edição 27 | junho de 2008
temas:  lixo | poder | haraquiri

 

lixo
márcia bechara

Que queres tu animal estranho com os meus restolhos? Vai procurar outro lóbulo para apreciar outro fígado outra parelha de dentes. Deixa minha bílis em paz. Deixa meu rastro sobre a terra em paz que espécie de amor é você que apenas me tem me tem me tem e nunca sob nenhuma hipótese me coloca à sua frente e me verifica apenas tu que queres imensos espelhos sobre suas mandíbulas modorrentas de peixe e estratégia.

Júpiter prometeu a Saturno outras partes de seu corpo e de seus filhos. Mas as suas pegadas no chão essas o deus preserva. A passagem sobre o mundo é resgatada diariamente no lixo.

Tens medo ratazana? Grande coisa eu também tenho medo sempre e nem assim usurpo sua caixa para provar da sua memória. Vai entrega devolve regurgita.

Chego em casa e tiro água do joelho tiro alma do joelho iluminações da rótula desabotôo a tíbia o tendão do arrepio caroços da carótida tudo proporcional e pus mas tu queres minha xepa mesmo assim e espera somente a noite quando eu me canso do meu organismo para que tu te refesteles com ele. Que queres mais ter que a terra não terá quando eu me devolver a ela inteira feito no nascimento? Quando eu me devolver à terra inteira tu não terás mais nada unha baço pescoço chão.

Por que não me queres de dia hein à luz do dia na frente de todos quando ainda estou sã e nada camicase e ainda quero fios e promessas e por que apenas me queres quando sou restolho casca puída de mim mesma é uma espécie de acesso o que você quer? Água trovão majestade calamidade pública? Por que nunca o bordado o acabado o que aquece o sim?

Digo-te não me terás véu não me terás grinalda não me terás inseto não me terás lúgubre eu gosto de sol de ternura por que insistes nesta escuridão eu.

Por isso que tu insistes nesta aula de anatomia cão? Larga o balde a faca a responsabilidade vem ser meu inteiro juntando corpo e resto de corpo não pensa muito vem por que só me decifras no que deixo quando passo e nunca nunca no que antecipo antes de ser e vestir e despir. Larga a responsabilidade inteira larga a responsabilidade eu imploro.

Gostas do meu ir embora. Queres meu vomitado porque não queres meu coração inteiro feito acerola pungente mas pulsante madura mas na árvore em cor e vida porque queres tão imensamente aquilo que não sou meu estômago do avesso esse eu não quero eu não gosto de fim. Provas do meu como se fosse mel mas ah que besta você todo não me percebe princesa inteira da vida. Preferes meu lixo.

Quando desabotôo a carótida é que gostas. Quando verto sangue sobre sangue é que te compadeces. Quando destarraxo minha omoplata meu cérebro minha vontade de mim tu me queres mas queres é meu sangue separado de mim eu sozinha separada de mim separada de meus pais minha mãe minha cosmogonia pois saiba — não me separarei do que é meu.

Quando eu botar coisa fora de mim é porque não servirá mais nem mesmo para a terra que deseja comer o indesejado quando eu botar coisa fora tu não sorverás mais este fim de mim tu não mereces os rastros de uma mulher tu mereces o abutre cheio de responsabilidades e comiseração pelo mundo o abutre sem alegria mas estritamente necessário.

Vai junta-te ao abutre e te desacorçoas de mim deixa em paz meu lixo meu significado minhas pegadas sobre o mundo meu repositório larga-me. Larga-me.

Meu lixo não é teu brinquedo não lhe dei lixo é arma veneno e toxoplasmose lixo é cultura verdura lixo é meu fígado meu coração protéico lixo é reinvenção.

 

 

 

 

seppuku
márcia maia

 

a lâmina o brilho

a mão a pele o sangue o belo

corpo ainda vivo

 

o samurai apascentado

 

                      mishima morto

 

 

da morte do eu
maríla kubota

Há muitas chaves para abrir uma porta. Há quem prefira não abrir. Houve uma época em que deixou de ser misteriosa e era preciso ir adiante. As indecisões da juventude, os sonhos de atingir a divindade ficaram para trás. Para os outros. Ela não sonhava, realizava sonhos. A diferença entre as duas atitudes: não sonhar, mas realizar. Ou sonhar e realizar. Tão diferente da hesitação juvenil.

