edição 30 | setembro de 2008
temas:  carne & osso | esquina

 

1 poema
jane sprenger bodnar

sol

suspeitas  de tudo o que se move

atalhos  pelas esquinas de bruma

 

olhos presenciando

crianças assustadas

acusadas de incêndios de luz

  

 

10 poemas
líria porto

 

relatividade

 

a esquina

o sinal vermelho

os carros

o vento

o bailado das folhas

a moça de cabelos soltos

em seu vestido godê

 

(parada

em movimento)

 

 

 

 

garimpo

 

esta procura tem um nome insanidade

passei da idade de tentar fazer soneto

eu só consigo escrever em cinza e preto

acho meu verso não alcança claridade

 

pelas gavetas prateleiras escondidos

ainda agarro pelo rabo alguns cometas

quero as estrelas não encontro suas tetas

sinto a fissura dos pequenos desvalidos

 

a minha escrita sempre foi penosa esgrima

desde menina que não tenho paradeiro

eu caço sapo com bodoque o dia inteiro

 

nesta esperança de catar a melhor rima

sou das beiradas dos botecos das esquinas

a salvação foi ter nascido aqui em minas

 

 

 

 

devagarinho

 

senhorinha quase um século

vai de salto bolsa sombrinha

debaixo da chuva fina

 

parece que adivinha

tem um anjo a esperá-la

na outra banda da esquina

 

 

 

 

botequim

 

na quina da rua

a tonta da lua

fazia ponto

 

igual uma puta

naquela disputa

de homens

 

 

 

 

romance

 

há que haver algum frisson

susto arrepio

pois ficar só por costume

igual o poste da esquina

é muito triste

 

vai amor

melhor assim

procura um olho d'água

uma fagulha um rastilho

algo que te arrebate

 

devolvo-te à vertigem

 

 

 

 

lipoinspiração

 

com todo o zelo que um verso merece

faz-se necessário cortá-lo na carne

lancetar abscessos

sangrar das palavras excessos estridências

deixá-lo direto

 

o resto

dizê-lo em silêncios

 

 

 

 

descompressão

 

não esperava ninguém

não tinha dono

 

viu um cachorro

acompanhou-o

 

vida sem carne

é osso

 

 

 

 

carne de pescoço

 

megera era bela

nariz empinado

o rei na barriga

 

 

quisera vê-la velha

a carregar no dorso

fardos de remorso

como peso morto

 

 

 

 

seta

 

como se fora uma pincelada curva

a cicatriz aponta nosso lado túmulo

 

não é feia nem assusta mas avisa

és de carne e osso e a vida encurta-se

 

 

 

 

bodas de osso

 

mentiras não houve

apenas silêncios

omissão de fatos

ausências

insônias

 

para dourar a pílula

mudavam as vírgulas

de comum acordo

 

durou uma vida

 

vida?

 

 

 
 
 

sem número
lucélia majistral

A esquina nem era bem uma esquina. Uma curva, algo assim. Nenhuma casa, mas um muro pontuando a curva, a não-esquina. Um muro alto e branco, recém-pintado após as recentes eleições. Vazio. Ela caminhava pela calçada e estava sozinha. Ele vinha na direção oposta. Ambos curvavam, passando pela não-esquina, quando se deram. Não a reconheceu de imediato. Não o reconheceu de imediato. Ela primeiro, sempre. Com licença, com licença. E: ele. No que ele: ela. Em plena não-esquina, a meio caminho deste lado ou do outro. Emoldurados pelo vazio branco do muro. Ao mesmo tempo, apontando para direções opostas, disseram: Moro ali. E riram. E depois ela disse: Casa branca sem alpendre. Sei, sei, ele disse. E ela: Grades gastas. Sem número.

 

  

 

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