edição 38 | dezembro de
2009
sem concerto "Ut
queant laxis / Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve
polluti / Labii reatum" [Para que os teus servos possam cantar as
maravilhas dos teus atos admiráveis, absolve as faltas dos seus lábios
impuros] - Paolo Diacono
fá dó fá dó sol lá sol lá afinando: ré lá ré lá fó dá fó dá
humano vagalume Tivesse
ficado na cama. Nem tivesse acordado, escovado dente, lavado o cabelo,
essas atividades da época das cavernas. Os idiotas vão ao espaço e não são
capazes de criar alguma coisa que nos livre de escovar dentes e lavar
cabelo? E disso aqui nem falo. Bela bosta.
Aturar. Essa,
podia ser minha filha. Não é, ainda bem. Só não saio pro resto do dia que
o resto do dia não vai melhorar. Se ao menos não encontrasse mais ninguém.
Mas não! Essa mania, todos querem se encontrar, trocar palavras,
cumprimentos, balançar a cabeça, sorrir. De que, diabo, de quê? Escolhi
minha forma de não dizer nada: ficar calada. Mas ninguém fica calado.
Perguntam e não querem saber a resposta, respondem sem ouvir a pergunta.
Falam sem parar por vaidade. Feito essa aqui, sorridente e solícita,
tratando a todos como débeis mentais. E somos. Ou já teríamos ido embora.
Ah, a grande felicidade de não ouvir voz nenhuma. Colecionar ausências, é
o que me deixa feliz. Ou me distrai. Eu não fico mais feliz.
Tá bom, já vi a
luzinha. Até cachorros compreendem isso. E esses celulares que não param.
Todos atendem e falam sobre o que for, desde que seja alto. As filhas não
conseguiram me fazer usar um mas botaram telefone lá em casa, com uma
extensão em cada cômodo — e se você cair,
mamãe? Por que não botam uma câmera? Sorria, você está sendo filmada.
Odeio filmes, odeio estar sendo. Mais uma vez, sorria. Haja dentes. Nem
pra isso inventam algo melhor que pasta e escova. Botem logo uma placa
dessas no meu banheiro: sorria, sua disentérica, seu traseiro está sendo
filmado! Bela bosta. Lá vem a
solícita. Ah, sim, não me diga, que novidade. É impressionante. Uma pessoa
pode ganhar a vida com uma única frase, o dia inteiro, durante anos,
décadas, a vida toda: a senhora terá que esperar mais um pouco. Pra
variar, podia me dar um tiro na cara e dizer: parabéns, a senhora já não
precisa esperar mais. Não. Uma coisa deu certo há oito mil anos, a gente
repete até o Juízo Final, quando Deus pessoalmente vai descer dos céus
para nos dar os parabéns. E quem sabe, um tiro na cara. Já vou, pra que a
pressa? Daqui eu não vou a lugar nenhum. A filha mais nova vai passar o
fim de semana em contato com a natureza, algum mato idiota e sem rede de
esgoto, e cismou que vai me levar. E que eu vou adorar. Pois sim. Essa é
outra das manias. A viagem. Tá certo, há dez mil anos migrarmos foi nossa
salvação e a raça humana pôde proliferar pelo planeta. Mas, por favor, não
chega não? Viaja quem tem a imaginação curta e precisa olhar, olhar e
olhar para criar alguma coisa. O desgraçado tem que ver uma paisagem por
semana durante trinta anos ou então desistir de criar sua artezinha e
criar galinha, o que é mais ou menos a mesma coisa com a desvantagem que a
arte não dá ovos. Não me levem a lugar nenhum, não me convidem, não me
mandem um carro nem passagens. Quero esquecer o que vi e as línguas que
aprendi. Infelizmente tinha muita facilidade para línguas, a família
percebeu essa falha, elevou-a à categoria de qualidade e lá se foram, o
quê?, anos de perda de tempo poliglota. Virei um papagaio idiota, sem
penas, sem vôo, sem mato. Hoje me contento em ser muda na língua materna e
dar uma volta no quarteirão. Mesmo que a ciência me obrigue a viver cento
e vinte anos, não conseguirei conhecer tudo o que cabe no meu quarteirão.
