edição 2 | novembro de 2005
fúria

 

uma faca só ânima
ana l. schumacher

ele ali bruto animal sonhando de pau duro falando coisas grunhindo e eu ali de ouvido atento dura com a faca na mão esperta e pronta e a boca dele mexendo lentamente e os dentes que quase não se deixam ver e os olhos safados ocultos pelas pálpebras moles e eu lembrando do rem e o silêncio quase absoluto estragado apodrecido pelos sons do sono dele e o brilho intranqüilo da faca só ânima só fúria sólida e ao mesmo tempo fantasmagórica como as sombras que passam sobre a minhalma e ele resmungando como a orar logo ele ateu filhodaputa que come meu cu rindo pra imagem do cristo sobre a nossa cama e aquela ladainha lá dele indo e voltando como um enjôo infinito aquela ladainha que entra por uma porta e sai pela outra aquela ladainha das mil e uma noites que eu fiquei acordada esperando aquele desgraçado voltar das noites de orgia pelos bares e pelas mulheres da vida aquela ladainha que parece flauta de hindu fazendo a cobra dele erguer-se como uma igreja barroca e eu ali à espera da coragem de um sinal para que a mão fizesse sua função para que o ciúme saísse do negrume do peito e se abrandasse com o brilho da lâmina mas ele ali cismava em continuar sua ladainha ininterrupta e ininteligível ele com o pau duro sob o cristo que olha triste para o teto parecendo dizer infinitamente eles não sabem o que fazem e eu querendo mais é que tudo se foda aperto com força o cabo e começo a rezar a ave maria cheia de gana foder é conosco maldita sois voz maldito é o puto sobre o nosso ventre dentro dos nossos cus e o cristo à meia luz pareceu sorrir e ele falou sim falou não mais um grunhido indistinguível falou sim falou eu ouvi um som articulado um nome nome de mulher filhodaputa nome de mulher sim o sinal sim ouvi sim o sinal cristo ri e o pau em riste com aquela boquinha cuspidora de proles malditas ri sim ouvi o nome o sinal ouvi nome de mulher e ele sim repete maria filhodaputa maria chupa maria filhodaputa repetiu o nome da vagabunda o sinal o sinal o sinal da cruz faço e pego o pau duro como o pau da cruz o cristo ri e a lâmina brilha como as estrelas do paradiso dantesco e minha mão suada treme no pau dele e ele chupa maria e eu sim eu eu tenho nome de mulher eu sou maria maria maria sou eu porra cristo vai tomar no cu eu sou maria e choro como criança sobre o pau duro dele e ele sorri o filhodaputa sorri e eu maria da graça choro como criança e ele sorri e diz chupa maria chupa maria regina e subitamente rápido como aquele flash nos olhos para a nossa foto de casamento colocada até hoje ao lado da cama as chagas de cristo encarnaram-se.

 

Ana L. Schumacher é geminiana. Filha de mãe coreana do norte e pai coreano do sul. Gosta de ficar de costas pro espelho e adivinhar o brilho do seu rabo de cavalo. É divertida, mas chora muito. Principalmente no circo. Atualmente está desempregada. Mas, num passado não muito distante, já ganhou a vida como vidente.

 

 

