edição 34 | abril de 2009
temas:  por quê? | a dificuldade do não | muros

 

pedigree
márcia maia

não há  rosas por trás dos muros cor-de-rosa

da casa da poesia

 

mas touceiras de espinheiros

(entremeadas de marias-sem-vergonha)

violetas orquídeas

borboletas formigas

sapos cigarras grilos

e vez por outra um bem-te-vi

 

                                          mas não há rosas

                                            (nenhuma rosa)

 

 

a poesia (quase sempre) é mais sutil

 

quem espera sempre alcança

mariza lourenço

  

Robervaldo andava se sentindo muito infeliz por conta dos abandonos e traições que vinha sofrendo nos últimos tempos. Resolveu então que, doravante, somente teria olhos para moças de fino trato.

 

Conheceu Rosalinda, filha de um arrendatário de fazenda vizinha a dele. Morena de dar arrepio no ventre. E a moça também se interessou pelo matuto, motivo pelo qual começaram a namorar com vistas a um futuro compromisso.

 

O noivado ia de vento em popa e os preparativos para o casamento muito adiantados, quando o pai de Rosalinda, seu Rodisvelson, anunciou aos pombinhos que, para a festança, arrematara em leilão uma leitoazinha premiada.

 

Quando a leitoazinha chegou à fazenda, Rosalinda encheu-se de amores por ela e enfeitou-a com um belo laço de fita vermelha para evitar quebranto e mau-olhado.

 

A leitoazinha, de nome Roseflouer, tinha o pelo lustroso e belo porte, de fazer inveja à bicharada desqualificada e sem pedigree da região.

 

Às vésperas do casamento, seu Rodisvelson, tendo que levar a filha em viagem à capital para as compras do enxoval, deixou sob os cuidados de Robervaldo, a fazenda e a porquinha premiada.

 

Robervaldo, muito prestativo e responsável, não descuidava por um minuto sequer da bela Roseflouer e o que, em princípio, eram somente cuidados, passou a virar afeição. Pura e genuína. E quanto mais o tempo passava, mais Robervaldo se desesperava, pois sabia que, dentro em breve, Roseflouer viraria banquete de casamento.

 

O pobre do noivo, que até aquele momento julgava-se pessoa sem sorte no amor e tivera que sufocar estranhos desejos dentro do peito, novamente viu-se tomado da antiga alegria de amar completamente e sem preconceitos. Dessa vez, era ele, Robervaldo, o responsável pelo destino do ser amado.

 

Dias depois, seu Rodisvelson e Rosalinda retornaram à fazenda. A noiva não cabia em si de tanta felicidade e logo foi à procura de Roseflouer. Não achou a porquinha em canto nenhum. Chorou, esperneou e deu de cara com o pai que, furioso, segurava uma espingarda.

 

— Aquele filho do chifrudo fugiu e levou a leitoa junto.

 

Inconformada, Rosalinda vestiu-se de noiva e casou com o primeiro que avistou. Teve dois filhos: Romualdo e Rosenilda.

 

Robervaldo não voltou a Roncadouro. Foi procurado pela polícia durante muito tempo.

 

Todos os cartazes espalhados pelas Delegacias oferecendo gorda recompensa pela captura de Robervaldo — vivo ou morto —, acabaram amarelando e perdendo a validade.

 

Mas mistério mesmo continua sendo o paradeiro de Roseflouer. Ninguém sabe se virou toucinho ou se ainda vive às custas de Robervaldo.

 

 

 

1 miniconto, 2 poemas
medeea latour

passagem branca

 

E como não quero dizer nada, quase sempre, nessa língua de pássaro desconfiado de vôo, talvez se abra uma passagem sem calendários para que o nunca mais seja a senha mais freqüente, para que não se julguem reticências, para que o ás do baralho, o búzio, a borra do café não digam do futuro mais que evidências dessa minha fome de silêncio absurda que só não termina em teia porque não aceita a aranha: eis o fio do por quê.

