edição 25 | abril de 2008
temas:  "quando soltaram os cachorros loucos" | noite

 

uma noite de amor
marília kubota
   

De Noite o cheiro das flores é secreto e malvado. O perfume estilhaça o escudo da escuridão: Desde as pevides se elabora o arrebatamento. Estou dentro ou fora de mim? Certo perfume me persegue ou eu o persigo, por ser o anúncio de um tempo diluído. Em outras épocas senti a doçura de um manacá ou jasmins enchendo a rua. As flores são frágeis, mas a fragilidade guarda a doçura, sua força secreta.

 

Não sei onde buscar a Noite. Encosto suavemente a orelha no ombro e me posto à janela. Noite antiga, sempre esteve aqui. Não é que nasceu num tempo, como eu. Sempre existiu, e seu mistério.

 

O dia é compreensível, turno de lavor. Mas a Noite? Suspensa entre os dias, ou uma ponte  em que seres suspeitos se movem, como fantasmas arrastando lençóis. Em parte da Noite a vida desacontece para os pobres mortais. Não é à toa que ao acordar, nada lembremos. O que aconteceu na história para adquirirmos a capacidade de sonhar? Por que depois de ter aprendido a ordenar o mundo ainda precisamos do caos?

 

A loucura a que nos entregamos todas as noites pode ser domesticada de dia. Os cientistas criam uma vida melhor. Mas e aqueles que não disciplinam a imaginação? Aqueles para quem o mundo primitivo existe concomitante com o civilizado?

 

São loucos ou poetas. Há muitos impeditivos para sonhadores. Vivemos em tal tempo de dispersão que hoje os sonhadores são falsamente cultuados. Multidões anseiam ser insanas ou artistas. Porém não têm o germe da imaginação independente.

 

Quem sonha com vida de artista pensa que basta se revelar à Noite para se descobrir. Porém à grande Noite não se entrega. Porque se entregar é não entender.

 

Não entender nos torna pequeninos. Em vez de vaidosos por causa do conhecimento ou descoberta da beleza, nos humilhamos diante da ignorância.

 

Servir o mistério é superar as noites dos homens. As noites intranqüilas, em que anseiam, mais que tudo, despertar de seus dias. Para isto, os pobres mortais desejam mais que nunca sair da obscuridade. Não sabem que apenas mergulhando na mais profunda treva conhecerão.

 

O quê? Ah, os livros esotéricos descrevem. O íntimo, que há tanto viemos perseguindo, o que alguns chamam Deus, seria nós mesmos? Felicidade é conhecer, como diz qualquer almanaque místico, a verdade interior.

 

Porém, os ambiciosos, em vez do caminho místico, do silêncio, preferem lutar com a linguagem. Linguagem é comunhão de espíritos. Quando falha a palavra, ou ela serve ao Mal, a força domina. Mas quando a beleza ressuscita, os deuses despertam e se dirigem para a fonte, espantando fantasmas. A Noite é a fonte primordial. Precisamos sonhar e também viver sonhos sem sentido. Do contrário a vida se extingue.

 

 

vozes e visões
nina rizzi

caminhante noturno

por jão

 

eu passeei por barbacena

foram longos minutos. vinte talvez

ela insiste dizer que foram anos. vinte com certeza

eu tava caminhando,

era claro ainda quando saí

mas era dia de solstício

daí que logo escureceu.

quando da noite

algo morre algo nasce em mim

(minha filha, pobrezinha, achava eu ser o lobisomem)

em verdade só me perco um tanto

normal. nada de alzaimer

ou essas coisas de maluco de que trata o patrão. normal

há quem tenha medo da noite

mas ela não é má

"só escura. questão de textura"

e tantos anos de feijão com arroz

co'a mesma maria

dá uma vontade de andar só...

ah, barbacena não é assim

tão bonita nem tão feia

quanto dizem os caras que fazem a teoria

num sei como lá cheguei

nem sabia que era tão perto do armazém

não deu vontade de ficar

mas matuto que é matuto

num pode recusar um bom

café com queijo

eles falavam naquele linguajar

todo esquisito como o do patrão

eu ouvia. fazia poesia

acho que gostaram de mim

: pediram preu ficar

olha, num posso não, seu dotô

que maria tá me esperando co'açúcar

passei na venda

comprei o açúcar

e já logo estava em casa

maria me olhou cuma cara toda amarrada

tinha já uns cabelos brancos

que antes não havia notado

mas disso nada falei

que mulher é tudo vaidosa.

