edição 2 | novembro de 2005
fúria

 

furores
silvana guimarães

a prima C. despedaçando no meio-fio a cabeça de louça da minha primeira boneca
os dentes de leite
a apatia da Santíssima Trindade
a cor branca
o corpo de Hitler descendo aos infernos
o vestido do primeiro baile, de veludo, me consumindo
o fogo que arde sem se ver
o silêncio de Guantánamo
um gato molhado
a letra A
o último tango em Paris
o olho amputado de Abu Ghraib
a sandália havaiana do atropelado revirando-se pela avenida
as jaulas
uma mulher morrendo por lapidação na Arábia Saudita, Paquistão ou Nigéria
a banda de música do 11° Batalhão de Infantaria de *
às 12h31m na Av. Paulista
o tempo: as rugas os fracassos os vícios: o tempo
o terceiro movimento da Nona de Beethoven
o responsório de Santo Antônio
as quintas-feiras
a hipotenusa
play it once, Sam, for old time's sake
a sombra da solidão no escuro
o poema As Coisas, de Borges
o signo de Escorpião
a distância entre o estampido do revólver e a parede
a palavra in-can-des-cen-te
Genaro, quando abro as pernas e deixo-o entrar

 

 

 

feu
silvia devereaux

Daqui posso ver meus pés. (Eu não devia poder; já explico por quê.) Muito bem cuidados, lixadinhos, hidratados, as unhas pintadas de ameixa. Havia uma bicha no meu trabalho que adorava meus pés; dizia, essa bicha, que se tivesse pés como os meus seria uma rainha. Uma vez, numa festinha, pus meus dois pés nas bochechas dele. "Ai que macios", ele suspirava, "ai que gostosos". Mas gostava deles como gatos gostam de almofadas - não ficou de pau duro, não respirou mais forte, não lambeu nem beijou as solas. Era uma bicha.

Deus me deu bons pés. Estou orgulhosa deles, com um pouquinho de dó - daqui a pouco vão arroxear. Pendem muito retos, como reto está o resto do meu corpo. Com a exceção da cabeça, que está caída para a frente, inclinada à esquerda sobre o meu pescoço destroncado. Estou enforcada e morta, rodeada de espelhos num quarto de motel, e olho meus pés com orgulho. Uns quinze centímetros abaixo deles, no chão, estão as sandálias que eu usava. Lindos os meus pés em breve roxos.

Eu não me matei: não sou disso. Estas breves linhas nunca vão fazer com que você entenda quem e o que eu era, mas pode acreditar quando digo que eu não me mataria. Lutei bravamente antes que ele conseguisse me pendurar aqui. Tenho um olho roxo, uns hematomas feios nos braços e no rosto, e acho que me faltam uns três dentes: apanhei para valer. Diria que ele deu tudo de si, o que, aliás, ele sempre fazia, se adequadamente provocado. Pena que o tudo dele fosse pouco, muito pouco; e pena também que eu seja, ou que aliás eu fosse, do tipo que sempre deixa muito claro o quão mais esperava.

Metade do desprezo que eu tinha por ele era verdadeira, e a outra metade era pura farra. Às vezes eu me confundia, ora achava que não o desprezava nada, ora o achava abjeto por inteiro, mas no geral sabia separar direitinho o que ele tinha de bom e de mau. O mau era muito, do pouco dinheiro ao corpo ruim ao bafo estranho ao ressentimento e à vontade de falhar. O bom era pouco, mas esplêndido: os olhos selvagens, o medo nenhum de ir ao mais fundo da dor, o desespero de um cavalo cruelmente picado puxando uma charrete atolada. Nunca o amei, mas quantas e quantas vezes me esqueci de mim mesma no meio daquele tumulto! Isso quase vale a minha morte.

A corda áspera que machucou tanto o meu pescoço - o ruim de morrer é que a gente lembra do que custou em dor, em agonia - tinha outros fins. Surpreendente que o aro do lustre tenha agüentado o peso do meu corpo, eu que o achava meramente colado ao estuque: agora começo a pensar que estes lugares são bem construídos, ou que dei o azar de achar um que fosse. Não enxergo a cama que lembro desfeita; este meu cadáver ainda está sem as calcinhas sob o vestidinho fino e preto, é possível que um filete gosmento possa ser visto brilhar perto do meu joelho - nem tive tempo de me lavar. Será que os policiais vão rir? Eu mesma riria, se pudesse; mesmo morta, tenho vontade.