 

 

 

como um escudo

 

Com as dificuldades de manter um poço

— ou o vazio não exige trânsito —

revestido com os leques do mofo e do limo

 

com a sensação de abandono com que folhas

de denso calibre disparassem do outono

das árvores

 

você, como um escudo, não quis tocar a minha mão

ao longo de secretas arestas

 

marcado agora fica o calendário com leves

escoriações e cartas de despedida do pomar

 

 

 

obstáculos

 

Eis aí

como se comportam os muros:

o semblante fechado e o rosnar do portão

com o dedo apontando os cães

medievais

comumente liberados da ternura

para exercer,

à la Munch

o grito de más-vindas

ante o romeu inconcluso

sedendo de julietas

intramuros.

 

 

dos haveres e porquês
nina rizzi

porque a nós

justo(s) nós

ficaram só os restos.

porque sou miserável

não há "que fazer"

sr. lênin.

 

sim. há.

essas lutas travadas

dia e noite

in(de)finitamente

de classes antagônicas-internas.

 

porque devemos nos

contentar rotos

(e estou de pés descalços,

mas de pé).

 

meus olhos brilham um verde

que não é minha cara

"verde demais"

[não posso comentar]

que meus olhos enegrecem

à sobra de conjecturas

e se...

e se...

 

(não conheço o totolec show)

 

há o castelo encantado

e o serviluz

e o marrocos

e o tiro em pipocos.

há uns alunos

a amar-tripudiar

: como sabe-quer-tanto

e (não) nada?

 

apago o quadro branco

pintado a pincel

negro-borrante

: que músculos!

e (não) nada!

 

que a nós

justo(s) nós

só nos restam migalhas,

a rede de concreto

que interrompeu a paisagem,

os detritos deixados no cais

por europeias branquelas,

um esgoto entupido de areia,

a gente que é rebolada no lixo.

e não há valha minha nossa senhora

a nos tirar do diabéisso.

 

há o maior santuário franciscano

da américa latrina

que devemos abnegar

: humildade,

pobreza.

castidade não que há praias

para-di(oni)síacas

pra inglês ver

turismo sexual,

que há o maior parque aquático

da américa livre pra estribados.

 

mas existem esses pés

descalços, mas de pé.

com amarras, mas

de borracha de pneu reciclado por vietnamitas.

esses pés sapatão descalça

que não há que caiba

(per-correm doze quilômetros de saudade.

antes nove horas de rotação terrestre)

e nos pés o desejo

do movimento-empatia-diferença,

abolir castidades nefastas

obsoletas.

 

e a voz mais linda

e rouca e úmida

a querer ser louca

não num ipiranga

ou tejo ou mississipi ou tâmisa

[um lugar qu'inda não sei]

um lugar que importa todos os largos

: panthalassa,

cocanha,

pasárgada.

a voz que brada todas as vozes

[et touts, sylvie]

e todos os pés cansados

e corpos rotos e flácidos

: eu mesma

só posso ser eu mesma

?

eles gritam

"é muito o que eu peço?"

 

e há ironias e balaços,

rodas de capoeira,

um ritual antropofágico

(alvos pra contar as tele-visões

que os guiam).

 

há essa rota descalça

rouca, úmida e bêbeda,

louca besta-quadrada

que grita um "fico"

antes mesmo de ser aliciada

por aristocracias agrárias.

a louca que deve se reintegrar,

que já tem terra sob as unhas

e não precisa,

não pode e não deve

lecionar pra sem-terrinhas.

a louca da cerveja quente,

da paranga de pango,

da proteína de soja com folhas de mostarda,

"boa pessoa, mas fissurada em charme"

(logo ela que só fuma ladob),

dos peitos travesseiros de peque-nini

(e mais ninguém).

a úmida que escorrega da normalidade

de que não pode fugir

: mulher e mãe tem que se comportar!

e que juízo faz!

se movimenta pra sentir

as cadeias que nos prendem.

liberta vozes oprimidas e opressoras

que silenciam um vestibular

e gritam os sujeitos à história-nova

(uma entre trinta)

formata os que nunca mais

serão domesticados-modelados

— só taxados!

 

liberta e, pobre,

(não) nada.

que só resta detritos, poluentes

e as cargas de navios clandestinos

já estão repletas de saudades, inconformismos,

restos de nós.

  

 

 

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