edição 26 | maio de 2008
temas:  inverno | rotina

 

5 poemas
líria porto

o visitante

 

já o inverno me rodeia

tece sua teia branca

finca estaca lá na porta

entra por baixo das telhas

reclama lenha coberta

arranha-me a pele

 

eu quieta no meu canto

ele insiste pede leite

uma dose de conhaque

chá de cravo de canela

chocolate sopa quente

agasalho meias vela

 

o inverno veio cedo

com seus braços magricelas

respiração ofegante

pouco cabelo

misérias

 

 

 

borrasca

 

tão longas as noites de inverno

e a terra fria

envolta em luar e em saudade

leva-me a pensar que a vida

embora bela

cantada e decantada pelos poetas

não vale o quanto pesa-me

 

 

 

dia-a-dia

 

domingo

ia à missa

 

segunda

rezava o terço

 

na quinta

maria das quantas

limpava o quarto

e punha o lixo

na cesta

 

no sábado

vinha um soldado

tirar-lhe as teias

da aranha

 

nu tempo restante

 

 

 

rotina

 

a voz de um relógio tique-taque

repete sem sotaque a voz do tempo

 

passamos nossos dias tão iguais

e sem o perceber envelhecemos

 

 

 

id

 

há dias que sou assim

a sombra da minha sombra

e meus pés pisam repisam

as minhas próprias pegadas

sei curvas sei obstáculos

não sei porém desviar-me

 

passeio sobre meus passos

caminho nos descaminhos

erro sempre os mesmos erros

repito as mesmas palavras

e sou sombra da sombra

a perseguir-me o passado

 

 

 

 

na porta da geladeira
lucélia majistral

eu coloquei o aviso na geladeira. eu não pensei. eu quase não me vi. de tão acostumada. o telefone, o recado, o bilhete afixado na porta da geladeira. sinto dizer que. sinto muito. sinto. algo terrível dito de forma rotineira. ao telefone logo cedo, cedo demais, a voz chorosa de um parente distante: ele está? no trabalho, respondi. plantão. só o vejo à noite. o recado me foi passado, que eu passasse para ele. pensei em ligar, ir ao trabalho dele. pensei em muitas coisas enquanto escrevia o bilhete e o afixava na porta da geladeira. não pensei em nada. mais tarde, a voz dele ao telefone, sonolenta: esse bilhete aqui, eu não entendi a sua letra. aconteceu alguma coisa com a minha mãe?

 

 

1 conto, 1 poema
márcia maia

inferno astral ou da falta que um nike faz

 

Derrapou e caiu. Um breve descuido, e estava no chão. A droga do tênis novo, todo cheio de riquififfis, salamaleques, amortecedores de gel e silicone, não era à prova de chuva. Menos ainda de calçada esburacada, folhas caídas e lodo. Deveria vir com um aviso: impróprio para uso no outono/inverno. E agora, a perna doía, a calça cheia de lama, por pouco não se rasgara, a mão arranhada, sangrando, a sombrinha quebrada. E três prestações da porra do tênis ainda por pagar.

 

 

 

quase sempre  quase igual

 

a roupa por passar

a mesa manca

 

a feira por fazer

a chuva na varanda

 

a vida desfiando seus silêncios

e o quinteto de mozart na vitrola

 

 

 

 

sísifo's dream
maríla kubota

O mundo cai arrebentando. Matéria, matéria, matéria. Deus é a tentativa de desmaterialização. O homem da linguagem pensa que é contra a matéria por ser o homem da linguagem. Mas é apenas o homem da linguagem. Subiu a escada e fruiu. Encontrou no primeiro lance de degraus um pássaro, maravilhou-se. No próximo lance, um hipogrifo. Em sua mente brotou, intuitiva, a palavra liberdade. Continuou a escalada e no terceiro lance avistou o cinzel, a matéria. O mundo era dele, sua criação. Um pássaro, um hipogrifo, moldaria. Carregou a obra para o quarto lance de degraus — e era monumental, o mundo seu. Monumental, um peso, ainda em formação, quase só a matéria bruta. No quarto lance, a metamorfose. Encontrou semelhantes, demiurgos, buscando a forma, o cavalo com asas, a possibilidade de transformação do que existia em algo mais leve do que o ar. Mas a matéria é bruta. Rebelde demais. E o homem da linguagem logo se torna orgulhoso.

Logo se torna orgulhoso. Pensamentos e palavras o enrodilham. Encontrando outros homens da linguagem congratula-se. Ah! Apenas iniciando as obras, enchem-se de louvores mútuos. Enchendo-se de louvores mútuos esquecem que buscavam o cavalo com asas. Basta a crina, uma pata ou até uma pena. Escavou a pena da pedra? Sim. Enchendo-se de louros, os homens da linguagem sobem mais lances de escadas e esquecem de crina, pata, pena. Basta a idéia de pena. A liberdade está na imagem. Enriquecendo-se, enriquecendo-se com louros e louvores mútuos esquecem o desejo de liberdade. Subindo mais lances esquecem também a idéia da pena. Basta a idéia.

De quê?

 

...

 

Os louros sufocam a garganta. principiantes cansam de subir a escada. Para quê? Não há Deus, apenas a subida inútil, diz o que grava a palavra IDÉIA em sua pedra. Ele vende pedras com a palavra para os que cansaram de subir e esgotaram o pensamento em buscar formas novas. Não há o novo, proclama o vendedor de idéias de pedra. E a busca original se degrada.

Se um anjo cai das nuvens, é em queda livre, sem anteparo.

 
 

 

 

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