manual prático de lapidação
bernadete reutman

O cigarro queima no cinzeiro sobre a pia, bordas amareladas, quando ele passa a mão no cabelo naquele gesto típico de desespero vê que está suja de sangue, os dedos dele, unhas, para que servem minhas unhas, roía-as compulsivamente, o que eu faço, o que eu faço, ele perguntava, pela esquadria de alumínio a noite quieta lá fora, nunca tinha se metido em enrascada tamanha, o corpo de Bruno esfriava no chão da cozinha, uma poça escura de sangue se alastrava, parecia o mapa de Minas Gerais, por que a porra do revólver disparou, se perguntava, e, unhas, unhas com gosto de sangue, roía, sangue no chão, meu sabugo sangra, Minas Gerais, abriu o armário embaixo da pia para pegar a garrafa de conhaque que usava para temperar carnes, não estava ali, lembrou-se que tinha deixado na sala, ao lado do porta-incenso, encheu um copo, o conhaque ardeu passando pela garganta, esquentou tudo, fez cara ardida, outra dose, pensou voltando para a cozinha, desviou-se da poça, que merda, Bruno, por que você inventou de morrer, pensou, olhando de esguelha para o corpo na cozinha, balançou o braço esquerdo e expulsou o relógio para fora da manga do casaco: quatro da manhã, a esta hora era para Bruno estar pegando a porra de um avião de volta para São Paulo ou dormindo ou fodendo qualquer garota de boate, o que fazer, o que fazer, calma Giba, calma, você precisa de outro trago, unhas, roeu a do dedo médio, brotou um sangue vermelho do sabugo, o terceiro trago passou redondo pela goela, olhou para a poça de sangue, agora estava mais se parecendo com o Piauí, compriiiida, riu da bobagem, o Piauí ainda existe, se perguntou, caralho, o sangue está escorrendo para a sala, o carpete vai manchar, um pano, rápido, Giba, onde você tem um pano de chão, perguntou-se sussurrando, na área de serviço, esbaforido, fez cara de nojo, o pano de chão estava cheio de vômito no fundo do balde desde três horas atrás, quando a Camila chegou, ele fechou os olhos suspirando, eles tinham saído de uma festa e ela tinha bebido além da conta, ele se aproveitou da situação e a trouxe para o apartamento, depois de anos vou comer a Camilinha, chegaram, ele quase carregando a moça de tão trôpega, ela pediu um drinque, ele achou engraçado porque só ator americano em dublagem classe B pede um drinque, mas mesmo assim foi no armário embaixo da pia e pegou aquela garrafa de conhaque que usava para temperar carnes, encheu um copo grande de uísque, altos, o copo e eles dois, a Camilinha estava com um vestido de alcinha, ela bebeu a dose de uma golada só, arregalou os olhos, mundo suspenso, e vomitou no carpete da sala, deixa que eu limpo, ele disse acalmando a moça e pensando que aquela mancha não sairia nunca mais, troféu, ai que vergonha, não liga Camilinha eu já volto, foi na área de serviço e pegou um pano de chão, esfregou rápido, fotografando as panturrilhas de Camila para futuras referências, correu para a área, jogou o pano vomitado no balde e voltou apressado, ele sempre teve preferência por vestidos de alcinha, vencida a alcinha, tudo poderia acontecer, me dá outra dose, você já passou mal, é pra tirar o bafo, ele encheu meio copo e ela tomou de uma talagada só, aproveitou a boca ainda ardida de conhaque dela e a beijou, coloca Diana Krall, ela pediu, e ele se entusiasmou porque, além de gostosa, a Camilinha tinha bom gosto, acendeu um incenso de canela, alguém já tinha dito a ele que incensos de canela eram afrodisíacos, sem perceber a aproximação dela, que chegou por trás dele enquanto ele acendia o incenso afrodisíaco e o abraçou, as duas mãos dela trançadas no peito dele, beliscou o mamilo dele, ele não gostava que beliscassem o mamilo, mas Camilinha podia tudo, pegou a mão esquerda dela e desceu, passou as duas mãos dele por trás dela e espalmou aquela bunda redonda, suspiros, virou-se, ficaram de frente, peitos duros encostando-se no peito dele, olhos no decote, ela desafivelando