edição 3
| dezembro de 2005
carreira
solo
espelho baço Estava sentado ao lado do velho, um desconhecido que, de tão visto e acompanhado, me era quase um velho conhecido. Acabara de acordar no assento em que tinha passado a noite, vigiando, por assim dizer, o ser imóvel. Olhava a cama de ferro, alta e branca, coberta por panos que ontem haviam sido lençóis limpos, o pijama branco envolvendo-o por debaixo. Éramos três: eu, ele e a vara que sustentava a bolsa de soro, presença das maiores, de onde lhe pingava uma última esperança de vida. Dentro do pijama, o homem seco e branco era um carregador de farinha. Lá fora onze horas, sol alto e forte, nascido em manhã absurdamente azul. O quarto branco na penumbra. Mal se ouvia o respirar. Por cima dos lençóis, as mãos nodosas, ossos recobertos por pele cor de cinza, ainda assim mãos que foram bonitas. O rosto enrugado, a barba rala e grisalha que brotava por entre as rugas, fruta passa. A cabeça, do perfil que a via, um objeto anguloso, pedaço de madeira esculpido a facão, faraó embalsamado, quis dizer Múmia, achei ofensivo. Mas era assim. A porta se abre lentamente, como se quem a estivesse abrindo cometesse estudada mas necessária imprudência. Nada se via além de finas pontas de dedos finos contornando a lombada da porta larga, mão de um pardal que se firma num galho. O rosto em seguida, depois a silhueta esbelta, um vestido que pareceu preto por ser igualmente silhueta: uma mulher. Trazia alguma coisa abraçada ao peito, à semelhança de cadernos de uma colegial, e quando os olhos de quem observava se acostumaram à luz vazada do corredor, vi que há muito ela não tinha mais idade para isso, podiam até ser cadernos, mas estudante ela não era. O vestido era mesmo preto, nada mais havia sido ilusão provocada pelas luzes sombras. Deu dois passos e enfrentou a cama. Abraçada às coisas, tesa, empertigada, uma quase insolência. Sequer olhou para mim, foi como se eu não existisse, o que era então verdade. A boca contraída disfarçava a iminência de um chorar, mas seus olhos brilhantes cantavam um hino de guerra, igualmente apertados. Era bonita ainda. Tinha sido muito mais, quem a tivesse acompanhado no correr da estrada não lhe veria a idade, só a beleza por trás do rosto bonito. O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel, a boca entreaberta, uma ausência presente, um engano embrulhado em panos quase brancos. Ela o olhava e se lembrava. Viu-o de frente, levantado em pé, e se lembrou primeiro do que pensaram ambos ser o último adeus, como se houvesse últimos adeuses, como se houvesse adeus sem morte, adeus de há tempos, quando as mãos dele não eram cor de cinza, ela viu novamente as mãos que nunca havia se esquecido delas, viu-as tamborilar sobre a mesa ao lado do copo vazio na hora do último adeus, displicência destoante da tensão triste da hora, lembrou-se da raiva que sentiu e sentiu aquela mão direita que depois pousou na sua face esquerda, o olhar de desculpas sem sentido, e lembrou daquelas mãos lhe correndo pelo corpo, a sensação das unhas lhe descendo pelas costas em queda livre, o arrepio, a aguardada chegada ao fim da queda por debaixo das suas roupas mais íntimas, aqueles dedos lhe vasculhando o interior e sentiu novamente, ali mesmo em frente àquela outra cama, como sempre sentira, o amolecer dos joelhos, a vontade de se cair de bruços e conseguiu vê-lo novamente nu, forte e rosado, arrogante de tão menino, a expressão de pedra que tinha enquanto a possuía, o quanto ele detestava essa palavra possuir, o sem sentido da expressão dura, muda, em oposição aos primeiros murmúrios dela, aos primeiros gemidos, aos gritos de prazer, e depois os gritos da dor que vinha do tanto prazer jamais sentido por ela, e o silêncio suado, o silêncio depois do trovão, silêncio. A hora da revisão, hora de repassar entorpecida o que lhe tinha acontecido, o que ele tinha feito, o que ela tinha permitido que lhe fizesse, que sempre acontecia diferente, hora de enrubescer, de não acreditar no que ele tinha conseguido que ela fizesse. E enrubescia porque estava certa de que tinha feito. O velho na cama era o mesmo, respirando imóvel. Mas como se sentisse a presença, abriu os olhos e morreu. Ela o percebeu morto e chorou, desistiu. Deixou cair os papéis lentamente, que foram lhe fazendo um último carinho pelos seios e pelo ventre enquanto desciam em sua queda livre, mas que não lhe vasculharam a carne pela última vez, simplesmente despencaram em direção ao chão e se espalharam, folhas caindo da árvore morta, seu ser vivo. Não havia mais quem lesse o que estava escrito. Acabara, finalmente. Abaixou a cabeça, não a olhar papéis, apenas livrando-se da ensaiada insolência da chegada, virou-se e saiu lentamente, deixando-me sozinho no quarto. O velho sou eu.
