edição 2 | novembro de 2005
fúria

 

cinema mudo
Márcia do Valle

Lucia estendia a roupa quando o marido chegou. Cheiro de cachaça na voz. Gritos e acusações nos olhos. Tapa na cara daquela mulher que estendia roupa, mas que Lucia sentia como se fosse outra pessoa, não ela mesma. Ela, Lucia, se encontrava passeando num jardim florido, olhando o azul do céu. Não, não era da boca dela que estava vindo aquele gosto de sangue. Não era o ouvido dela que estava zumbindo. Não era no corpo dela aquela dor latejando, nem era o vestido dela que estava sendo rasgado. Essa era a realidade daquela outra mulher, que ela assistia de longe. Olhava o marido abrir as calças como quem assiste um filme. Só faltava a pipoca. Contemplava a cena do estupro como uma espectadora que torce pela mocinha. A espectadora que chega a dar conselhos para a protagonista, mesmo sabendo que sua voz não chegará do outro lado da tela. Ah, minha filha, eu se fosse você já tinha largado esse homem. Mas nada daquela mulher escutar a voz de Lucia e colocar um ponto final. Nada daquela mulher obedecer aos conselhos de Lucia e desistir de revidar. Ela trancava e o outro arrombava. Ela vedava e o outro invadia. Ela imaculada e o outro contaminado. Ah, minha filha, não vê que ele é mais forte do que você? Não, aquela mulher não via isso. E por mais que Lucia repetisse para ela não resistir porque seria pior, mais ela resistia. E quando mais Lucia via a proximidade entre o marido e a faca da cozinha, mais a mulher se debatia. Ah, minha filha, deixa ele fazer o que já começou. É seu marido, tem direito. Mas não, a mulher se debateu até que Lucia viu a mão dele na faca. Até que Lucia viu a faca entrando no corpo daquela mulher. E por que é que seus dedos estavam ficando dormentes? Não, ela não estava dentro do filme. Não havia motivo para sentir a faca em seu corpo também. Não havia sentido em ter sua visão embaçada nem se engasgar com o gosto de sangue. Ah, minha filha, por que você não me escutou?

 

Márcia do Valle é carioca, escritora e vive procurando por si mesma. Já conseguiu encontrar suas mãos, seus braços, suas pernas, mas seu sentido continua escondido. Os pedaços de si mesma que já foram achados, podem ser lidos no seu primeiro livro, o romance 180 Graus (Editora Marco Zero), e em seu blogue, Solta No Mundo.

 

 

 

irreversível
márcia maia

Muito tempo depois, o encontrei. Na plataforma da estação. E eu que tanto me esforçava para não lembrar aquele dia, em segundos e em detalhes, o revivi. A faca, o grito, a roupa rasgada. O barulho dos carros passando na estrada. A escuridão. O mato me arranhando as costas.  A sede. O sangue. O desespero. A dor. E ele, o maldito, tomando posse do meu corpo como fosse entulho, lixo. Até se fartar. E me deixando ali, à beira-nada, sangrando, chorando, doendo, para morrer devagar, eternamente, a cada dia, a cada noite, a cada ano. Fingindo ter esquecido. Fingindo não sentir o medo todo o tempo ao meu lado, grudado à pele, à minha pele. Senhor e dono e amante e algoz e tirano: o medo. Por tudo isso, quando o vi parado à plataforma da estação, não hesitei. Esperei até ver a luz do trem, da locomotiva do metrô, bem perto. E o empurrei. Na correria para entrar no vagão, ninguém percebeu. E eu, naquele exato instante, criei asas. Mas não ressuscitei.

