edição 27 | junho de 2008
temas:  lixo | poder | haraquiri

 

quase ha(ra)i k(i)a(r)i
nina rizzi

a mãe havia sido dada como resgate. o brasil é um país lindo. ill pays dü cafèe, dizia-lhe seu primeiro comprador, agora vendedor, li numa revista. no início do século vários dos nossos foram morar em colônias de lá porque aboliram a escravatura.

: aboliram mesmo? não é o que parece, ou então, devia ser abolida aqui também.

pouco sabia a menina do destino dela. partiu naquele momento em que seu país fazia-os engolir a seco a idéia de pátria, logo após recuperar-se da primeira grande guerra.

agora, à hora do abandono, era a década de 30. o japão adotara uma política internacional agressiva de objetivos expansionistas, assim como o homem. visava também à china. e muito ópio.

chamava a filha de cho cho, que era também como gostava de se olhar. se voltar. tinha então uns sete anos a lagartinha. mais tarde, só um pouco, entregaram-na a um que lhe chamava hu-dié 

: mas não vivem um só dia, após conhecerem tais flores?

não seja ingrata. meu povo é destruído, e nem sun tzu os salvaria, pra que possamos voar, hu-dié.

 

*

 

só aos vinte e dois anos teve notícias. estava preocupada com a filha que, oxalá, não morava mais na velha casa destruída pelo bombardeio. a guerra ainda durou quatro meses, e foi quando da rendição do japão que também ela sucumbiu

: deu ao velho chinês sua última dose e partiu com um soldado estadunidense. dois desertores. loucos (par)a passear pela fétida baía de guanabara.

 

*

 

aqui me chamam china. assim como os libaneses e sírios e árabes chamados turcos, não gosto da confusão. não por crise de identidade. lembro daquele velho sórdido a quem você me convenceu matar. tudo bem, sem rancores, ressentimentos, culpas. tudo bem, mas o dinheiro acabou.

não se acham por aqui as flores alucinógenas, mas dizem que essa erva que se alastra pelas ruas e becos e morros também foi aqui introduzida pra desmoralizar e desmobilizar o povo, apesar de trazida por escravos, a diamba. os estudantes, que são considerados os mais perigosos, adoram. ficam verborrágicos. se for verdade, quem as introduziu deve adorar também. dá preguiça e sono. vejo sempre uns milicos, mas nem de longe parecido com o poderio bélico de nossas nações de expatriados.

você, caso não sentisse o estranhamento, a estrangeiridade em tudo, não se sentiria nada deslocado. predomina também aqui o american way of life. são mais americanos que você. usam calça lee, camisas com estampas de mickey ou "i love ny". tomam coca-cola, comem cheeseburger. ouvem sua música. chega a ser engraçado, soube que exportam suco de laranja.

até hoje me pergunto o que foi feito daqueles dias. não queríamos crer no amor, mas com que intensidade o vivíamos! talvez eu cresse... até os dias tão longos, intermináveis, que fiquei a te esperar na central do brasil.

trabalho em teatros agora. atriz. até chefes de estado vêm me ver. pouco importa. quando as cortinas se fecham e a ribalta é escura, não se distingue os homens pelo poder que têm ou representam. todos o são. não tanto quanto meus conterrâneos, paternalistas em demasia, mas são. são homens.

nós, as atrizes, representamos cumes, ápices, cimos e até suores. somos uma trupe. quase todas francesas, elas me chamam papillon. japonesa só eu. dizem que sou rasa e aí encontram explicação pra piada machista e xenofóbica.

minha mãe morreu pouco depois da minha chegada. antes que a conhecesse. um tal bacilo de koch. a cidade que morava é muito quente e não ajudou. nunca achei que ela pudesse me salvar mesmo.

vou colocar essa carta numa garrafa de vinho barato que tomei ontem e me fez mal. acordei vomitando. a privada está quebrada e cheia do sólido, negro e azedo vinho. vou jogá-la no mar (vi isso num filme romântico). pode ser um estímulo pra eu ir pro litoral. mas do jeito que a coisa vai, acho mais provável que alguém o faça por mim. como um último pedido concedido por caridade. pena. quem sabe você, onde quer que esteja, a encontre um dia.