o cinto dele, alcinhas, ah as alcinhas, puxou uma para cada lado e o vestido deslizou para o chão feito anúncio de depilador feminino, que tesão a Camilinha, ela sorriu suspeitando seus pensamentos e estreitou os braços para espremer e arredondar mais os seios para ele, abraçou-a pela cintura, ela disse, espera, afastou-se para dar espaço para abrir a braguilha dele, a calça caiu no chão feito anúncio de alguma coisa de que ele não se lembrava qual, devia ser uma péssima propaganda, língua na orelha dele era outro item que o desagradava, mas Camila, ele repetiu arfante, pode tudo, tudo não que eu não deixo, ela respondeu, ele se sentou no móvel da sala sem entender o que a moça havia dito, encostou no incenso aceso, ai, o que foi, nada, diz, nada, você sabe como se faz para lapidar um diamente bruto, ela perguntou, para quê você quer lapidar um diamante, ele respondeu perguntando, ela disse, só queria saber como se faz, sempre quis aprender, e se abaixou para tirar a cueca dele e não se levantou mais, ele fechou os olhos e no meio do primeiro gemido ouve alguém dizer, que porra é essa Giba, abre os olhos, a luz da luminária da sala como flash, aperta os olhos e olha na direção da voz, Bruno, diz surpreso, ai meu deus, sussurou Camila, se ajeitando, que porra é essa Giba, berrou Bruno, cadê a minha bolsa, perguntou uma Camila assustada, ele percorre o ambiente e acha a bolsinha também de alcinha jogada perto da porta da cozinha, vai até lá e a joga para Camila, como assim, ele respondeu para Giba, ainda meio tonto, enquanto Camila se vestia e zunia descalça mesmo pelo corredor, você sabia que a gente estava juntos, acusou Bruno embolando as palavras, dando-lhe um tranco no peito e quase jogando-o em cima da pia da cozinha, confusão e conhaque, a gente quem, eu e a Camila porra, a cozinha potencializava os gritos de Bruno, eu não sabia eu juro, ele disse desculpando-se e percebeu que sua voz também ecoava nos ladrilhos, eu preciso de um cigarro, pensou ao mesmo tempo, sempre fumava quando não sabia o que fazer, e Bruno gritou mais ainda, não sabia é o caralho, e ele viu o revólver na mão de Bruno, você não vai, não vou é o caralho traidor filho-da-puta, pára de apontar esse revólver, Bruno, alguém pode se machucar, filho-da-puta, cara a gente se conhece desde a quarta série, já entramos numas frias juntos, comemos, namoramos e trocamos um monte de meninas, mas a Camila não podia, por que cara, porque eu tô parado na da Camila, disse Bruno, você tá gostando da Camila, ele perguntou sem acreditar, tô, cabeça baixa e um tanto melancólico, você não podia ter feito isso com o seu parceiro, disse Bruno, apontando o polegar para o peito, ao mesmo tempo que puxava o cão da arma para trás, pára com isso Bruno!, ele disse, e pegou o mixer que usava para bater massa de crepe e acertou a testa de Bruno, a partir deste momento as coisas aconteceram como flashes, ele se sentiu num filme policial, os dois engalfinhados, a arma entre os dois, na cabeça dele de agora, se lembrando, entrava até uma trilha sonora com uma guitarra nervosa, o cheiro de bebida no hálito de Bruno, o disparo, Bruno cai, a arma cai junto e escorrega para debaixo do freezer, ele volta a abrir os olhos e vê que o pano de chão no fundo do balde está com cheiro do vômito de Camila, abre a torneira do tanque, lava, cheiro ruim, joga sabão em pó, esfrega, preciso de outro cigarro, onde estão os meus cigarros, fecha a torneira e cheira o pano, está passável, vai até a cozinha e se encosta no batente da porta roendo o sabugo do indicador, pela esquadria a madrugada vai virando dia e o espelho d'água da enseada de Botafogo vai se pintando de abóbora, ele desconsolado, lamentando que nunca mais teria outra oportunidade de comer a Camilinha e vendo que a poça de sangue agora mais se parecia com o Amazonas de ponta-cabeça, sendo que o Acre entrou pelo carpete da sala, e pensa, será que isso nunca vai ter um ponto final.