botei o açúcar na mesa

prela pô pó pá cuá

e aí, esse café sai ou num sai?

só mais uns vinte minutinhos

 

caderno de receitas da maria

 

tiramissú

 

ingredientes

- 6 gemas

- ½ xícara (chá) de açúcar

- 1 pitada de sal

- 450g de requeijão firme

- 2 xícaras (chá) de café frio e forte

- 30 biscoitos champagne com açúcar fino

- 1 colher (chá) de baunilha

- 2 colheres (sopa) de licor de cacau

- 100g de chocolate meio amargo raspado

 

modo de preparo

- bata as gemas, o açúcar, sal e a baunilha bastante, até ficar bem macio

- acrescente o requeijão e bata até ficar cremoso e firme

- em um prato fundo coloque o café e o licor, molhando rapidamente parte dos biscoitos nessa mistura

- forre o fundo e as laterais de 6 xícaras (chá) com biscoitos

- despeje a mistura de queijo e o chocolate ralado

- molhe os biscoitos restantes, arranje-os em pé nas laterais das xícaras e coloque o restante da mistura para firmá-los

- por cima coloque o restante do chocolate

- gele por 4 horas antes de servir

 

rendimento: porção para 6 pessoas

 

noite de outono, 1958

ele estava jogado na sala. tinha os sapatos sujos. bem em cima do sofá recém-lavado. eu só finjo que ligo. ah, que importância lá isso tem depois de tantos anos. tornei-me ranzinza, deveras. isso é o que não posso suportar: o que sou junto dele. violências físicas e verbais já também não me aborrecem. é de mim que não gosto. e se dele não posso desistir, desisto de mim.

caminho por entre os móveis como um fantasma. as receitas e o preparo das delícias, apesar de serem pra ele, me fazem sentir um pouco mais viva.

escondidas dentre as receitas, acima de quaisquer suspeitas, ficam essas letras tão tortas, meu escapismo. antes do casamento eu escrevia mais, mas ele me fazia parecer tão ridícula que acabei deixando a pena. até ter essa idéia-goiabada.

pode ser que aqueles escritos não passassem de asneiras e parvices; podia ser mero ciúme do tempo que despendia em detrimento dele; quem sabe o seu ego, já que é poeta. ah, isso não nego, um grande poeta-menor. aliás, foi o que primeiro me encantou nele. ele dizia que gostava do que eu escrevia, mas após casamento e filhos, seu discurso era de que a mulher estava "destinada" ao mundo do lar e da maternidade. Se ele soubesse que ainda escrevo! sinto-me tão ousada, mesmo sendo este um exercício tão solitário.

ele está demorando. não me sinto culpada por ter desejado que ele não voltasse. ainda se ele fumasse, fosse comprar cigarros e nunca mais... mas que sonhos podem alimentar mulheres em condições como a minha?

[...]

 

petit gateau

 

ingredientes

- 250 g de chocolate meio amargo em pedaços

- 1 xícara pequena de café frio

- 1 e 1/4 de xícara (chá) de margarina ou manteiga

- 5 gemas

- 5 ovos

- 3/4 de xícara (chá) de açúcar

- 3/4 de xícara (chá) de farinha de trigo

- sorvete de creme para acompanhar

 

modo de preparo

- unte com margarina 12 forminhas com 7cm de diâmetro e reserve

- pré-aqueça o forno a 270º C. numa tigela refratária apoiada sobre uma panela com água bem quente, sem ferver, derreta o chocolate e a manteiga, mexendo delicadamente

- adicione o café e misture novamente

- em outra tigela grande, misture as gemas com os ovos e o açúcar. junte o café com o chocolate derretido e a farinha aos poucos, mexendo bem

- distribua a massa nas forminhas. asse por 7 minutos

- desenforme e sirva com sorvete de creme

 

rendimento: 4 porções

 

[...]

o verão se foi e ele não voltou. será que terei enfim a liberdade? e se partisse com as crianças? de certo morreríamos de fome. quem daria emprego a uma mulher abandonada pelo marido? pior, que fugiu. é melhor esperar.

