edição 28 | julho de 2008
temas:  inseto | caos

 

9 poemas
líria porto

insetos

 

o grilo quieto no teto

parece grilado com algum pensamento

parado no meio do pulo

 

não vou estragar-lhe a sesta

só mato em legítima defesa

 

 

 

desejo

 

teimam em voar

tremulam as pétalas

 

flores são borboletas

amarradas pelas pernas

 

 

 

pontuado e sem respostas

 

ouve-se o canto da cigarra

aonde vai levá-la esta canção?

 

o sol arde implacável

o que é para o sol uma cigarra?

 

a folha cai é só uma folha

o que é uma folha?

 

quem somos nós

cara-pálida?

 

 

 

entre cético e sádico

 

talvez o céu dos cachorros

seja o inferno dos gatos

 

e o céu lá dos bichanos

o inferno dos passarinhos

 

e o céu dos passarinhos

o inferno dos insetos

 

e o céu dos mosquitinhos

talvez dos vermes também

 

seja o corpo putrefato

que acredita no céu

 

e vive céu e inferno

no mesmo cacto

 

 

 

caos

 

nas ruas procuro teu rosto

nos rostos procuro teus traços

nos traços procuro teus gestos

nos gestos procuro teus atos

nos atos procuro teu amor

nos amores procuro por ti

e não te acho

 

 

 

suicida

 

cimentei bombas nos olhos

pus granadas no umbigo

soquei pólvora em cada poro

bebi chumbo derretido

ateei fogo no invólucro

acorrentado a explosivos

depois convoquei a morte

para dormir comigo

 

ela me disse — és um forte

se queres uma consorte

convida a vida

 

 

 

prognóstico

 

um cataclismo

uma hecatombe

 

aquele trombo

dentro da veia

é uma bomba

 

pavio aceso

ninguém se importa

 

a displicência

num caso desses

é causa mortis

 

 

 

desconserto

 

há dias de tanta chuva

no telhado uma goteira

ela pinga mágoa funda

bem em cima da lareira

a fumaça embaça tudo

passarinho fica mudo

ô vida besta

 

 

 

abissal

 

entre o vazio e o nada

havia sua morada

buraco desse tamanho

 

numa noite mui largada

chorou um mundão de lágrimas

as águas do oceano

 

 

 

um homem só cabeça e pés
lucélia majistral

Eu não sei exatamente por onde começar. Talvez pelo fim. Sim, pelo fim. Um inseto gigantesco caminhando pelas ruas de Curitiba. Era o que eu vinha tentando contar a ele. Lucélia, ele me disse, você pirou. Ele estava deitado no divã. De costas para mim. Eu via a cabeça dele e, mais adiante, os pés. Um homem só cabeça e pés. Eu me escondia atrás do divã. Atrás dele. As coisas tomando um rumo imprevisto. Não chega a ser um pesadelo, tentei explicar. Ou melhor, é mais do que um pesadelo. Ele suspirou e disse: Você é a psicanalista. Eu sou o paciente. Não lhe dei ouvidos, como sempre, e continuei descrevendo o inseto gigantesco pisoteando pessoas e coisas em pleno calçadão da XV. Eu disse: Vai acontecer. Eu tenho certeza disso. Eu estava tremendo. Ele suspirou pela segunda vez. Eu fechei os olhos. Ele disse: Você devia aprender a ficar calada. Devia aprender a ouvir. Nesse momento, ouvi algo dentro de mim. Ainda de olhos fechados. Um som terrível. De um corpo sendo esmagado por um inseto gigantesco.

 

 

ciclo
márcia maia

labutam as formigas

 

a moça que as espia

                  prepara

a câmera

  

depois

(feita a fotografia)

              as esmaga 

sob os pés

 

as cigarras todavia

                  em paz

ciciam

 

 

gattes no eufrates
marília kubota

O império é uma tortura

escorre água escura

sobre pura água pura

O fluxo trava em rede

fixa na parede. Treze

estrelas com sede

rezam o evangelho

cada vez mais velho

e Marte é seu espelho.

 

 

 

 

das notas capitais
nina rizzi

elas caminham alinhadas à indiana. suas bundas enormes balançam graciosamente de lá à cá. como conseguem manter esse ritmo-rotina, carregar um peso tão maior que os seus permanecerá mistério. elas têm o segredo. não apenas toleram o destino que lhes é imposto sabe-se lá por qual filho-da-puta titereiro. elas vivem e prosseguem assim

: estúpidas

 

com certeza, essa ração não é muito melhor que suas folhas. esse cortiço não é lá muito maior que seus montes de terra. no fim das contas elas estão muito melhor que a maioria de nós. elas têm a terra, apesar das constantes invasões de pés dos terríveis homo sapiens que não ocupam, resistem e produzem, apenas grilam e destroem o comunal.

 

nós, pobres-diabos, sequer servos somos. não temos ligação com nada ou ninguém. pais nos espancam, filhos cospem e matam. maridos querem nos foder, mulheres, inventar dores de cabeça pra, no fim, meter os pés em nossos rabos.

 

esses barracos nojentos! muito melhor o amontoado de terra. mas não a sabedoria que carregam. aquela que nos enfiam goela abaixo. que ajamos tal e qual insetos

: enfileirados, disciplinados, previdentes. a troco de quê?

 

um cortiço pouco melhor, um trabalho alienante, pizza pros deprimentes domingos. um marido pra chupar querendo ou não.

 

o que nos queda, miseráveis e marginais, não é a falta de emprego ou família. é nos arrastar dia-a-dia por subempregos, tolerar patrões sádicos, familiares autoritários, psicopatas quando não apáticos. e mesmo que, num raio de sorte pra um em um milhão, conseguir galgar uns degrauzinhos, pisando em adversários tão ou mais desgraçados e fodidos. e aí? um carro, se empanturrar de pizza, contribuir pra aceleração do fim do mundo, parindo mais e mais e mais. e aí? e aí?

 

quedar-nos sem ideologia, viver num mundo onde não há qualquer esperança pra nós miseráveis e pra esse planeta que fizemos miserável; não crer num primitivismo, servilismo, feudalismo, escravismo, capitalismo, socialismo, comunismo, anarquismo; fetichismo, politeísmo, islamismo, cristianismo, gnosticismo, misticismo, ateísmo, ou qualquer ismo doente de merda. tudo é obsoleto, obtuso. é matar ou morrer e salve-se quem puder.

 

*

 

o caos é a (in)disciplina, o (des)enfileiramento? ouvi que "no início era o caos". agora sei que meio e fim, idem. que a única verdade é a mentira de tudo

: o futuro promissor, a divina providência, o supraterrestre, a ordem e o progresso. a sabedoria das formigas que rebolam suas bundas inúteis "só porque não sabem cantar" e de um modo ou outro somos todos opressores. até as malditas formigas que têm  o segredo do agüentar-suportar-tolerar-continuar-até-o-fim e, no entanto, se mantêm caladas lá no centro da terra, que é onde vai dar seus montes de terra, onde escondem folhas pra não ter de solidarizar. são egoístas como os sapiens.

 

honestidade, coragem? só naqueles insetos que se deixam matar pós-cópula, sobretudo, os gafanhotos que podem voar e destruir monoculturas em latifúndios que mantêm trabalho escravo. os gafanhotos que trepam, mesmo sabendo que a opressora cabeça-oca dona gafanhota vai lhe devorar o cérebro. é deles, dos gafanhotos, o amor ao imaterial, a paixão corajosa, o desapego a vida tão mesquinha e sem sentido.

 

 

 

 

 

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