Também, comecei logo depois que ele acabou. Fica feio se eu disser que nunca gozei com ele? Tarde demais, já disse. Nesta última não tinha gozado de novo, mas isto não era mais problema: já tinha me conformado, com uns não se goza nunca, paciência, e felizmente há outros. Mas eu tinha me esquecido de que ele era só metade desprezível; comecei a desprezá-lo por inteiro, perguntei "já?", e depois "só isso?", e depois ainda comecei, com voz de quem comenta o preço do peixe, a contar o quanto um certo fulano resistia, o que fazia, e na minha vozinha mais fininha ainda deixei escapar que preferia estar com ele, com o fulano. Era mentira, mas não cem por cento mentira; preferia o fulano em vez dele, mas nem sempre, e naquela hora eu estava aborrecida e em dúvida, e só queria fazer a ele algum mal. Porque ele gozava sempre e eu nunca. No fundo nós não somos difíceis de entender, somos?

O soco me pegou de surpresa, confesso. Dizem que homem bater em mulher é covardia, e no geral eu concordo; mas há vezes em que não bater é covardia maior ainda. Que medo pode ele ter de dar um ou dois tabefes numa mulher, um chute, uns empurrões? Que é que há com ele que não é capaz de dar uma cabeçada, ou torcer o braço de uma mulher para trás e mandá-la calar a boca? Ele era assim, ele tinha esses medos, ele parecia achar que eu poderia ameaçá-lo nisso, além de em todas as outras coisas. Por isso eu o desprezava, por isso achava que aquele soco estava mais distante que a lua, por isso eu riria à idéia se não estivesse toda concentrada em humilhá-lo.

Mas veio o soco, eu tonteei, e a boca se encheu de sangue e de um gosto metálico - era o lábio cortado. Será que eu gritei? Veio um segundo soco que ele deu com a outra mão, este na minha têmpora, um trabalho coordenado: os homens passam a vida aprendendo a bater, batendo, como eles resolvem as coisas sempre assim, não é? Eu não tinha como reagir, e creio que nem reagi como se deveria: devo é ter me debatido, esperneado, e nisso eu o acertei em algum lugar, fiz alguma coisa feliz, porque ele caiu da cama e eu rolei pro outro lado. E então eu gritei, furiosa e inconformada, eu apanhando dele?!, logo dele?! Ele não tinha, ele não tem gabarito para bater em mim! Ele com suas mixarias, seu corpo feio, seu pinto pequeno com aquelas duas ou três gotinhas tristes como laranja passada, e que nem tinha força para me puxar e levantar a minha bunda dos lençóis, ele que nunca me mordia! Gritei isso e outras coisas até que a mão branca e rosada dele, aquela mão tão indecisa, me puxou pelos cabelos. Bati, levei, mordi, fui mordida, enfiei os dedos em algum lugar mole, talvez num quarto ao lado ouvissem a gritaria e começassem a nos invejar - e, se me perguntarem, eu diria: invejem mesmo, que até a desgraça, quando profunda e selvagem, é boa. Um segundo de lucidez no meio daquela luta e eu começaria a gargalhar, e me deixaria tomar pela maior das alegrias, e ficaria louca de vontade de fazer amor de novo, com ele, com outro, com alguém que pudesse me foder com a força que eu queria. Acabei quando ele conseguiu me acertar na nuca, desabei, sei que sangrei muito, e no chão fiquei.

Não sei o porquê da forca, que senso de ridículo ou de dramalhão ou que transporte de ódio. E se eu só puder ter certeza de que foi ódio, agradecerei, morrerei agradecida, irei aonde tiver de ir sabendo que um dia alguém se transtornou por mim a ponto disso. Mas a forca, por quê? Ele podia ter-me moído ali no chão mesmo; podia ter cavucado no meu ventre e espalhado minhas tripas em torno, como um índio, um lobisomem; podia quem sabe ter estuprado meus pedaços babando e gritando como um louco. Que sei eu? Sei que, se fosse despedaçada, entenderia; mas a forca, a idéia, pensar nisso, pendurar corda, me erguer, dar o laço e puxar meu corpo: o que é isto?

Agora o ouço entrando de volta no quarto, ele que devia estar mexendo no meu carro. Vejo-o com um balde cheio de urina; não sinto o cheiro, estou morta, e aquilo não é urina, embora se pareça, e embora até rime. Não tenho mais tempo de contar, mas por favor registrem: houve um tempo em que me meti a escrever poesia. Fiz sonetos rimados e com sílabas contadas; infelizmente, não trago nenhum de cor. Também não os pus por escrito. Que poeta o mundo perdeu.