O que a fazia ir para a frente era uma completa vida de adulta. Casa, marido, filhos, o seu lar. Mas já não era da geração de sua mãe, também podia se auto-realizar. Enquanto sustentava sonhos alheios, os seus também teriam vez. Aprendia a ter uma mente prática, executiva.

Não havia um Manual da Mulher Moderna para se inspirar. Mas muitas companheiras, como ela, pareciam ter lido essas instruções. O essencial era: não se deter demais. Não se deter demais? Não parar. Se houvesse, por exemplo, duas alternativas, decidir rapidamente. E quando as alternativas eram inúmeras, e subjetivas?

Há algum tempo havia aprendido a afastar delicadamente o subjetivo com toques objetivos. As questões viscerais, que fariam um pé afundar e outro, na areia movediça, eram levadas por redemoinhos, redemoinhos que levavam maus pensamentos. Porque ser boa pessoa implicava em.

Boa pessoa? Ninguém havia tocado neste assunto. Ser boa pessoa implicava em não se deter demais, não perguntar, não investigar. Se houvesse muitas chaves, escolheria apenas as que abririam a porta. E se todas abrissem ?

Carregaria o molho, não se deteria. Mas uma vez que se aceitou que havia muitas chaves que abriam a porta da verdade, devia seguir em frente. Quem havia dito a palavra? Então havia muitas verdades, não apenas uma? Poderia ser para cada afirmação houvesse não uma negação mas uma interrogação. E essa interrogação é que quebraria o fio dos dias, porque essa pessoa, homem ou mulher, que duvida, já não é boa. Em vez de cumprir seus deveres, fica horas e horas discutindo uma frase, uma sentença. Pertencerá ao reino dos malditos. Dos que duvidam. E acham que não existem afirmativas seguras. E o valor da positividade da vida?

O valor da positividade? Alguém é envenenado por interrogações que não levam a lugar algum porém a positividade é um valor que eleva as virtudes. Então os demônios. — aí entrava na areia movediça.

...o problema de uma vida feliz... uma vida feliz teria problemas? ...os demônios. Começava o embaraço quando tinha chaves, portas demais. O melhor era saber que tinha todas na mão e não abrir nenhuma. Ou apenas uma só, e confiante, por ela entrar para chegar ao céu.

 

 

 

 

a jovem Y.
mariza lourenço

quando a jovem Y. perdeu a terceira criança, ainda no ventre, o velho W., seu dono, lhe disse que não teria quem cuidasse dela quando estivesse velha demais para trabalhar. o velho W. tinha muitos filhos, de modo que não se preocupava com o futuro. a jovem Y. desesperou-se e implorou ao velho W. que lhe fizesse outra criança. e ele fez, mas a criança, embora tenha nascido, era uma menina tão mirrada e doente que o velho W. disse à jovem Y., que, de seu útero doente, jamais nasceria um filho que crescesse o suficiente para ver o crepúsculo do dia. e sentindo-se desobrigado em relação à mãe e filha, mandou-as embora.

 
a jovem Y. andou por muito tempo em busca de trabalho, mas nada tendo conseguido, pediu abrigo à senhora O., a puta mais antiga da província de N., e na casa da senhora O., a jovem Y. ficou, oferecendo seu corpo de porcelana em troca de comida e teto. os homens da província de N. gostavam de se deitar com a jovem Y., porque, além de bonita, chilreava como passarinho. tamanha popularidade entre os homens da província de N., rendeu à jovem Y. três meninos robustos, os quais foram criados com leite, carne e mel. quando os meninos se tornaram rapazes, a jovem Y. mandou-os estudar na capital, não sem antes, porém, fazê-los prometer que retornariam um dia para buscá-la.
 
no entanto, os três filhos robustos da jovem Y. jamais retornaram, e ela, cujo corpo de porcelana já não mais atraia os homens da província de N., refletiu que, de seu útero doente, o único fruto sadio, ainda que mirrado, fora morto a troco do sustento de outros três.
 
quando a velha, muito velha Y., deu cabo da própria vida, ninguém sentiu sua falta.
 
estava velha demais para trabalhar.

 
 

 

 

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