amelie poulin ou amélia de polainas Ela pode se chamar Jolene e vai às tardes visitar o túmulo de uma atriz. Ela canta no coral, mas tem o hábito das polainas, as pernas dentro delas, vocaliza de perna grossa. Tem marido que a espera tirar do forno o pato com laranjas. As polainas no aquecedor pra secar, não tem varal, não tem quintal, casa de mil anos. Luís não gosta de polainas nem ombreiras, é pintor, quer coerência. A pasta de dente com listras vermelhas verticais, não as deixa enrolar por nada, as listras retas na escova. Jolene, o nome está bem escolhido, fica esse. Jolene usa ombreira e polaina de propósito. Hora dessa bota joelheira, quer um homem pra baratinar, pra dizer que teve um. Pra ele tanto faz Jolene como Jussara ou Joelma, o que vier, veio. Perfura as moças pra ninar no colchão pélvico delas, ainda que de polainas. Jolene vai ao cemitério levar flores em dois jazigos, um da atriz assassinada, outro de um tio que não conheceu, mas deixou a casa onde mora. A atriz foi morta por Luís, é bom deixar claro. Ela sabe, viu foto no jornal e ia visitar na cadeia, levava geléia de amora com bolo de ovos, um dia levou almofadinha para descansar os olhos, um travesseiro recheado de macela. Percebeu o ódio dele por polainas na cadeia, Luís cuspia a comida quando a moça do refeitório estava por perto, ela usava polainas pretas; longe dela comia feito capivara na beira do rio, se fartando. Jolene pra cima e pra baixo com as falsas panturrilhas, falsos ombros, falsa sombra. Foi costurando ombreiras em cada malha de lã, ousou botar em regatas. Luís já fora da prisão, pena cumprida, só queria uma capaz de o deixar usar o banheiro sem hora pra sair. E as polainas pela casa, até dentro do banheiro, onde ele fazia bolinha e botava dentro da cueca, do jeito que a atriz gostava; atriz de nome Amélia, polainas azuis.
o buraco
Dentro da casa tem um buraco, tem um buraco dentro da casa. O buraco se move da sala pro quarto, do quarto pro outro quarto, daí pra cozinha, de lá pro banheiro; às vezes cresce tanto que derruba as paredes e tudo vira um buracão só, que de tão fundo, fica frio. Aí eu encontro o parapeito do buraco, e me apoio no que não é buraco, é parapeito, e fujo. Vou pra rua. Bebo, faço merda, grito, subo na mesa, fumo, cheiro, fodo com um com dois com três, faço suruba, lounge, jogo cerveja na cara dos outros, me esfrego no chão, bato de carro, apanho, cuspo, chupo uma buceta, chupo um pau, chupo balinhas. Volto e capoto. Acordo e o buraco passou. Minha memória lacunar traz fragmentos de frases, congela instantes ou cenas inteiras da noite que dura mais que uma jornada de trabalho. Aí vem o trabalho propriamente dito e a sensação de que tenho vivido, produzo e me divirto, tudo em excesso, e tenho o que colocar no buraco, caso ele apareça. Ao passo que o dia caminha, a luz cai e parece que ao cair da luz caímos nós também. Ops, eis novamente o buraco, e sua gargalhada muda, sarcástica: - Achou que
podia fugir, Baby? Um amigo adepto
das falhas subterrâneas, rei dos escombros, manipulador de psicotrópicos,
me diz: Agora ele me pega desprevenida, de assalto, a qualquer hora do dia e da noite. No meio da rua, numa festa, no bar, no trânsito, em casa. Grande, profundo, preciso de um mutirão de gente pra me tirar de lá. Guindaste, corpo de bombeiro, defesa civil? É pouco. Eu saio, ele se vai. Mas volta.
ap. na
minha casa você pode flagrar alguém se
escondendo da rotina num quarto escuro ou
batendo a cinza do cigarro na janela enquanto
espia as roupas dançando em silêncio no
varal da área às
três da madrugada você
pode flagrar alguém preocupado segurando
uma caneca com vinho vagabundo dormindo
fora de hora pensando
demais na vida e no tédio que é essa falta de paixão.