descobri há pouco algo que parece neve e que derrete o sangue. faz meus espectadores, e até espectadoras, parecem deuses. você. aí eu que sou a poderosa.

parece que as paredes vão me engolir. não encontrei a liberdade em são paulo. queria me desintegrar com a neve quente, no entanto, vomito, tremo, tenho febres. faz frio e não posso voar. mulan é invenção dos teus. haraquiri dos meus. "la vida és dolor", diz o colombiano que me chama mariposa. ele tem razão. daqui a pouco, aparece.  será então a dose mais forte e violenta. não tenho dinheiro, mas ele aceita em serviço

: rasa e pequenina assim... parece até que estupro a virgem maria.

aí sim, finalmente borboleta. um dia e fim.

 

 

der blaue engel
(de Memórias de Patty Flag)

patty flag
   

1 – Lixo

Os homens que passavam o dia me ignorando como se eu fosse a fruta podre que o feirante abandonou no meio fio — esses homens — retornavam no final da tarde, atenciosos e perfumados, gatos pardos do lusco-fusco. Quinze, vinte minutos depois, me devolviam à rua, delicioso fruto espremido, bagaço seco, esperando que alguém o chutasse de volta a seu destino meio-fio.

Não acredito em piores anos de minha vida. Acredito em anos que se sucedem, anos professores.

Na rua que aprendi a ser forte, a respirar de novo como se fora a primeira vez, a falar português.

A rua fez de mim, mulher. Sem fantasias.

E foi a rua que me apresentou Guilherme.

 

2 - Poder

Guilherme voltou na noite seguinte ao meu primeiro orgasmo.

Ah, então aquilo existia! Havia sido verdade! — e se houvera sido doença? Demência? Sezão?

Eu precisava ter certeza. Joguei o homem na cama com uma sede que eu não sabia que tinha. Sede que, embora sempre embaraçada à brutalidade, eu reconhecia agora em meus clientes.

Eu teria me assustado comigo mesma se, ao final, Guilherme não risse.

— Minha Marlene, seu lugar não é aqui! Vamos fazer o seguinte, amanhã te pego às 6 da tarde. Me diz uma coisa, tu tens uma roupinha mais ou menos? Esquece, te trago o vestido.

 

Antes de ser Patty Flag, eu fui Patrícia Dietrich por 100 dias no Cassino da Urca, vivendo Lola, a personagem de Marlene em O Anjo Azul.

Guilherme tinha acabado de se eleger deputado. Mais que isso, era amigo pessoal de Dona Darcy, a antiga primeira dama, que ainda gozava de muito prestígio na casa.

 

Tudo o que eu precisava fazer era cantar, "Ich bin von Kopf bis Fuß / Auf Liebe eingestellt, / Denn das ist meine Welt. / Und sonst gar nichts. / Das ist, was soll ich machen, / Meine Natur, / Ich kann halt lieben nur / Und sonst gar nichts". (Da cabeça aos pés,  / Sou toda amor. / Este é o meu mundo, / E nada mais. / Isto é o que sou, / Naturalmente. / Só no amor  encontro segurança, / E nada mais).

 

Eu sabia essa canção de cor, eu já havia sussurrado essas palavras doze vezes escondida em uma sala de cinema. Quando subi ao palco, porém, percebi que estaria sendo mais honesta se cantasse justamente o contrário. Mas quem procura honestidade em uma sala de cinema, nos salões de um cassino? Quem procura honestidade em uma prostituta?

 

Poderiam ser 100 anos, mas em 30 de abril, o centésimo dia, o presidente Dutra, homenzinho assemelhado a um camundongo, proibiu os jogos de azar no país, e o cassino fechou.

 

3 – Haraquiri

Os jornais falavam em sessenta mil desempregados pelo decreto, mais de setenta cassinos fechados Brasil afora.

Guilherme dizia "Cada país tem o crash que merece! A bomba de Hiroshima que lhe cabe!".

