edição 30
| setembro de
2008
navegador a
cidade se estendia concêntrica como um alvo e
ele — nem marujo nem caixeiro viajante se
desdobrava em esquinas explorou-as
noite e dia como cais de carne e gozo de
modo que quando partiu
o cemitério povoado
de corpos saudosos e vivíssimos parecia
mais um filme de truffaut só
aldebaran — a de lábios de crepúsculos em
seu eterno vestido branco de cambraia não compareceu o
seu corpo — diziam — ele nunca navegara
sílfide
Ando
que é só pele e osso. As carnes comecei a perdê-las em meados de noventa,
quando ele me tocou pela primeira vez. Antes Renoir teria me amado. Agora
chovo no molhado das lembranças de uma beleza perdida. Agora sou mais
infeliz ainda, vomitando o pouco que meu estômago suporta. Pareço uma
caveira de Tim Burton, mas, talvez Johnny Depp me ame, assim como estou,
Kate Moss tupiniquim. Ando
que é só transparência e osso. Antes que ele me tocasse, nos idos de
noventa, meus peitos eram melões, minhas carnes transbordavam em minhas
mãos. Agora ele alardeia o seu milagre em catálogos bem dispostos sobre
mesinhas de consultórios. Maldito
seja! Ando que é só morte e osso.
de esquina
prefere
os quartos em pensões. são bem mais baratos, e aí não há razão de ser a
boca miúda. a escória. e surge uma espécie de solidariedade entre iguais.
os marginalizados. conquanto
não a tratem como coitadinha corre tudo bem. não é alguém que foi levada
pelas circunstâncias. escolheu sem ajuda o seu destino. gostava daquilo,
sua vida sem controle ou monopólio de seus sentimentos ou sexo. e é bom o
sexo com estranhos. algo próximo ao amor. a festa de seu
corpo. quando
criança sonhava um mesmo sonho que ainda persiste, apesar de serem
diferentes as personagens :
era apenas carne&osso. escorregava da nuca ao pescoço e rouca
verbalizava a dor de amar. evaporava então em nuvem a guria d'água. ela
era a chuva. choro. só
o ofício pode não a mantém em náusea. é capaz de amar, e ama, centenas ou
milhares de homens e mulheres. porque então não é posta em xeque em
posição subalterna ou opressora, só é a mulher. que não é deles e elas não
são dela. que se se envolver não suporta o ciúme, a posse, o escravismo
das relações-padrão. os sentimentos que não a permitem gostar de
si. se ama quando amam seu corpo em glória. a idéia que fazem dela. a estranheza, o paradoxo entre calor e frieza desse amor que só resiste por ser breve, honesto. de esquina.
(de
Memórias de Patty
Flag) 1
- Nada em minha vida eu chamo de tragédia, porque desses episódios, me
constituo. Para o bem e para o mal, sou a soma de minha história. Não digo
que aprendi a ser livre. Não estou certa de que alguém saiba ou aprenda a
liberdade. Sei de gente que sequer tem prazer na liberdade. Tenho visto
homens e mulheres que dissimulam o gozo da subserviência como quem esconde
um criminoso no armário. Não julgo, compreendo bem o conforto que a
dependência traz. Se eu pudesse escolher, seria menina outra vez e outra
vez, vivendo repetidamente as horas anteriores à prisão de meus pais antes
do maldito novo dia nascer. Mas a liberdade me violentou e carrego nosso
filho no colo. Nada me faria abdicar desse filho torto que sei amar e
odiar. Nada, sequer a perspectiva de voltar para as esquinas da
Lapa. A
surra que Durval me deu, marcou minha carne até os ossos, matou o meu
amor. Levantei-me do chão e fechei a porta atrás de mim, abafando para
sempre os seus soluços cortantes de perdão. Ich hätte gern mein fleisch
und knochen in der ecke verkaufen, prefiro vender minha carne e meus ossos
na esquina. 2
- Fui bater na Vogue, arrancando Mário da cama. O coreógrafo abriu a boca
espantado ao me ver, mas logo transformou o susto em sorriso de
complacência. E com uma deliciosa salada de línguas, revigorou
imediatamente o meu espírito: —
Oh, my cherri jungfrau! Feito
um perfume do tempo, damas da noite mais escura, trouxe-me de volta os
dias em que o Rio de Janeiro abria e fechava a boca para mim como tambores
de um ritual caboclo secreto. —
O que se passou com você? Sente-se, sente-se aqui. Vou buscar um copo de
água com açúcar. Mário,
assim como as mães brasileiras, acreditava piamente que um copo de água
com açúcar tinha o poder milagroso de curar qualquer ferida. De câncer a
soluço. Males da carne ou da alma. Pela
tarde, quando o Barão Von Stuckart chegou, minha aparência tinha piorado
muito. As feridas estavam inchadas e o sangue coagulara, deixando marcas
escuras pela pele. Sem se deixar abalar, depois de cinco segundos
considerando meu estado ainda da porta de entrada, disse sem medo de
errar: —
Vocês nunca aprendem. A vida de casada não é para mulheres como vocês!
Esse até que durou demais! E
completou: —
Em trinta dias, quero você trabalhando. Se não tem para onde ir, pode
ficar por aqui. Mário
bateu palmas de satisfação. Para as ruas eu não voltaria afinal, apenas dobrar mais uma esquina da vida.
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