homem e
bandoneón De perto, a pele morena, a barba por fazer, os lábios ressequidos que se moviam como se murmurassem, os dois vincos fundos ladeando a boca e o nariz inchado, estendendo-se feito garra pelo rosto. E seria um rosto agressivo, não fosse a suavidade da expressão ausente, os olhos pequenos e gastos que pareciam olhar para dentro, como se olhassem pelo avesso. Afastando-se um pouco, era um homem de ombros murchos dentro de um paletó emprestado, era um homem velho em velhas roupas de domingo, e um tecido grave e áspero envolvendo o corpo, e um corpo grave e áspero que envolvia a caixa de madeira, com seus botões e relevos incrustados. Afastando-se um pouco mais, aquela mesma caixa era então instrumento, um bandoneón que o homem apoiava sobre uma das pernas, que o homem abria e fechava como quem abre e fecha um leque, extraindo dele notas e compassos. E se fosse possível afastar-se ainda mais, no chão, à sua frente, surgiria um chapéu de bordas puídas e interior vazio, as contribuições que nunca vinham, os gestos que faltavam, ao fundo, a calçada sem árvores, as casas com suas portas fechadas. Fato é que o homem abraçava o bandoneón e desse abraço saía um choro alongado e insistente, como se o instrumento recontasse histórias e tristezas circulares. O homem tocava distraído e mal se dava conta da rua vazia, e mais ao longe, do outro lado, a exposição, os corredores, as salas do museu, onde as pessoas, alheias e rápidas, passavam a vista sobre as telas, sem perceber o lamento sincopado que vinha daquele pequeno quadro, e deixando o bandoneonista sozinho no silêncio dos aplausos.
o último beijo Caro Marcelo Deixei
a soturna Praga e cheguei em Marienbad ontem. A viagem foi cansativa
e nada agradável. Um senhor de poucas maneiras acendeu um charuto
sem pedir licença e sem escusar-se. Tivemos que abrir a janela e a
fuligem vindo da locomotiva espalhou-se pelo compartimento, manchando
minha pelerine comprada em Paris no ano passado. Tenho certeza de
que se estivesse presente, você ia pedir-lhe satisfação. Mas abandonei
a esperança de uma nova liaison, parti sem despedir-me, não
é assim que procede l'amante au coeur dechiré? Ademais,
cansei da luta pela independência da nossa província, a germanização
da nossa pobre Boemia est un fait accompli. O nosso grande
líder Massarik exilou-se em Roma e eu exilo-me nessa suntuosa ville
de bains. Registrei-me
no Palace Hotel, construção sólida e delicada e ao mesmo tempo tão
imponente, algo planejado para atravessar os séculos. O domo envidraçado
do salão nobre é assustador, tenho a impressão de que a qualquer instante
vai desabar em cima de mim, evito passar por baixo dele. Os pesados
candelabros com enfeites de cristal são obras de arte que só aqui,
nesta terra empobrecida, conseguem ser fabricados com tanto esmero.
As tapeçarias são deslumbrantes, expõem a batalha de Königgrätz. Meu
consorte me deu como argent de pôche apenas 100 coroas. Este
judeu vive sempre mais preocupado com os negócios e o sustento do
seu sobrinho tuberculoso, Franz Kafka, portanto, freqüentar o salão
de jogos é impossível. Tento
esquecer você, mas a visão daquele homem valsando com minha prima
no baile em homenagem ao herdeiro do Império não me abandona. Perguntei
à amiga que me acompanhava quem era ele, ela alertou-me sobre você:
"é um libertino, inescrupuloso, conquistador compulsivo, um anarquista
do amor, seduz e depois abandona". Abandonou-me, n'est-ce pas?
En
tout cas, mulheres como eu parecem ser condenadas a viver distantes
dos prazeres íntimos, são repelidas pela sociedade. Nosso modo de
viver, livre e sincero, não é aceito no nosso entourage. Não sou contrária
aos costumes alicerçados à boa moral, são eles que consolidam a sociedade,
mas não devemos ser julgadas e condenadas por amar, por não esconder
nossos anseios. Seria como se pintássemos um quadro dos nossos desejos
de modo tão pungente, que afugentasse o observador e o fizesse correr
assustado, o pintor execrado para sempre. Algumas
pessoas não podem mudar as outras, somente o amor, gloriosa majestade,
consegue fazer isso. Nossa mente é ensinada a aceitar as regras que
lhe são ditadas, mas o coração é um animal indomado e puro, não aceita
mentiras, nunca! Coração honesto, afeição e amor sincero foi o que
me impeliu em sua direção. Afoguei-me na paixão. Viverei
na solidão em vez de tentar convencer-me de que amo sem ser amada.
Não pretendo aceitar a mentira do amor apenas para não viver solitária,
prefiro acreditar na verdade que nos convida à solidão. Sim, a maioria
se atemoriza com a possibilidade de estar sozinha, mas a solidão nos
permite ouvir o coração, o isolamento convida-o a cantar. Solidão
contínua não aceita desfaçatez, não aceita sufocar os gritos d'alma.
A solidão é o fosso do nosso passado, o ser humano em estado de solidão
pensa no passado, é atrelado ao arrependimento, os prazeres perdidos
o angustiam, é invadido por mágoas, ódios, a saudade apossa-se dele
e o atormenta. O temor da solidão é o pavor da memória, nossa história
íntima é torturante. Assim
navegarei pela vida. Marcelo,
a solidão não me fará esquecer-te. Levar-me-á, silenciosa talvez,
ao desespero da morte. Meu
último beijo, Carla
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