Ele lia os jornais e se divertia com sua ironia, e não via que eu não podia voltar a ser quem eu era.

Ninguém, vagando invisível por ordinários quartos de hotéis baratos.

Ninguém, vagando ordinária por invisíveis quartos de hotéis baratos.

Ninguém, vagando barata por ordinários quartos de hotéis invisíveis.

Ele não ouvia os boatos sobre suicídios e pequenas tragédias particulares. Ele não ouvia o som que esses rumores faziam dentro de mim, gemidos de faca girando no ventre.

Com meus cem dias de experiência, bati à porta da Boate Vogue, na Av. Princesa Isabel, em Copacabana. O dono da casa, o Barão von Stuckart, havia me visto cantar no cassino e recebeu-me com um grande sorriso.

— Lola! Lolita! Ainda esses dias me perguntava, por onde andará Lola?

Chamou Mário Hiraoka, o coreógrafo da casa.

— Dê um jeito nesta pequena alemã! Ela é adorável, adorável! Mas está tudo errado com sua postura no palco.

Depois, dirigiu-se a mim.

— Quando Mário terminar com você — ah! — será uma verdadeira danseur et chanteur!

 

O Barão nos deixou sozinhos e eu coloquei as mãos sobre o estômago, para abafar suas súplicas. O japonês mirrado e efeminado olhou para aquilo com olhos clarividentes e disse "Nosso primeiro trabalho com você é: desfaça essa cara de haraquiri! Meu pai era professor no Japão, chegou no Rio de Janeiro em 1906 e foi ser agricultor em uma fazenda na região serrana. Deu tudo errado na vida dele! Nunca aprendeu a ser um agricultor. Chegou pobre, saiu da fazenda mais pobre ainda, perambulou pelas ruas da pequena Conceição de Macabu até que alguém se compadeceu de sua situação e lhe arrumou um trabalho de jardineiro. Viveu assim, de bicos, até o fim de sua vida. Mas ele nunca se cansava de dizer que a única desonra de sua vida foi ter tido um filho homossexual! Nem ele, e nem eu, jamais pensamos em haraquiri, continuamos vivendo! Saí de casa e fui fazer a vida, hoje estou aqui! E você também! Uma mulher com um par de pernas como essas?! Não pode nunca — nunca, entendeu?! — pensar em enfiar uma faca na barriga! Venha, pequena, vamos trabalhar".

 

 

amartia
roberta silva
 

— Por quanto tempo me seguiu?

 

— O bastante.

 

— Nada a dizer, então.

 

— É.

 

— Um belo quadro. Banquete, vinho, uma valsa solitária talvez e o travesseiro de plumas. Devo aliviar sua culpa.

 

Não houve resposta, indício de que estava certo. Depois de um tempo quieta, perguntou se não tentaria fazê-la mudar de idéia. Aborreceu-se, nunca gostou de ser subestimado. Assustada com a reação de Sayid, tentou justificar-se:

 

— Seria aceitável.

 

— Claro que seria, não sou suicida. Fez pouco de minha inteligência, pediria que reconsiderasse se sentisse um mínimo de dúvida em você. Sádica! Minha súplica alimentaria sua dor ou a aliviaria mais?

 

— Tem razão. Perdoe-me.

 

— Por me subestimar ou por me matar?

 

— Já está fazendo piadas, estou perdoada.

 

Sorriram.

 

— Qual o critério? O que está esperando?

 

— O último instante, aquele em que não há mais retorno.

 

— Sempre podemos retornar.

 

— É um homem sábio, Sayid, mas viveu pouco para dizer isso.

 

— Não se preocupe, todo pecado tem sua redenção. Cada um dos meus cometi no último instante, mesmo assim fui eu, todas as vezes, quem escolheu prosseguir. Não existe vítima entre nós, Querida.

 

— Não há nem um pouco de alívio em não ter que fazer isto novamente?

 

— Não vou facilitar as coisas, Docinho, sente-se pior que eu agora, não?

 

— Cale-se!