Não sinto o contato do líquido com o meu corpo, não ouço o splash, mas vejo-o estranhamente espalhar o líquido em tudo, e até em si mesmo. O próximo passo é vê-lo fuçar em minha bolsa, sabendo o porquê - eu fumo, ele não, lá está o nosso funeral viking, espero meio enlouquecida a qualquer momento uma ária romper em algum lugar, e é por isso, por causa da ária, que me lembro: Tristão e Isolda.

Eu estou morta, mas à faísca e à primeira labareda do meu isqueiro - Tristão e Isolda - meu coração morto ainda se inunda de ternura: eu entendo, e então mergulho, apaixonada, no clarão.

 

 

1 poema
valéria tarelho

porralouca

brindes
de fúria
aguardente
drinques
de sangue
drugs

[life] é esse
filete
de veneno
que trago
na língua
e guardo
nos dentes

[pus
à mostra]

banquete
que pulsa
veias
vísceras
carne crua
carniça

loucura seria
bebê-la [vida]
água com açúcar
mastigá-la sopa
[fria de ócio]

sugo & mordo
essa vida
pútrida
antes que ela
[vampira]
me engula

 

 

não diga
verônica couto

Há uma palavra para isso. Tem uma palavra ótima para isso. Tem, mas não vem. Olhei a cena outra vez pela janela do ônibus. A sensação era tão poderosa, concreta, devastadora, que pensei: agora ela vem, a palavra. Uma necessidade horrível dela. Porque tem mesmo uma palavra perfeita para isso. E, de repente, me escapa.

 

Em casa, continuo obsecado pelo diabo da palavra. Na sala, ligo a tevê sem interesse. Parece mentira. Parece uma coisa. Estava lá a mesma cena, noticiada. Dentro de mim, cadê a palavra. Sei que ela existe. Um jeito de dizer, uma expressão bastante comum, todo mundo conhece. E que é exatamente o que define um lance desse. O locutor na tevê estava falando. -Diante disso, segundo o representante das entidades da sociedade civil, só há uma coisa a ser dita:...E disse. Mas eu não ouvi, que passou um jato. A única palavra a ser dita, eu perdi. Pode ser que nem fosse a mesma, e eu finjo que me consolo. Porque as coisas não-acontecidas guardam pelo menos esse conforto, vai que... nem ?? eram as tais.

 

Sem conseguir me livrar dessa ausência, desse quase-lembro-mas-não-lembro da palavra, aquela coceira dentro de mim continuou noite adentro, cavucando uma insônia. A memória repetia a cena vista de relance, já esmaecida e sem tanto impacto visual. Mesmo assim, sufocante, e piorada pela dificuldade de atravessar o branco e desembarcar na palavra escapadiça. Daí dei de buscar sucedâneos na literatura, nos filmes. Que aquela cena, encarada assim, só nos ossos, estava inscrita em um montão de outros dramas. Nem por isso, menos... o quê? A forma x-y-z de doer - essa do vocábulo que me escapa - tinha tremenda força magra. Palavra reservada. Maldita, digo, indigitada.

 

 

*

 

No outro dia, ainda não consigo encontrar a palavra. Já começo a desanimar, acho que nunca mais ela vem. Feito aquela m??enina, sumida faz três meses. Aliás, uma das razões para esse furto de expressão pode ser mesmo aquela menina, fazedora de lapsos. Tatuada, lépida, aneizinhos no umbigo, na orelha, repertório eclético, um pé na marcha dos sem-terra, outro na casa do traficante. Hoje querendo ter filho, amanhã numa turnê oriental. Tudo fazendo sentido, se bem que um sentido meio mole, meio pastoso, meio barro, meio tijolo, mas tudo colorido, música, miçanga, fruta de nome esquisito, boemia, palavrão, passarinho.

 

Ou então, vai ver, pensando bem: - menina de rapina, lanceira. Roubando os miliuns projetos que vivem na alma da gente, secando a pimenteira da varanda, misturando verdade e mentira, fazendo esquecer a palavra. Até se criar, ficar forte, ir embora, espertinha.

 

Vai ver que nada. Vai ver, era só a coxa, o olho preto, sei lá. Vai ver, era só um jeito dela assim, uma coisa... Como é que se diz isso?

 

 

 

 

erínias
adriana zapparoli

escrevendo pela pulsão da carne. apasionatta: o ato resulta da impotência duma mulher desgrenhada. seu pescoço para o almoço. aterrorizado pelas erínias... um trágico delírio. deuses-homens todos soterrados pela vingança. ela o persegue na fúria de seus cabelos ofídicos em caracóis de medusa e megera. gritando aos seus ouvidos... gritos vindos das profundezas ctônicas. empunhando os chicotes. suas mãos são tochas acesas.