 

Márcia Maia (Recife/PE) é médica. Tem poemas publicados na Revista Poesia Sempre nº 15, da Fundação Biblioteca Nacional (novembro de 2001). Em 2002, seu livro Espelhos foi premiado no 3º Concurso Blocos de Poesia. Participou da Antologia Poetrix (2002), da Antologia Escritas (2004), do Livro da Tribo (2004 e 2005), da antologia Poesia do Nascer, editada em Lisboa, Portugal (2005). Foi incluída na antologia Pernambuco, terra da poesia: um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI (2005). Publicou Espelhos (2003), Um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas (2004) e Em queda livre (2005). Escreve em revistas e sites da internet. Edita os blogues Mudança de Ventos e Tábua de Marés.

 

 

 

o anjinho da mamãe
sandra baldessin

Caminha apressado, esbarrando mesmo nas pessoas com as quais cruza. A mão esquerda, guiada por um comando superior, risca as fachadas das casas, das lojas.  Isso é real, isso é real, isso é real. O suor escorrendo dos cabelos para o rosto, molhando o pescoço, as costas. Sente as virilhas úmidas. O suor, sim, o suor é uma prova incontestável de que ele também é real. Real enquanto matéria viva, apodrecendo sob o sol de janeiro.

 

Não consegue evitar, mete o nariz nas axilas. O cheiro azedo da decomposição que um dia será plena. Sente-se nauseado de tão feliz. Se está fedendo é porque existe. Basta-lhe essa compreensão. Assalta-o o desejo de se apalpar; vem tão intenso que é impossível resistir. Toca os próprios braços, o peito, os testículos, freneticamente. De fato, existo. E se existo, esta rua  pela qual caminho também é real, e aquela árvore...

 

Dá uma pequena corrida até o final da calçada e abraça-se à arvore, um flamboyant. Inspira profundamente, esfregando o nariz, o rosto, no tronco. Vontade de rir e chorar enquanto gira ao redor do tronco. A canção, lembra-se daquela canção? Cantava-se  de mãos dadas ao redor de uma árvore, num lugar tão distante chamado infância.

 

Por que partira de si-mesmo-menino, deixando o aconchego de um mundo que cabia no abraço da mamãe? É verdade que recusara-se até o limite das possibilidades! Mas, os braços, as pernas, desandaram a crescer; pêlos escuros, intrusos, nasceram em seu peito, no rosto, em seu sexo, e não adiantava mais a mãe chamá-lo "meu bebê".

 

O anjinho de mamãe não se via mais no espelho. Já não era real. Quem seria, meu deus, aquele homem de olhos negros que o fitava tão surpreso? E o medo, sim, o pavor de que a mãe descobrisse que ele não estava mais ali? É verdade que ela parecia não perceber.

 

E não fora sempre assim? Lembrava-se de chegar em casa chorando, porque a professora insistia em dizer-lhe: você já está um homenzinho. Mentira que a mãe negava entre beijos: meu bebê, o anjinho da mamãe não vai crescer, venha no colinho da mamãe, venha. "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta..."

 

Um guarda municipal o aborda. Que diabos está fazendo girando feito um doido em volta dessa árvore? Vamos, vamos, que maluquice é essa? Esta é uma cidade tranqüila, não gostamos de nenhum tipo de malucos. Vai ver... está drogado, é isso? Mas, era só o que faltava! Aqui não toleramos essas coisas, não! Apontava o dedo para o seu rosto enquanto falava e suas bochechas gordas tremiam. A voz saía estrangulada de uma boca sustentada por três queixos.

 

Seria real esse homem gorduroso metido numa farda azul escura? Estende a mão para tocá-lo, certificar-se de sua existência. O guarda agarra o seu braço estendido e começa a torcer. A dor é intensa. Se está doendo, então é real. Graças a Deus! Sorri, um sorriso que é uma careta de dor e de alívio e que o seu agressor interpreta como escárnio.

 

Seu filho da puta! Esta é uma cidade de gente normal; gente normal, entendeu? Olha ao redor, furtivamente, antes de desferir um murro nos rins do rapaz e, em seguida, outro que o atinge no nariz.  Sangue, isso é sangue... Estou sangrando porque existo. Uma onda de insuportável felicidade domina o seu coração; felicidade que se extravasa através de um fluxo incontrolável de gargalhadas guturais.