Bernadete Reutman começou a escrever por indicação de seu terapeuta reichiano, que julgou que a literatura seria uma excelente válvula de escape para o trauma que carrega desde 16 anos atrás, quando sua irmã, Odete, foi brutalmente assassinada. Segundo Mirna Brunovitch, enfermeira-chefe da clínica de repouso Descanse em Paz, onde Bernadete passou sete anos se tratando, o que mais aprofundou o trauma foi o fato de que o brutal assassinato foi televisionado ao vivo no horário nobre. Solteira, 46, acha toda literatura afrodisíaca e avisa de antemão que está disponível para novos parceiros. Literários, entenda-se. De homem, basta quem a inventou.

 

 

no meio das pernas: reflexos no escuro
cassandra campos

 

c01

 

Agora toda bundinha traz um celular no bolso.

 

c02

 

Viver ou a Arte de bater siricas?

 

c03

 

Gozei gostoso e sussurrei no ouvido dela a maior mentira universal: "eu te amo!". Ela me empurra e nega "ama nada!". O amor assusta, mesmo quando mente.

 

c04

 

Tem histórias que só vou conseguir contar uma década depois.

Tipo: chegar em casa e encontrar sua mulher trancada com um Garotão.

 

c05

 

Descobri!!! O segredo é fazer música para adulto como se fosse para criança. Vide Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brau. O Mistério se estende para a literatura...

 

c06

 

Atitudes ridículas: Millôr fazer poesia, Arnaldo Antunes idem.

 

c07

 

Disse, ontem, a um editor de uma grande editora: "não preciso de você nem para entrar numa fria".

 

c08

 

Paulo Coelho ter realizado seu grande sonho: um acento na ABL. É um argumento cabal. Academias de letras são para medíocres. A escritora de verdade é sua própria fortaleza.

 

c09

 

Sou a dama escolhida para matar o Dragão. Mas sou aquela do desenho animado, que o dragão dá um murro na cabeça e afunda de uma só vez.

 

c10

 

Ontem à noite, sonhei com Raul Seixas. Ele disse: vai mulher! Vai até a imprensa que sempre te fechou a porta na cara e diz "Abre-te Sésamo!". Aqui estou: "Abre-te Sésamo em nome de Raul Seixas". Será que vão respeitar o homem? Será que anos de paparico servem para alguma coisa? A imprensa adora um paparico. Uma biografia. Foi biografia. Pronto! O jornal arreganha as páginas. Tivemos uma dessas necrofilias recentemente. "Abre-te Sésamo". Deixem-me comer o pâncreas de Raul. O pâncreas no último estágio de pancreatite aguada com cachaça.

 

c11

 

Volúpia. Carão. A vida em filigranas filosóficas. Percorrer a História do Brasil olhando sua língua. Olhando-me do portão. A rede a soar. E a vontade de riscar da gramática todos os verbos de ligação, as orações aditivas.

De quatro, sua posição natural. Torço seu rabo. Puxo para o meu sexo. Ele molhado. Eu bêbada. Roça, roça. Um dedo. Dois. Três. Deus jogando dados. Eu suando, excitada. O Diabo molhado.

Reli Felicidade Clandestina. Chorei alto, convulsivamente; meu pão com manteiga é carne de cadela. Carne babando, pingando, soltando pêlos, solvendo macio; entre o lamber e o morder. Triturar. Saboreio um pão com manteiga.

 

c12

 

Prioridades para o próximo dinheiro: um par de óculos escuros e um gravador. Os óculos escuros para me esconder por trás do gravador. O gravador para nunca mais ter que usar os óculos escuros. Nunca mais olhar nos olhos quando estiver mentindo. Nunca mais falar senão a verdade. Nem que para tanto, tenham que entrar na câmara escura, apenas eu, os óculos escuros e o gravador.

 

c13

 

Noite. Céu sem estrelas e coração sem lágrimas. Tudo que escrevo vira ouro. Bijuteria em mão de malandra. A dor é tanta que estraga a caça ao tatu. Noite? O que é a noite? Um sinônimo de morte? Dormir é sondar a morte?

Breton encontrou a melhor maneira de não ter que dar explicações: o surrealismo. Agora eu, uma camelô vendendo palavras no grito, na clarividência de uma caçada. Uma caçada ao tatu. O cachorro acuou o bicho. Fomos todos, inclusive eu, o camelô vendendo carne a preço de vísceras.
 
Cavamos, cavamos, cavamos a noite inteira. Quanto mais cavávamos, mais o tatu se enterrava vivo, mais ia fundo. Caso a vida seja mesmo esse buraco sem fundo, o tatu é doutor honores causa em viver.

Deus e um resto de pólvora nos dedos. Botas, gibão, rifle calibre 38 e minha compulsividade por escrever empestada de terra. Terra à vista! Na vista, nas unhas, na calça, no gibão e nas botas. Só a alma jazia impune. Vendi a alma na feira, a preço da banana no final de festa, para escrever. Eu e o tatu cavamos o mesmo buraco.

Chega de autopiedade. Comi carne de tatu no rincão do Piauí! Buracos para todos os lados. Escapa, apenas, a máquina elétrica em que escrevo. Salva-se, somente, tecnologia e a conta no final do mês.

A fé é tão inútil quanto a minha boa educação. Ambas, hipócritas feito o amor!