 

Mentiu, estava exausto, tudo o que queria era que terminasse logo e de certa forma estava realmente grato. Não sabia mais se desonrava ou glorificava o nome de Alah, sua religião, seu povo.

 

Seus erros não encobrem os meus. Podia dizer que será a última vez, mas não será. Apesar disso, o banquete pode ser agradável para você também, o que acha?

 

"Tudo vai pelo melhor dos mundos possíveis", minha cara, "Fui como ervas, e, finalmente me arranca".

 

A noite foi longa e agradável. O jantar, a decoração, o vinho de safra raríssima deixaram leve a ocasião. Não trocaram palavra sequer. O licor na varanda e Sayid levou-a ao quarto, despiu-a vagarosamente, deitou-a e depois de alguns segundos admirando sua brancura, retirou seu traje e deitou a seu lado, permanecendo ali até o fim de seus dias.

 

 

[Sayid] — Mac Allah! Esperam por mim sete mil virgens, leite e mel, ainda assim mereço do misericordioso um último caravancará. — Allah sobre ti, minha menina! — Sorriu e ergueu a taça, concluindo assim o brinde que proferira mentalmente. Sua boca não diria mais nenhuma palavra até o fim. Não por sacrifício, mas por serem as palavras adereços totalmente dispensáveis aos momentos que se seguiram. — Segui os caminhos de Allah, sou cordeiro chucro, mas fiel. Persegue-me, mesmo assim, onde vou e ainda aqui neste oásis, o ferruginoso cheiro de minhas mãos de sangue. Como pode, ó Misericordioso, o destino de um fiel regar vosso altar com sangue inocente? — Suspirou — Maktub! — Observou por longo tempo cada detalhe do salão onde jantavam, tudo muito antigo e raro, ornamentos e móveis vindos de várias partes do mundo. Na parede, um tapete árabe com uma citação do livro das mil e uma noites: "O castigo de Deus está mais perto do pecador, do que as pálpebras dos olhos". — Olhou-a e teve a impressão de estar constrangida pela primeira vez. Levantou-se e levou-a pelas mãos.

 

[Ela] — Poderia poupá-lo, mas estou faminta e não tenho outro em vista. Ele também não cessaria o terror. Um brinde. Não parece irônico seu sorriso. Poderia brindar à minha hipocrisia, mas por mais profundo que sejam seus olhos não iria tão longe em minha mente. Poderia dizer algo, mas é tudo tão perfeito assim em silêncio. Em silêncio compreendêmos-nos. Está encantado com a casa. Mal sabe que cada objeto desses era novo quando comprei. Pensando bem, pode-se contar minha história, calcular minha idade, por onde estive. através dessa casa. Que expressão é essa? Não, o tapete! Devo parecer uma psicopata agora. O sábio artesão teceu-o para mim, porque havia se compadecido de meu destino triste. Devia lhe contar que já fui vítima como ele. Que sua morte está diretamente ligada à minha amaldiçoada imortalidade. Que podemos nós diante do poder do destino, se todo pecado é apenas uma tentativa frustrada de fuga pela tangente? Está escrito.

 

 

resíduos
romina conti
 

I

 

Tudo está lá

O que não está estará

 

 

II

 

Manuel Bandeira viu um rato

Ele olhou nos seus olhos e se viu

 

Ali havia algo de humano

As portas estavam abertas e paradas como o vento

 

O vento aberto comia o silêncio e

alguma coisa fazia barulho

 

Era o barulho de alguma coisa

Alguma coisa balançava Bandeira

 

E lá no fundo: bem lá no fundo havia um homem

 

 

III

 

Havia um homem e um espelho e uma barba por fazer

Havia um barbeador enferrujado

 

Ele sujou o rosto de alguém

Ele olhou nos olhos de alguém

 

E novamente olhou-se

 

 

IV

 

Ao se ver no espelho não reconheceu quem era

Reconheceu um anão albino que estava do seu lado

 

O anão sorria e lhe mandou através do espelho uma flor

Ele beijou o anão e fez o bem-me-quer e o mal-me-quer

 

Enfim se apaixonou por si

 

 

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