha. Ninguém gostava do garoto. Primeiro, porque era preto.
E depois porque levava muitas broncas das tias. Às vezes ele aparecia
com seu sorriso fácil e seus modos gentis, era bom de brincar. Até
que um dia ele não veio. E nem no outro, e no outro e no outro. Então
brincávamos eu e o gato, que se chamava gato azul mesmo, todos os
dias, embaixo da árvore mais afastada do pátio. Era um pátio com diversas
árvores, muitos brinquedos, e eu era responsável pelo gato. Eu não
pedia o seu amor. Eu o alimentava com a areia do pátio e o amava,
simplesmente. Juntos viajávamos e conversávamos sobre o que queríamos.
Era bem mais legal que as crianças e eu preferia estar sozinha com
ele. Acontece
que a mãe verdadeira do gato azul era uma garotinha chata que nada
entendia de amar gatos. Quando deu de passar por lá, me viu com o
gato azul no colo. E brigou e gritou e disse olha você nunca mais
brinque com os meus brinquedos sua "ladrona"! Arrancou-o de mim com
raiva e unhas grandes deixando um vazio insubstituível. Senti-me tão
sozinha que permaneci imóvel até o final do recreio. No dia seguinte
a garota tinha jogado o gato azul de novo na areia, ela realmente
não entendia nada de amar gatos. Eu o resgatei e o levei de volta
ao nosso lugar preferido, onde ele gostava de ficar de verdade. Desta
vez me escondi atrás da árvore em silêncio. O tempo passou, as escolas mudaram, mas eu não. Outros recreios vieram, era melhor estar sozinha. Quando os peitos cresceram, os meninos se aproximaram. Alguns tão bobos, era melhor estar sozinha. Vieram os empregos, a faculdade, os amores, poucos amigos. Um pedido de casamento. Achei que ele não me deixaria ficar sozinha na última árvore do pátio. Morei no branco, no gelo. Gostei de estar sozinha porque ficava ainda mais feliz quando, finalmente, alguém aparecia. Troquei o casamento por cds de jazz e livros, além de garrafas de vinho Malbec. A árvore virou um apê pequeno, porém aconchegante. O telefone toca muito e a secretária atende. É melhor estar com a solidão, uma senhora paciente e muito distinta. Mas sabe, sinto mesmo é saudade do gato azul.
Mônica Oliveira. Paulistana, jornalista. Trabalhou para a rádio Patrulha FM, onde fazia entrevistas com políticos, e para jornais e revistas de todos os naipes, entre eles o Diário do Grande ABC e o Agora São Paulo, além de escrever para áreas técnicas e revistas femininas sobre moda, beleza, comportamento e papel da mulher na sociedade moderna. Morou também na Nova Zelândia, onde trabalhou para o Jornal The Ensign. Edita o blogue Eu Sou Maria.
abandonos será? Mais
uma vez sozinha. Jogada no sofá, maquiagem borrada de lágrimas, rodeada de
bebidas e bitucas de cigarro. Televisão no último volume, rádio ligado,
relógio despertando e campainha tocando. Ele chegou? Não, o
jornal. declaro
que: Respiro
meu desejo. Não sei ser meio termo. Vejo aquilo que não existe. Sinto
aquilo que quero. Meu pensamento me persegue. Tudo me atordoa. Me cobro,
me dobro, machuco e me mato. Mesmo assim, continuo esperando por alguém
que não vem. verdade
Pessoas
que amam sem correspondência, têm músicas para sofrer mais ainda. Feitas
para isso, especialmente para chorar, elocubrar e curtir a solidão. Elas
acreditam nisso piamente. Pessoas apaixonadas colocam música para o outro
ouvir e dizem: essa dor é minha. ele
O
silêncio gritava dentro dela. Cansada das palavras, todas gastas, quando
ele foi embora, não derramou uma lágrima. Ficou ali, sentada, sem sentir
nada. O vazio preenchia tudo. Em suas veias já corria a certeza de que a
cicatriz já estava pronta, antes mesmo da ferida ser feita. Ela o amava
solitariamente e ainda continua a amá-lo, mesmo depois do monóxido de
carbono que inalou ao esperar ele voltar. Sim, ali, sentadinha no carro,
dentro da garagem. assim
na terra como no céu Ela não pensou, entrou em casa direto pro banheiro. Abriu o armário e procurou desesperadamente pela lâmina de barbear mais afiada. Olhou uma por uma. Analisou-as de maneira metódica. Cortou-se de maneira singela. De um pulso ao outro. Agora ela não sofre mais por ele. Agora ele não tem mais dó dela. Mais fácil levar flores ao seu túmulo, do que amá-la em vida. Enfim só. Como sempre.
Rachel Helena Moumdjian é cineasta e produtora. Escritora nas horas vagas. Paulistana, sonha em morar no Rio de Janeiro. Tem prazer em ser elegante na dor, intensa no amor e cortante nas palavras.
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