Amar é aprender a mentir. No sertão de mim. Onde vivia uma história já sabida. O tatu escapou por entre a mentira de um Deus analfabeto, contador de causo e de clichê interiorano insuportável, que sabe caçar um tatu, mas um encanador no que se refere a buracos.

 

c14

 

A máquina engoliu o homem, parece velho, mas é velho porque ninguém deu conta. O homem só pensava em casar, ter um orifício para meter após o trabalho; uma ilha cercada de computadores por todos os lados. A mulher queria construir uma família, um carro para ir à praia. Enquanto o tempo urge a carne cai e aparece mais um gênero de máquina mortífera no botequim da esquina.

 

c15

 

Para lamber o cu da mulher dele tinha que lamber o cu dele. A filarmônica executando o Quebra Nozes e eu lá funga funga fugando.

A mulher dele era um tesão. Depois descontei minha raiva naquela loirinha sem graça do cuzão.

Tenho uma enorme dívida com a música clássica. Nunca fui a um concerto. Tenho tempo para tudo. Para lamber esse veado que tem um cuzinho rosado (estou falando do cuzinho dá esposa!). Tempo para ir a lugares que são uma completa perda de tempo. Tempo para assistir Fórmula I. Tempo para encher o bucho de cachaça. Só não tiro tempo para a música clássica.

 

c16

 

E a máquina vomita um punhado delas. Mete-as no bolso. Pede mais uma pinga. Floripa está fria demais para quem veio do norte. Rio Amazonas acima. Banhos noturnos e a solidão do mundo.

Mete a cabeça na janela e leva uma bolada. Bate o carro e acorda na UTI. Dizem que antes de morrer... Não! Esqueça! Não dizem nada. O amor? Mentira de colegial. Eu sou a assassina dos dois prefeitos do PT. Eu cheirei cola comemorando a morte de Burroughs. Na terceira, minha vagina vira um escafandrista. Lubrificante a base d'água. E eu. Essa personagem. Lambe um cuzinho com hemorróidas, calvo, aidético e banguela. O cu mais saudável do Ministério da Justiça.


(Do Diário de Cassandra Campos)

 

Cassandra Campos tem 21 anos. É prostituta. Filiada a APROC — Associação das Prostitutas do Ceará. Prostitui-se na Praia de Iracema. Um dos cartões postais de Fortaleza. Cidade onde nasceu e vive até hoje. Vem se destacando como uma das mais proeminentes escritoras da Geração 00. Odiada por seus pares, as novas escritoras da sua geração. Só porque é prostituta e escreve de maneira universal. É a favor da legalização da profissão. Acredita que as profissionais do sexo devem pagar ISS. Dia desses encontrou-se com a também escritora cearense Tércia Montenegro e as duas bateram um longo papo sobre literatura.

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astro, antibiótico de terceira geração
catarina vedruna

Sentado em sua mesa, ele reflete. Sentado em sua mesa, cara a cara com máquina, suas íris refletem o espaço e a máquina. Quando alguém lhe dirige a palavra, ele pára o trabalho e, por cima dos óculos, encara a pessoa. A barba branca esconde o rosto, que já não é mais aquele, é um que ele não se recorda qual é, tanto tempo faz que não encara a face num espelho sujo de um banheiro sórdido. É agradável pensá-lo quando explica alguma coisa, envolto de razão, esse homem racional, "acredito na ciência". Pára o trabalho, tira os óculos da face, como que para a pessoa enxergá-lo melhor, absorto nas burocracias obscenas da vida sem razão num ambiente que se esconde no olho de um furacão que atravessa o nada, e nem a nado se sabe onde fica, tal paraíso do diabo. Segura os óculos por uma das hastes, entre os dedos polegar e indicador, com o cotovelo apoiado sobre a mesa cansada de vida. Crava os olhos, escondidos, lá atrás das rugas que se exibem descaradas na pele exausta, de um azul marítimo esses olhos. Quando a pessoa se vai, ele põe os óculos de volta e se levanta, troca de cômodo, enfrenta a sala cheia de mulheres histéricas com suas vidas histéricas e engole um pouco do café, fraco e passado em coadores velhos como o mundo, feito daquele pó de galhos... Põe a xícara gasta com as mãos gastas da vida na bandeja, e uma melodia ao piano, grave, grave, grave, passeia pelas idéias loucas que surgem, a cerveja depois do dia, no crepitar da noite, assistindo o trânsito morrer devagar e largar no asfalto aquele cheiro de pneu gasto e combustível queimado, de tempo perdido por quilômetro rodado... A idéia louca de transgredir a boa conduta... Nessa altura da idade.

