edição 37 | outubro de 2009
temas:  os quatro elementos (água, fogo, terra, ar) ou os signos | pés | aquele beijo que te dei

 

beijo-beijo
márcia maia

valia tudo pra ganhar aquele prêmio até passar horas no meio da praça maior calor beijando o namorado da vizinha tão feio que eu sempre tinha tido tanta pena da coitada e não conseguia entender como ela tão bonita perdia tempo com aquele cara com jeito de abobalhado e a cara cheia de espinha e que só podia ter mau hálito nem eu nem ninguém entendia até agora no meio da praça quase esquecida do prêmio carro e viagem pra austrália e mais esquecida ainda da coitada da vizinha em casa com catapora mal começou e eu já tremia ficava toda molhada e de súbito entedia e invejava a coitada da vizinha tão bonita namorar aquele traste e como beijava o dito tão bem que eu nem me lembrava do jeito de abobalhado da cara cheia de espinha sei lá se tinha mau hálito agora só quero é ficar aqui por toda a eternidade boca a boca quietinha maior calor nessa praça no meio de toda essa gente e quando ganhar o concurso dou o carro pra vizinha e levo o cara de espinha junto comigo pra austrália e se ele não quiser ir não tem problema armo o maior barraco ameaço me matar choro grito dou pra ele e em último caso apelo e podem crer o sequestro e deixo o meu namorado que é lindo de presente pra ela

 

 

 

 

 

5 poemas

nina rizzi

 

 

um beijo, dois beijos

 

era fome.

tua fome do arroz que era pó em rostos

de hediondas riquezas.

 

era a urgência dos despossuídos rotos.

 

de olhos bem abertos

findou na moléstia dos saciados.

 

aquele beijo que te dei,

num olho, n'outro olho,

por ser só, foi verdade.

 

 

 

 

manoel-ando – iii

 

o espírito de andanças me retraz aos ventos,

barcos daquele dia envelhecido.

 

não sendo carne,

é em lugar e coisa que me desaconteço.

 

avô de barros a ampliar a solidão.

 

 

 

 

eco-ando

 

eu sozinha lá no mar. Sozinha

— ínha

lá pro mar.

 

eu pisava n'água, água

— guá

gagá lá no mar.

 

a chamar um nome, mãezinha d'água.

a chamar

— amar.

 

ia gagá chamar um nome

— ôme

 

que não me ouve

— vê.

 

 

 

 

con-siso –i

 

a brasa do

tabaco me

queima os dedos

mas que importam

as cinzas de mim?

 

 

 

 

terra

 

os que lá em terra crescem se estafam

— que é árdua,

mas são com ela simbiose.

 

e, se fartos, param. descansam.

em distensão podem se enamorar

do próprio trabalho e alimento e gênese.

contemplar, criar novas formas de barro

que lhes molda.

 

cansam. mas podem parar e beber d'água,

que são esperados haja quantas vertigens houver:

a terra, antagonista das máquinas, não os aliena, quebra ou aflige

é viva e extensão de seus filhos

ello-circular.

 

 


©cristina carriconde

 

den kuss du hast mir gegeben

(de Memórias de Patty Flag)

patty flag

Ouvia os maldizentes dizerem que, com a surra que marcara o fim de meu casamento com Durval, eu entenderia que, uma vez puta, tinha perdido o direito ao sonho de casinha feliz no subúrbio. Mas eu nunca sonhei com casinha feliz, assim como não sonhei com o estrelato no Cassino ou na Vogue. Nunca sonhei com Guilherme, Capitão Aprígio ou Oromar. A vida me apresentou Durval e, como a todas as coisas, também a ele eu aceitei como um presente.

 

Durval não era habitué da Vogue, nem seu salário nem sua moral de baixo funcionário público lhe permitiriam esse luxo. Entrou ali numa festa que deu o chefe da repartição onde trabalhava apenas funcionários flamenguistas, para comemorar o tricampeonato carioca do Flamengo. O único ali que não era Flamengo era Durval, que não era nada, talvez quase Flu, mas fingia, para agradar o chefe.

