edição 36
| agosto de
2009
3 microcontos um conto sagrado
Yohanan e Sara fugiram deserto frio afora, e sentiram o fogo de Deus na lança que os traspassava. Neste momento ele entalhava a nona palavra.
cirandeira
Margarida ama João, adora brincar com Pedro, alimenta-se dos sonhos que José coloca em sua caixa de correio. Ciranda desde menina, cirandar é sua sina.
infertilidade
Mãos sobre seu ventre seco, calendários manchados de lágrimas, chuva que escorre dentro de si, e não molha.
©simonia fukue 3 contos inúmeros Ouço o chuveiro em plena madrugada, levanto da cama e vou ver que diabo está acontecendo. Deparo com o 18 saindo do banho. Fita-me, sorrindo satisfeito, enquanto se seca. Na minha toalha, é claro. — Desde quando números tomam banho? — pergunto, curiosa. — E por que não, minha amiga? — a resposta vem como arguta interrogação. — Quer dizer que dia desses, posso achar o 1234567890 na minha banheira? — Mais provavelmente numa piscina apropriada ao comprimento dele. — Ahá! — silenciei — não tinha a menor idéia do que dizer. — Cuide–se quando o $ nos anteceder — sussurrou o 18 em tom de segredo — pois aí evidencia–se lavagem de dinheiro. — Ahá — rematei — arregalando os olhos cheios de sono. — O $ nos muda de interessantes para interesseiros, minha amiga. — Assim como o %? — arrisquei. — Depende — pigarreou — há os % honestos e produtivos enquanto há os % onerosos e inomináveis, você sabe. — E tem algum % aí para mim? — já fui me assanhando. — Tem sim — o 18 me pareceu conformado — pode levar. — Obrigada, 17. E fui dormir, satisfeita da vida. Afinal, já era quase amanhã. onde anda você? Volta, volta para mim. Não sei porque o abandono após tão longa e proveitosa convivência. Com você revivi coisas vividas, vidas não vividas, vi e ouvi de dentro e de fora, plantei venturas, colhi agruras. Tive lampejos, revelei desejos, ousei horizontes e aproei nortes, enfrentei noites e arrisquei sortes. Foram dias, meses e anos, lhe sorvi, embebi e pari. Na cama, me fez homem e mulher, feliz e infeliz; sofri e gozei, ri e chorei. Tornei você cúmplice e parceira, companhia diuturna, risonha ou soturna; presença forte que sacudia, invadia, motivava e empurrava. Íamos do fundo do poço ao alto astral, do átomo ao espaço sideral, do temor à ternura, do ódio à doçura. Nos perdemos em miragens, selvas e rincões, levados por sonhos, trens e aviões. Criamos gatos, lebres e pinguins, fantasias, novelas e afins. Entrelaçamos mãos em bares e cinemas, apreciamos artes, concertos e recitais, recitamos poemas, reciclamos receitas, engendramos paixões, desfiamos temas. Não sei porque você não volta, tento de tudo, mil estratagemas, catilinárias e simpatias, terços, mandalas e adereços. Ecoam meus gritos e lamentos tantos, mas de você só recebo brancos. Volta e vamos, de novo, fazer das palavras o nosso brinquedo. Volta, Inspiração, volta sem medo. desejo "Desejo é vida. Desejo é impulso, trangressão. Desejo, é a energia mestra do universo". Lá estava eu, desejosa, filosofando, enquanto sorrateiramente a entrevia deitada nos lençóis de cetim. Sabia que breve a compulsão me dominaria. Ela nua, acariciando-se, olhos fechados, ronronando de excitação. Sua pele crispada me chamava, seu calor me atraía mas, por instantes, estancada permaneci, resistindo à tentação. Apenas espreitava. Seus dedos ágeis tocavam o corpo como a uma harpa celestial. Introduziam-se agitados, subiam aos lábios sedentos, abasteciam a língua voluptuosa. Inspirava fundo, sons roucos e abafados emergiam, a erupção se aproximava, o clímax se anunciava, de prazer ela tremia. Não mais resisti e, sequiosa, saltei naquela coxa carnuda, deliciosa, mordendo-a de tirar sangue. E agora, agonizo espremida entre suas unhas vermelhas, sensuais, ela respirando entrecortado, vingando-se de mim, pobre pulga faminta. 3 poemas origami numa tarde qualquer o amei fui o papel espelho que ele vincou [virou para cá volveu para lá fez uso de mágicos dedos] enquanto fui só amor para dar [e medo] ele apenas brincou de me dobrar game o jogo que ele faz comigo nenhum outro homem já fez e por tentar entender as regras topo essas constantes partidas — e vindas — * te olho de soslaio te seco peco porque só ensaio retrato de fina traça Vaga vontade vadia pelos livros na estante. Até esbarrar naquele um. Lombada velha espancada, titulinho meio descascado nos dourados. A capa está tão escalavrada, que lhe escapam as fibras, os fiozinhos da costura exposta, desencapados. Isso aqui é marrom ou terá sido um tipo de verde? E quanta poeira se vê, se cheira, se pega, cof, cof, da vaporosa e da grudenta. Olha só: já sai o coitado da prateleira desengonçado, derrubando estilhaços internos, miudinhos resíduos de traças e de papel. À beira de se pulverizar. Invento para ele umas delicadezas de renda puída. Como delicadíssima deve ter sido a mão que cuidou de escrever aqui o nome da dona do livro, com local e data, nesta letrinha redonda e bonitinha de moça que ainda ontem só pode ter se chamado mesmo maria lígia, tal como eu. Mas que, seja como for, agora não existe mais.
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