O mundo inteiro está ali, a galáxia está ali, o universo. E se Deus fosse
esperto, tivesse se criado e existisse, também estaria aqui. Chegarei na
fronteira final quando não sair mais do espaço de minha cama. Ali quero
viver e principalmente morrer. Sozinha. Sem nenhum companheiro para
chorar, amparado por filhas e demais parentes que vão chorando menos até
chegar aos que só tomam café e não tiveram coragem de deixar de ir. Como é
bom um enterro! Que divertido! Olha lá, não sou eu! Acho o casamento e seu
comparsa, o amor, junto com a filha bastarda dos dois, a maternidade, uma
chatice. Foram o quê? Estratégias para a reprodução da espécie. E tudo que
vivem dizendo sobre eles é literatura chata, é novela. Que tal começarmos
a louvar o ódio em vez do amor? E a esterilidade? Talvez melhoremos, quem
sabe. Louvamos o amor há séculos e seguimos nos matando alegremente, em
quantidades industriais. E já somos, sei lá, sete ou oito bilhões de
pessoas. Não cabemos todos aqui. Mas ninguém liga, preferem seguir
condenados a repetir e repetir o que for conveniente, o que for correto, o
que for o desejo de todos, da pátria, do Senhor, do mercado ou qualquer
outra baboseira que, como tudo, se resume a... sei lá, o que importa? Sei, preencher os
dados. Quantas vezes você vai repetir isso? Não, infelizmente eu não vou
esquecer. O alzheimer ainda não se manifestou. Embora eu considere uma
bela doença. Não saber mais nada, esquecer de esquecer. O melhor da
memória é o esquecimento. Há de chegar o dia em que olharei os álbuns de
fotos e não reconhecerei ninguém. Eu me apagarei antes das fotos, essas
mentiras de papel. E o que não é mentira? Eles destruíram o Bar
Jangadeiros, onde meu avô ia se embebedar, meu pai ia se embebedar e eu ia
me embebedar, para desespero de meu pai e de meu avô. Botaram no lugar uma
agência de banco, a agência se chama "Jangadeiros" e tem uma placa na
porta dizendo que o bar funcionou ali. Pra virar herói, não basta ganhar a
guerra e destruir o inimigo, tem que contar a história. O principal é
contar a história. Mas o tempo das histórias já passou, ao menos pra mim.
Essa aqui é uma história contada por uma idiota, sem nenhum som, nenhuma
fúria. Estou morta, é o que é. E quero viver minha morte, última coisa que
me resta aqui nesse mundo que, como eu, não passa de uma bela
bosta. Não tenho medo de
lugares fechados, é pra lá que vamos, minha filha. Não acredite nas
promessas de vida eterna nem de ciência eterna. Eu soube que na Grécia
antiga se vivia uma média de 30 anos. E deu tempo para fazer aquilo tudo.
É melhor viver pouco, não saber muito e se esforçar quase nada. Saber?
Saber entristece. Trabalho? Trabalho adoece. São mandamentos, o homem é um
triste que só sobrevive à base de mandamentos. E droga, muita droga. No
meu caso, álcool com cocaína por anos a fio. Agora, só o álcool. Até
quando, não sei. Já tem o diagnóstico? Que velocidade atingimos, hã? Gênios, não é? Olha, eu prefiro os vagalumes, que têm luz própria, não precisam de civilizações. Não precisam inaugurar. Simplesmente brilham. Não precisam de enterro. Simplesmente apagam. É o que desejo, apagar-me. Sem ter que ir para um céu, um inferno, lá o que seja. Sem deixar também. Deixar o quê? Saudades? Mentira, já, já te esquecem. Mesmo aqui, na pátria do exílio, que adora choramingar saudades. Não, filha, já não importa. Eu resto, não me acendo nem me apago, nem humano nem vagalume. Só esse tremor inesperado, esse suor e os diagnósticos. No fim, como qualquer um, não é? Tivesse ficado na cama. 2 minicontos um
estranho que me quer A grana estava bem curta aquele mês.
Precisava conseguir o suficiente pelo menos para o aluguel. Mas não
pintava nenhum extra. E o dinheiro do pagamento, assim que caía, escorria
todo em contas emergenciais. Havia já um tempo que não comprava uma única roupa nova Sempre aquelas de
sempre. Os sapatos, pior ainda. A sola gasta não mantinha sequer a
dignidade do passo. Não sabia mesmo lidar com grana. Essa era a verdade. E
dinheiro que vinha difícil, ia fácil. Talvez se tentasse o contrário...
Uma grana que viesse fácil, ficasse por mais tempo. Mas isso era
impossível. Grana fácil só para quem já nascia com grana. Isso deixava ela
puta. Meio do mês e aquela aflição de pobre estourando no meio do peito.
Insônia e taquicardia. Tinha que dar um jeito. Pensou isso esfaqueando
muitas vezes o suco de maracujá com o canudinho. Até que seus olhos
flagraram o carinha de terno que não tirava os olhos de cima dela. Essa
agora! Pescou uma nota de cinco solta dentro da bolsa e acertou o lanche.
Na saída da lanchonete, uma chuva torrencial disparou no meio da tarde e
ela sem guarda-chuva. Má sorte, tempo ruim. O carinha de terno se
aproximou dela e sacou num golpe de herói um enorme guarda-chuva daqueles
pretos que os ambulantes vendem por uma merreca em dias assim. Nem se ela
quisesse podia comprar um daqueles agora. Sorriu sem graça esfregando as
gotas grossas que já molhavam todo o seu braço. Está indo pra que lado?
Perguntou o rapaz. Pra os lados da minha casa. Ela respondeu sem perceber
que não fazia muito sentido o que disse. É pra lá que eu vou. O moço
devolveu com certo humor o que ela dissera. Aquele terno não devia ser barato.