[...]

 

capuccino gelado

 

ingredientes

- 400g de cappuccino

- 500ml de água gelada

- 500ml de leite gelado

- cubos de gelo

 

modo de preparo

- misture em um liquidificador o cappuccino, a água e o leite

- bata por aproximadamente 1 minuto

- acrescente cubos de gelo e sirva

 

rendimento: 8 xícaras de 200ml

 

[...]

tantos anos que ele se foi... sinto um pouco mais de poesia em meus dias. mesmo longe de poetas. é o cotidiano, o balanço das folhas. minha filha que terminou o curso ginasial.

se o pai aqui estivesse certamente ela não teria avançado tanto. a educação dada às mulheres é restrita a poucas letras e contas, e os hábitos de leitura reservados aos romances selecionados por eles, os homens.

ela também não sente sua falta. achava que ele era um monstro, quando à noite voltava bêbado da rua. Os outros mal se lembram dele.

ah, hoje começo o curso de cerâmica que sonhei toda a vida. farei com um grupo de mulheres do jequitinhonha. elas também vivem muito bem sem o paternalismo.

[...]

 

bolo de banana com café e castanha picada

 

ingredientes

- 7 bananas

- 3 xícaras de farinha de rosca

- 3 xícaras de açúcar

- 5 ovos

- 1 xícara de óleo

- 1 colher (sopa) de café em pó

- 1 colher (sopa) de fermento

- 100g de castanha picada

 

modo de preparo

- bater no liquidificador as bananas, os ovos e o óleo

- misturar com os demais ingredientes, acrescentando por último o fermento e a castanha picada

- levar ao forno (temperatura média) para assar em uma forma untada c/ manteiga e farinha de rosca por 40 minutos

 

[...]

ele voltou. vinte anos se passaram. está mais velho, mais acabado e com uns olhos tristes, meio mortos. parece que esteve no famoso hospício de barbacena. apesar de tudo, tenho pena. sei de coisas atrozes que fazem com os internos. nossa filha quer travar uma luta antimanicomial.

ele botou o açúcar na mesa. teve a estapafúrdia de perguntar se o café iria demorar. ah, mas esses anos sem ele me fez tão bem que não tripudiei. também ele parece tão perdido, vago, evasivo. achei melhor agir como se nada tivesse acontecido.

depois... depois vou embora. os tempos são outros agora. as crianças estão grandes e posso me sustentar vendendo artesanato, quem sabe, meus quitutes.

espero não voltar nunca mais. terei coragem, ou ao cruzar os olhos com os dele vai me pesar essa moral imprestável e machista?

ah, estou tão cansada... vou coar o café...

 

irish cofee

 

ingredientes

- 2 colheres (chá) de açúcar cristal

- 200 ml de café forte

- 150 ml de uísque de boa qualidade

- 2 colheres (sopa) de chantilly

 

modo de preparo

- escalde dois copos com água bem quente e seque-os

- coloque 1 colher (chá) de açúcar em cada copo

- acrescente o whisky e complete com café

- misture até dissolver o açúcar

- acrescente 1 colher de creme de chantilly cuidadosamente

  em cada copo e sirva sem mexer

 

rendimento: duas porções

 

[...]

 

 

 

2 contos
patty flag

verrückten hunden

(de Memórias de Patty Flag)

 

Minha família já esperava por eles, "os cachorros loucos". Mas esperava sem acreditar. Boatos aqui e ali diziam dos Goldberg da rua 14, dos Meyer do bairro de baixo. "Mas, afinal, — dizia meu pai — estamos em guerra! Pessoas somem!".

Não tínhamos recursos ou jóias de família que custeassem a viagem que muitos vinham arriscando, rumo à América. Viagem cara e ilegal, os países americanos eram inimigos, então, primeiro sair da Alemanha por terra, etc, etc. Tinha ouvido trechos da conversa no dia em que o rabino veio nos visitar.