 

Seu corpo está possuído de tremenda energia, a energia de saber-se real. Tenta abraçar o guarda, envolver aquela montanha de carne que tão generosamente demonstrou o quanto ele existe. Existe, na verdade, a ponto de sangrar! Quantas vezes, trancado no banheiro, ele próprio se infringira um corte com a lâmina de barbear, desesperado, precisando do testemunho da dor e do sangue para sentir-se parte da realidade.

 

Oh! Como ele ama aquele ser humano uniformizado, fedendo à cachaça e torresmo!  Pensa que deveria dizer algo ao guarda, mas as palavras sempre lhe pareceram insuficientes para expressar seus sentimentos. Fica apenas olhando-o com devotada atenção.  Sim, ele sabe reconhecer a fúria quando a encontra. Quase sempre se revela no ferro do olhar, nas mãos que se contorcem... Porém, a boca, claro, a boca é a testemunha mais fiel da ira: antropofágica, salivante.

 

Aproveitando-se do lusco-fusco, aquela hora estranha na qual as pessoas parecem desaparecer na névoa de si mesmas, o guarda arrasta sua presa até o automóvel, estacionado próximo dali. O rapaz não resiste. Acomoda-se no banco para o qual foi empurrado como se tivesse recebido convite para um passeio.

 

Não resiste nem mesmo quando o legítimo representante dos homens normais arranca-o com violência do veículo, esmurrando-o apaixonadamente. Caído, seu corpo jovem é chutado, a botina pesada contra suas têmporas. "Sambalelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, sambalelê precisava, é de umas boas palmadas..."

   

A lua surge por detrás das nuvens no exato instante em que o guarda, abrindo o zíper das calças, revela a faca e o pênis, explodindo num orgasmo primitivo.

 

Lâmina e luar, mesclados, dão ao rapaz a ilusão perfeita dos olhos afetuosos de  mamãe. Adormece, a sua voz acalentando-o. " Dorme neném, que a cuca vem pegar..."

 

 

 

Sandra Baldessin. Escritora, arte-educadora e consultora em Comunicação Escrita; realiza oficinas de formação de agentes de leitura; oficinas de criatividade e liberação de linguagens criativas com base na educação sensível; é contadora de histórias e realiza, também, oficinas de terapia literária. Em 2003, lançou A cidade: espaço de vivência cultural, ensaio abordando os cenários culturais da cidade de Rio Claro/SP; em 2001, publicou À flor do verso, coletânea de poemas. Está terminando de preparar mais três livros, a coletânea de contos Capitus?, os poemas da coletânea A vingança dos objetos e Didática do desejo, uma abordagem sobre como despertar o prazer pela leitura, fundamentado nas experiências das oficinas. 

 

 

 

1 poema
sofia bacante

toda fúria vem do útero

Minha fúria vem do útero e sai pelos meus dedos tortos, vira tinta no papel
Minha fúria dói e vai para tudo o que não sou eu
                                           tudo o que escapa ao meu ver
                                           e está fora do meu controle
é uma fúria alimentada nas entranhas
         fúria visceral que esquenta o sangue, que sobe no olho e estoura
é uma fúria que vem de cada nota seca de Bethoveen e que arde em chacras expostos

Porque sou vítima e sou ré

Sou o toque mais duro e áspero, minha vida vai além de mim Além-mar,
já não posso escapar
do escopo de minh'alma furiosa

      porque não posso escapar de mim.

 

Sofia Bacante. Sempre sozinha. Já trabalhou como prostituta, hoje escreve e está iniciando seus estudos em filosofia como autodidata. Gostaria de ser fotógrafa, pintora, escultura, música, cineasta. Não tem faculdade.

 

 

 

 

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