Num instante passou pela cabeça dela uma possibilidade de arrumar a grana
pro aluguel. Por que não? Uma grana fácil. E para o que estava disposta
não precisaria de roupa nova. Aliás, não precisaria de roupa alguma. Topou
na hora. instrumento musical — Agora você faz em mim. Ele disse,
desafogando-se do meio das pernas dela. — Hein? — É. Quero que você faça em
mim. — Ai, por quê? Não tou a fim. Tava tão bom
assim. — Você já reparou que só eu faço em você? Não
que eu ache isso ruim. Eu adoro. Mas você quase nunca faz em mim. Você só
quer quando tá bêbada. — Ah, é que você faz melhor. Eu não sei tirar
um som muito bom daí. Seu gemido fica estranho. Eu não acerto muito bem. E
quando você decide ficar me regendo, eu me perco toda e aí fica tudo ruim.
— Não é isso. Você tá me enrolando. Você não
gosta do meu cheiro. Você não gosta de mim. — Você não disse que tudo tem um ritmo?
Então. Eu não consigo entrar nesse ritmo. E além do mais o instrumento é
muito pequeno pra minha boca, se você quer mesmo saber. E quando a gente
tá bêbado eu posso fazer de qualquer jeito que você vai achar bom. Acho
humilhante ter que fazer e você não achar que ficou bom.
— Eu vou achar que ficou bom se eu achar que
você tá gostando de fazer. — Gostar de fazer não é suficiente pra fazer
bem. Você sabe muito bem disso. Ele pensa um pouco, meio desconsolado com aquele discurso inútil. Lembra que não tem uma única garrafa de vinho na casa. E volta a se esconder entre as pernas dela.
![]() então quando passei pela recepção vi a árvore toda montadinha e piscando. ai meu deus, já é natal. porra, já é hora de voltar pra casa. não vou comer panetone aqui não. não vou mesmo. acabou a brincadeirinha de inválida. tá na hora de subir no salto e requebrar as cadeiras ––– hoje quando a enfermeira gorducha tirou a mesinha do meu colo eu disse: obrigada, querida. ela teve um susto: nossa! a senhora voltou a falar! que maravilha! –––– maravilha o quê, caralho. se ela soubesse o esforço que faço pra não ficar com voz de bêbada, ainda sinto a língua meio pesada. mas se eu falar devagarzinho dá pra entenderem –––– doutor rodrigo veio me ver à tarde, ai que narigão lindo. é muito charmoso esse médico, tem uma cara de safado que vou te contar. e então, dona cecy, o que me diz? o que eu digo, meu bem? digo que pela minha experiência aposto que você tem um bilolão e pelo tamanho do polegar, tem uma cabeçona que faz um sucesso –––– ai essas formalidades idiotas. o que está sentindo? voltou a falar assim de repente? e as sessões de fisioterapia, estão indo bem? –––– tá bom tá bom tá bom. chega. eu quero é voltar pra casa –––– já avisei a marcelo pra mandar dora armar minha árvore também. a minha não é essa coisa de mal gosto da recepção. é grandona e linda, e tem estrela de cristal pra colocar em cima. ah! o meu menino jesus! é tão lindo, parece de verdade. pra colocar em cima da mesa –––– num fim de ano na minha casa da rua imperial eunice fez um natal de bing crosby, tocando aquelas musiquinhas tristes. foi lindo, mas agora toca uns boleros e uns sambinhas pra animar porque a noite promete. sambinha na véspera de natal, dona cecy? é aniversário de jesus, minha querida. não é o funeral. sexta-feira santa é em abril –––– eu tinha pena daquela criatura, deixava ela tocar lá em casa por causa daquele marido canceroso e os dois filhos pequenos na escola. eunice usava uma peruca quando ia tocar, pros os clientes não desconfiarem que ela era do conservatório. o homem de eunice era aquele piano, eu sempre soube. ela tocava com a boca meio aberta, às vezes fechava os olhos, parecia que tava gozando –––– como era o nome daquele admirador dela? quando ele chegava, eunice começava a tocar carinhoso. querida, não se acanhe. se quiser usar um dos quartos lá de cima... dona cecy! eu sou casada! eu sei, mas é melhor pecar do que sofrer –––– ah faz muito tempo isso. uma vida longa é uma alameda de mortes. eunice deve ter morrido, vendi o piano quando fui morar em boa viagem. na verdade foi um alívio ter vendido aquilo. não sou muito chegada à velharia. era um piano alemão com dois candelabros. fica com isso aí, cecy. a usina faliu e minha mulher tá pegando tudo o que é meu. esse piano foi de minha mãe. mas esse ela não leva não. fica aí pra animar as noites das meninas –––– eu já tinha uma radiola philips. mas tive que colocar aquele trambolho velho na minha sala –––– antonio também já morreu. uma vez se embriagou, subiu na mesa: meus amigos! somos uns privilegiados! que casa em recife tem uma dona tão bela e garotas tão graciosas? e a macharia ria, ria, levantava os copos brindando. à beleza de cecy! à beleza de cecy! –––– mas só eu sei, só eu sei. às vezes chorava escondido, pensando nos filhos que perdi, nos homens que amei. olhava no espelho, os olhos vermelhos: eu sei que sou linda. mas isso resolve alguma coisa? –––– ![]()
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