Quando o rabino saiu, papai me mostrou, no sótão, uma folha solta do forro, "Não há de ser nada, mas estão todos falando... Qualquer coisa estranha, se os "cachorros" aparecerem, esconda-se aqui. Só saia quando tudo estiver em silêncio.

Poucas semanas depois, as batidas na porta.

Mamãe me levou ao sótão, papai foi abrir a porta.

De entre as telhas e o forro, podia ouvir seus latidos ferozes, — raus! — os gritos de meu pai, o desespero de minha mãe.

Dois deles entraram no sótão.

— Já devem ter mandado a vadiazinha embora.

— É uma pena...

— Sim, dezesseis anos! Está pensando o mesmo que eu?

Desceram as escadas do inferno rindo.

Os risos ecoaram por muito tempo mesmo depois que os gritos calaram.

Esperei o silêncio.

Quando fui procurar Gustaff, tive medo, ele era um deles, e atendeu a porta com seu uniforme. Mas me trouxe um espelho para eu ver, "as lágrimas e o pó lhe deixam estranhamente bonita".

Amanhecia. Não vi nada.

 

 

 

noite

(de Memórias de Patty Flag)

 

Saí da Alemanha brigada com as noites. No mar não foram outra coisa que dias escurecidos. Por elas eu passei como trespassei os dias, chorando.

 

Depois de duas semanas de navio, desembarcara há poucas horas no Rio de Janeiro. Vagara pela orla arrastando a mala de roupas até o entardecer.

Eu estava em Copacabana quando ela chegou e se sentou ao meu lado, muda, talvez pensando que eu não notasse.

De algum jardim uma dama da noite exalava seu perfume peculiar e a magia e a demência da noite se infiltravam em mim. Eu lembrava, mas o calor da brisa desorientava meus sentidos e esqueci de chorar.

A noite cega, a noite romântica, a noite crua, a noite mascarada. A noite pão e a noite morte, todas as noites naquele instante.

 

Os homens passavam com seus automóveis pretos e diziam coisas que eu ainda não entendia. Entrei naquele Cadilac apenas porque era vermelho.

O cheiro dos lençóis do hotel, o cheiro da goma dos cabelos do homem que ia e vinha em cima de mim, gemendo. Concentrei-me em seus cabelos que não se mexiam.

Não era a minha primeira vez, mas ainda doía.

Algo que eu não poderia supor quando Gustaff, poucos meses antes, acariciara meus seios por cima da roupa. Então eu acreditara que era uma mágica, um truque que os homens faziam para arrancar nossos corações pela boca.

Depois, com os oficiais que negociaram com ele esses favores em troca de minha viagem, até este homem e mais alguns, sempre doeu. Habituei-me.

 

Dormi algumas horas no hotel que o cavalheiro deixou pago. Recolhi os tostões jogados no criado mudo, e saí desabalada antes que se acabasse a noite.

Ainda na calçada, respirei fundo o ar gelado e úmido da madrugada. Uma, duas, três vezes. E vi um sorriso escapar pela primeira vez desde que a SS arrancou meus pais da cama no meio da noite.

 

 

na terça os lobos tiram as vampiras para dançar
roberta silva
   

Neblina veste a ventania

soprano deste festival de amor.

O enfeitiçado esgueira-se mata adentro

um uivo solo a desperta do torpor.

 

Na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

Luz negra tinge de azul a musa morta.

Curvado como um servo à sua esquerda,

Lupus, o lobo, a espera e vigia a porta.

Observa-a e a seus próprios pêlos se levantarem.

 

Na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

Arrasta-se mendicante, demarcando seu território.

Por covardia e devoção, lambe suas mãos.

Só eles conhecem o verdadeiro dia febril.

 

Na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

Seminua, semicerrados os olhos

arrepia-se enquanto Lupus

enrosca-se cambaleante em seu corpo.

O amaldiçoado levanta-se.

 

Na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

Quebrado metade de seu encanto

meio humano, meio fera

toma-a em seus braços

e amorosamente a dilacera.

 

Na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

Lágrimas famintas e desejos saciados

inundam seu coração assassino.

Blasfema contra si e volta ao covil

para se recompor até a próxima segunda, pois

 

na terça os lobos tiram as vampiras para dançar.