 

Durval, que nunca bebia, ficou alto com duas cervejas e se encantou por mim. Eu não era mais viciada em sexo, mas não recusava uma boa oferta. Além disso, estava curiosa com aquele homem que, a despeito de minhas coxas arrebatadoras, subia na mesa e urrava para meus pés em sandálias douradas.

 

No quarto, Durval devorou meus pés por alguns minutos e acreditou ter me comido loucamente por alguns segundos antes de sucumbir às cervejas, que a essa altura já contavam meia-dúzia.

 

Decidida a livrar-me do homem assim que acordasse, ao amanhecer, fingi que havia sido ótimo, para agradar o chefe. Então, ele beijou-me e confessou que eu era a primeira. "E, se Deus me permitir, também a última".

 

Em três meses, estávamos casados. Eu sempre me entreguei assim. Acredito que isso é o amor. São assim as personagens de meus livros baratos.

 

Não deixei a Vogue como ele queria, mas jurei não rever Guilherme, que o matava de ciúmes. Eu já devia saber, apenas não queria acreditar que não poderia cumprir essa promessa.

 

Mudei-me do centro para o Engenho Novo, o que me custava uma boa descadeirada diária nos bondes da Light até Copacabana.

 

Durval nunca mais mostrou interesse por meus pés, nunca mais também o vi beber. Mas aquele beijo que me deu, den Kuss du hast mir gegeben, repetiu mundanamente todas as noites pelos próximos quatro anos.

  

 

os quatro elementos
pomba maria

Naturalmente que assim como são as pessoas, são as criaturas. Tal conceito metafísico, inerente à abordagem subjetiva dos parâmetros ortodoxos que ensejaram as linhas mestras da visão cosmogônica, face à estruturação convergente do modelo atual, leva-me a concluir que de todos os elementos que cruzaram minha jornada nas estrelas, quatro deixaram marcas indeléveis nesta Pomba. Senão, vejamos:

 

 

ignácio, o bombeiro

 

Sagitariano com ascendente em Leão e Lua em Áries, Ignácio era dono de inquestionável criatividade, indubitável energia e inabalável fé. Pautava sua conduta pelas palavras proferidas e seguia o exemplo do Bispo Edir Macedo, também de inquestionável criatividade, indubitável energia e fé inabalável na boa fé do próximo. Em Roma, há alguns anos, fiz um solo de harpa, enquanto Ignácio tentava debelar minhas labaredas. E conheci...

 

 

geoclídio, o agricultor

 

Foi com esse taurino de Lua em Virgem e ascendente em Capricórnio, apegado aos valores materiais, pragmático, realizador, persistente, epicurista, que descobri os prazeres da vida rural. Durante o verão de 42, plantamos mandiocas nas terras férteis do Vale do Jequitinhonha e nos fartamos de suco de pepino. Separamo-nos quando eu estava à toa na vida, a banda passou e conheci...

 

 

affonso e assonfo, os gêmeos

 

Nascidos em junho, Affonso e Assonfo eram gêmeos. Affonso possuía um aquário, onde criava uma octopussy e Assonfo, uma balança, onde pesava as almas dos vizinhos facultando-lhes, ou não, o acesso à Ladeira do Paraíso. Comunicativos, interativos, hiperativos, Affonso e Assonfo tornaram-me prenha de palavras, principalmente aquelas que o vento leva e, desde então, jurei nunca mais passar fome outra vez. E conheci...

 

 

nemo, o procurador

 

Nemo era de março, assim como o rio é de janeiro. Emocional e emotivo, intenso em seus quereres e desamores, tornou-se procurador, devido à sua vasta experiência como procurado. Um escorpião negro, tatuado no braço esquerdo era seu passaporte para a Yakuza, e um caraguejo azul, no braço direito, era uma homenagem à sua mãezinha degustadora de frutos do mar. Se houve incesto entre eles, esquivo-me de comentar, é desconcertante rever um grande amor. E conheci um bando de mulheres suicidas... mas isso é uma outra história, fica para uma outra vez.

 

  


©cristina carriconde

 

 

 

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