 

Adriana Zapparoli participou de antologias poéticas no período de 2002 a 2005. Colabora com o JP de Soares Feitosa. Escreveu o e-book de poesia: Erótica. Mais em seu blogue Zênite e no Jornal de Poesia.

 

 

!
alice barreira

puta que o pariu, a gente avisou, não avisou?, mas a filha da puta com a mania de ser teimosa feito uma vaca, ah, que porra, caralho!, por isso que eu não gosto de gente velha, tem mais é que morrer mesmo, puta merda, o Mô foi legal, deu o toque nela quando assaltou a casa dela, e não foi nem assalto pra roubar que a puta da velha mal tinha o que roubar, caralho, foi um toque e não é todo mundo que tem essa paciência, esse lance legal que o Mô tem, porra, então?, então era pra ela se tocar e parar de encher o meu saco, não era?, claro que era, pensa o que, a filha da puta?, só porque é minha avó e me criou, foi lá no interior do Piauí e me trouxe pro Rio pra ser gente, só por conta desse lance a piranha acha que pode me mandar a vida toda?, acha?, mas puta merda, nem fudendo!, nem fudendo mesmo, caralho!, o que que o Mô tirou da merda da casa?, o quê?, a cama, a tevê, uma geladeira que só funciona debaixo de porrada, e foi um favor tirar aquele monte de bosta de lá, o celular ficou comigo, pra que que a filha da puta quer celular?, pra quê?, porra, vai ligar pra quem?, qual o viado escroto que vai falar com ela?, a vaca da patroa?, que vá ligar pra puta que o pariu, outra velha filha da puta, eu tô falando que velho tem tudo que morrer mesmo, caralho!, ainda mais aquela putona daquela patroa cheia da grana, tá bom mesmo do Mô dar um chega lá na casona da vaca e fuder com ela legal, que a escrota sempre sacaneou minha avó, esses cornos desses ricos pensam que a gente é escravo, tem mais é que esculachar mesmo, geral, pega uma faquinha bacana e abre logo uma buceta no meio dos cornos dela, aí ela aprende no ato, então não aprende?, porra, aprende mesmo, só de ver a gente fazendo os ganhos, mas na casa da vó não foi ganho nem roubo, esses filhos da puta pensam o quê?, roubo eu sei o que é, que quando o Mô manda ele manda mesmo de chegar aqui com mais de um caminhão carregado, caralho!, quer saber?, essa bosta de gente não entende porra nenhuma, pra que que essa velha puta, porra... me dá até pena, coitada da escrota, acho que às vezes ela nem faz por mal, a filha da puta quer me ver legal, ela me criou, caralho, foi me pegar lá naquele cu de mundo onde a putona da minha mãe se enfiou, também, porra, só tem gente com merda na cabeça nesse cu dessa família que é a minha, e a velha é outra, eu sei que a babaca quer o meu bem,  mas ela lá sabe o que é o bem hoje em dia?, não sabe mesmo, nem por um caralho, que hoje em dia o lance é outro, outro mesmo, o Mô que é fodão é que sabe o que é o bem, o bem é aquele envelopão cheio de grana pra gente gastar, o bem são aquelas carreironas pra gente mandar a napa e ficar na ligação três dias direto, só fudendo e cheirando e bebendo, e se algum escroto botar o cu no nosso caminho a gente detona legal, eu e o Mô, isso é o bem, não é ir pra porra da igreja rezar, esse papo de merda de ir na casa do Senhor!, a casa do senhor é a casa do caralho!, sacou?, e se não sacou, tem que sacar, porra!, tanto toque eu dei na puta da velha, ô vó, se toca, vó, fica na tua, vó, sai da minha aba, vó, dá um tempo, vó, acorda pro mundo, vó, vai tomar no cu, vó, mas a velha é dura na queda, isso eu tenho que admitir, tenho até um orgulho legal desse lance porque eu sou assim também, dura na queda, o Mô às vezes me bate esse lance, tu é fodona, só não fode com o meu juízo, caralho, senão eu te fecho!, ih, vai fechar é o cu arrombado da mãe dele, que eu sou fodona mesmo e a minha avó no jeito dela também é fodona, por isso que ela me trouxe lá da puta que pariu e mandou a bundona da minha mãe tomar no olho do cu, e a porra da velha me criou sozinha, nunca nem quis saber de botar homem em casa, o puto do cara que transava com ela quando eu era garota esperava a velha sair e vinha aqui em casa, tentou me currar, me obrigou a chupar a pica dele uma porrada de vezes, até que um dia a velha chegou e