 

 

 

when the wolf is at the door and you have no door
ro druhens
 

I

A perfeição da mediocridade é atingível quando o mínimo nos basta. Teologia do desapego. Botequinagem da carência. Serenidade nas entranhas, nos gestos, nos desejos. Serenidade atingível quando o medíocre é a medida do possível. Desapegados e carentes, rebanho a caminho do matadouro, olhamos com olhos de pasto a vida que faz a curva e se perde no banquete dessas carnes sem tempero.

 

 

II

A vida, o mundo, todo mundo tá ficando cada vez mais chato. A cada dia apodrecem as relações, regradas pelos estereótipos da mídia, atrofiando a linguagem do sentimento. E nos visualizamos através do espelho improvisado da moda; apenas um modelo. E de quê? A relação íntima, a que constrói o ser humano, vai pro (cyber) espaço. Iconoclastas, comecemos a partir de agora. A única regra é quebrar as regras. Não me importam as cicatrizes e me sobra na alma espaço para tantas quantas forem, se este é o preço por ter o peito aberto à baioneta. Mas aí é que percebo que todo mundo come, bebe e dorme.

 

 

III

Este silêncio, possuído de todos os demônios, me chacoalha a língua e faz calar o anjo besta que me habita. É a língua do demônio que me lambe os lábios e busca no fundo úmido as palavras secas que o tal anjo besta me enfiou pela goela abaixo. Eu bordo com as mãos os versos que a minha buceta  escreve.

 

 

um tiro e nada mais
romina conti
 

Painel passava pelas ruas do Pinel. Dizia que aquela coisa alcandorada era o silêncio. E ele era apenas um retrato do poder total. O poder total e o bem total é o mal total. Simplesmente por saber tudo: por poder tudo: por comer tudo: por ilhar-se quando quiser: por ter total controle sobre as coisas: por ser assim um seguidor e um avatar. Por tudo isso Painel acha que as coisas que pinta são geniais. Aliás, ele se chama Painel porque pintou um painel do metrô. E agora o que quer é estar em tudo e pertencer a tudo e em todo o lugar. Estar em tudo ao mesmo tempo agora. Por que fazer perguntas não é mais sua arte? Ele que foi repórter antes de ser internado. Ele que agora uiva pra lua. Ele que comenta em voz alta as coisas que o silêncio lhe diz. Por que sabe tudo sobre o tudo e o nada? Por que sabe nada sobre o nada e o tudo? Neste exato momento o mal supremo se apossa dele junto com o bem supremo. Neste momento exato ele sabe o que precisa saber sobre o planeta Terra e está procurando alguma coisa nova para fazer. Neste momento ele entra numa loja e compra uma pistola dourada. A pistola tem um buraco. Tem uma bala só e ele sabe como fazer para matar alguém. Ao mesmo tempo Deus e o diabo. Ao mesmo tempo tudo e nada. Ao mesmo tempo várias dicotomias. Esse revólver foi caro e é importado e tem uma bala dentro. A bala mata alguém. A bala pode ser o fim de tudo. Mas para ele, que sabia tudo sobre tudo e nada, não havia outro caminho. Era como se fosse o ser mais iluminado do mundo e possuído por ordens superiores, ele atirou. A bala entrou na cabeça. Não era uma bala Juquinha. A bala fez um buraco e sangrou as têmporas. Era alguém ali que morria. E para este alguém não morria ninguém, pois apesar de ser não se continha mais em si. E o silêncio novamente cochichou algo no ouvido do morto. Dizendo coisas desconexas. Aturdido por estar diante de alguém tão importante para todo mundo ali. Painel de olhos abertos e esbugalhados olhava retesado o horizonte. Olhava como quem não olhava. Dormia como quem não dormia e aos poucos seu corpo foi caindo em cima de si. Chegou a polícia cheia de perguntas e queriam saber como foi, quem matou, quantos tiros e ninguém sabia nada sobre o assunto. Naquele exato momento todo mundo que se achava Deus se matou. Então só restaram os demônios no hospício. E eles vinham em formato de gritos e de um desespero atroz. Tudo acabou assim: o hospício cheio de demos. Todos de mãos dadas rezando um pai nosso. Todos deus. Todos bem. Todos mal.

 

 

 

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