 

Catarina Vedruna sempre viveu na cidade que é cercada de verde. Um verde maltratado, mas ainda assim verde. Desde criança sempre foi muito observadora, e pensar que a literatura pode ser um mar de entremeios e entrelinhas e detalhes a impulsionou à escrita. Não gostava de estudar, hoje é professora. Não gostava de falar, hoje conta histórias. Mesmo que tortas... Tem 27 anos, não provou de casamentos ou maternidade, mas espera quem sabe vamos ver sabe-se lá por que não? um dia provar desse desconhecido. Escreve bem quando está mal. E basta.

 

 

quatro
cláudia villela de andrade


a vida como ela é

para Nelson Rodrigues

Mãe e filho dormem em um degrau da escada da Igreja Nossa Senhora da Paz, Ipanema, meia-noite. Trapos, papelões, restos de tudo que um dia foi coisa inteira. O rapaz desperta assustado, enfia a mão por baixo do pano e tira uma lata de cola. Uma cafungada bem profunda e ele enxerga Deus sorrindo, penteando os longos cabelos, vestindo a túnica branca. Deus, finalmente, existe. E ele pode dormir em paz. Antes, porém, prevarica com a mãe, ali, na porta da Igreja, na presença de Deus consentido.

 

overdose

No canto escuro da rua, ela agachou como se fosse urinar. Arregaçou a manga da blusa imunda, amarrou o antebraço com elástico e, sem dó nem piedade de sua veia, quase dissolvida, aplicou o líquido como quem alimentava um filho. Imediatamente o corpo escorregou inteiro para o chão e ela recostou-se ao muro branco que delimitava o fim da rua.

Tombou a cabeça para frente, enquanto a espuma da saliva escorria boca afora. Colocou a mão no estômago que doía e lembrou-se de que não comia havia três dias. Com muito esforço, levantou o olhar vermelho para o corredor comprido e conseguiu levá-lo até o início da rua. De lá, vinha em sua direção um séquito, acompanhando um caixão empurrado por rostos sem muita expressão. Com dificuldade, murmurou para si:

— Para onde vão esses babacas se esta rua não tem saída?

 

o beijo da morta

A porta do carro se abriu de repente e uma mulher rolou lá de dentro, caindo na estrada. Os carros que vinham atrás freavam abruptamente e ainda batiam uns nos outros. Os olhos da desamparada verteram lágrimas que lhe salgaram a boca ensangüentada. Acariciou, vagarosamente, os seios e mexeu a língua como quem pede um beijo ardente. Ninguém deu. A morte já estava ali, às margens da pista, ejaculando precocemente o sêmen da nova vida.

 

as horas

Que elas passem debaixo da torneira fria, enquanto o cantor de banheiro se lava rapidamente. Enquanto a alma estrebucha de agonia. Aflita, sem caminho. Sem volta. Enquanto a morte mostrar o valor da vida e Woolf deixar de ser Virginia. Eu não vejo mais as horas desde que soube que o pó nosso de cada dia se mistura à terra. Sem privilégios, os minutos se deslocam diferentes uns dos outros. Nem pedras pesam tanto. Nenhum peso afoga mais. Dentro de mim, apenas o meu tique-taque.


Cláudia Villela de Andrade (Rio de Janeiro, 1956). Professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o 70º lugar pela Academia Brasileira de Letras, no Concurso de Redação para Professores de 2001, entre 6032 textos inscritos, fazendo parte da coletânea Devemos ver com olhos livres (frase de Oswald de Andrade). Fundou o Grupo Virtual Pax Poesis Encantada e publicou dois e-books na Internet, um deles de literatura infantil: Brincadeira de gente grande. Organizou e participou da antologia poética do grupo, DiVersos (Editora Scortecci, 2002) e da antologia de prosa, Com licença da palavra (Editora Scortecci, 2003).

 

 

 

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