o corno ainda tentou dizer que a culpa era minha, que eu era piranha, me esfregava nele todo dia e a velha ouviu, não disse um a, foi na cozinha pegou o facão e deu três facadas nele, o cara fugiu ensanguentado e ela atrás gritando que cortava os culhões do puto, foi maneiro, isso também é o bem, eu tenho que admitir, eu fico arrepiadona quando lembro desse lance, foi fuderoso, e me dá até tristeza de tudo ter acabado assim, mas porra, se ela era tão esperta como é que foi babaquear no lance do Mô?, como é que cismou que o Mô tava metido com droga, tráfico e o caralho, porra?, o Mô tá limpo nesse lance, o que a gente descola é pra gente mesmo e às vezes pra uns amigos darem uma festa, que aí o Mô até vende as paradinhas pra rapeize mas nada pra dar grana não, vê lá se aqueles trocados de bosta são grana pra gente?, caralho!, são grana pra esses merdas, pra mim e pro Mô é o lance da amizade e mais nada, e o lance da amizade é um lance do bem, eu cansei de dar esse toque pra velha, mas nessa hora a escrota se fazia de surda, se fazia mesmo, a piranha, tá, tá, legal a velha ter me criado, mas criou tá criado, não sou mais a criancinha lá da casa do caralho, de nariz remelento e pra que que ela ficou de ingresia com o Mô?, porra, eu falei, não falei?, aí a gente teve que dar um toque nela, que foi o lance do roubo da casa, na boa, pá e tal, era só ela se tocar, era só isso, mais nada, puta que o pariu, mais nada, mas a puta da velha se tocou?, se tocou?, se tocou é o caralho, porra!, daí não tem mais jeito não, fudeu legal, e a coisa que me deixa puta da vida é alguém me meter numa porra duma sinuca que não tem mais jeito, que fudeu legal, mesmo que seja a filha da puta da minha avó que é a porra da pessoa que eu mais gosto nesse mundo, por isso que eu nem fiz nada, o Mô, coitado, teve que resolver tudo praticamente sozinho, ia dar umas facadas, ou uma pedrada das grandes na cabeça, tinha até uns pneus dando mole, era só botar na velha, uma gasolina por cima e pá, mas ele ainda se deu ao trabalho de descolar a munição que tinha acabado, pois ele descolou e deu dois tiros na velha, pra ela morrer depressa e sem dor nenhuma, que o Mô é foda, sabe direitinho onde é que dá o teco pro cara ir pro caralho na hora ou pro cara sofrer e ganir feito um filha da puta a noite inteira, o Mô saca mesmo, e foi um lance legal a preocupação dele com a filha da puta, e eu fiquei até tocada com o lance e não quis dar nenhum teco na porra da coroa porque era a minha avó e eu tenho o maior respeito por ela, mas o lance do Mô me tocou mesmo e daí eu ajudei ele a carregar o corpo e jogar no valão, que era o mínimo que eu podia fazer por ele, e ainda acendi uma vela do lado da merda do corpo que afinal era a minha avó, porra, a escrota da velha, e daí que agora quando pintou esse outro lance eu fiquei mexida pra caralho mesmo, porra, foi por tão pouco tempo, mais dois dias a filha da puta ia poder saber e garanto que ela ficar contente pra caralho, a piranha velha, ia sim que eu conheço bem ela, ia começar a chorar, se bem que também ia começar com mais uma ladainha, puta que o pariu, adora uma ladainha essa vaca!, já tô até vendo, que é loucura eu engravidar, que eu tenho é que acabar os estudos e que ter um filho desse traficante é um absurdo e daí eu ia me emputecer de vez e era bem capaz de dar um teco na porra da velha, mesmo sem saber se ela morria ou gania, dava um teco, e quer saber?, foi até bom mesmo ela ter morrido antes e sem sacar porra nenhuma, vai ver a merda da alma dela deve estar vagando por aí por algum céu de bosta e até fica sabendo e fica bem feliz e tem mais é que ficar mesmo que esse filho da puta desse meu filho vai ser um garoto e vai se chamar Cecílio em homenagem a ela, a minha avó, a dona Cecília, que Deus a tenha lá na puta que o pariu!

 

Alice Barreira nasceu em Barura, no Amapá, em 1968. Trabalha como enfermeira, publicou por conta própria Pequena Enciclopédia de Inutilidades (contos, 1987) e vem colaborando com alguns sites como o coralsemvozes e o vivernavespera.

 

 

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