edição 25 | abril de 2008
temas:  "quando soltaram os cachorros loucos" | noite

 

a fiandeira do dia
jussara salazar

 

Noite de lua, boa pra parir, boa pra pintar a boca, pra doidar, fazer tempestade em copo d'água. Boa pra loba, pra cachorro, boa até pro cão, ele. Na mata a noite aclara, saio pra ronda, reviro, conto estrela com a ponta dos dedos, ninguém além, insetos noturnos, vampirinhos entre as folhagens. Rainha a mata é minha, aranha teço os fios negros do longo caminho e o rio que surge é espelho, me vejo sou, a outra, sou a velha que faz mil anos colhe o fruto que ainda se chama noite e colhe também o sol, recolhe junta esse fruto púrpura que desmancha o véu das trevas, apruma o fio de luz, sustenta o firmamento côncavo-rebento, desfia a escuridão funda, rotunda, ventre feito de pele e sumo quando banha o que ainda é sombra.

A terra, rio seco soco temporão é flor no estômago do tempo que passa, esse tempo.

— Vai me diz pra quê passa, vai!

Desviro desanoiteço.

 

 

8 poemas
líria porto

pince-nez

 

maldita cuja

maldita suja

aquela zinha

desfaçatez

 

tomara caia

tomara encalhe

tomara encolha

o tal freguês

 

atrás da porta

existe um sapo

a boca torta

fel palidez

 

ninguém mais toca

no meu pedaço

nenhum tabaca

nenhuma rês

 

sou azinhavre

peste sarnenta

solto os cachorros

cobra talvez

 

 

 

cabulosa

 

pode ser eu seja esteja sempre tenha sido ou me torne

daquelas pessoas a ouvirem as pedras antes de atirá-las

pense em rimas estridentes a implorarem esmola

com uma sacola de plástico reciclado perto dos semáforos

sob chuva de granizo fale fale fale ou diga nada

feche-me em silêncios dê quatro ou sete estalos estéreis

histéricos agressivos adjetivados fique mudo ou gago

 

pensava que me comunicava ninguém me entende

tenho dor de dente e não dor nevrálgica

 

 

 

perfídia

 

chega-nos de través

pela boca de outro

com muito veneno

igual cascavel

os olhos de vidro

chocalho no rabo

língua bipartida

 

o couro — cuidado

precisa ser grosso

imune às víboras

 

 

 

boca-da-noite

depois de beijá-la

o sol decretou

a lua é frígida

 

e condenou-a

à solidão das virgens

 

 

 

insônia

 

a boca escancarada da noite

os urros do silêncio

as teclas mudas

 

não tilintam os cristais

não estilhaçam a vidraça

amantes não sussurram

não há sinos de igreja

o mundo acabou

o relógio dorme

o tempo não passa

 

onde estão os latidos

os galos os gritos

os olhos do sol?

 

na cama imensa

o corpo exausto

o vazio da tua ausência

e os mil anos desta noite

que nos engole

que nos vomita

 

 

 

a vida balança mas não haicai

sexta-feira à noite

rio de gente nas ruas

peixes dentro d'água

 

mesas nas calçadas

letras no canto da língua

véspera de sábado

 

 

 

noite

 

mulher sem escrúpulos

sem cabimento

depois do crepúsculo

veste-se de preto e ostenta

brilhantes perfumes amantes

luxúria sedução

 

 

 

insones

 

a noite roía as unhas

um vento forte zunia

imenso o leito vazio

até a lua minguava

e não havia estrelas

 

eu tive pena da noite

negro manto de graúna

os piados da coruja

nuvens densas carrancudas

intranqüilo céu de piche

 

uma sirene tocava

os mendigos sem abrigo

os bêbados a madrugada

a rouquidão os gemidos

a noite toda tremia

 

nem ela nem eu dormimos

 

 

 

para mordê-los
lucélia majistral

Eu olhei para ela com aquele meu olhar eu-não-devia-te-contar-isso e ela olhou para mim com aquele seu olhar devia-sim-conta-logo-porra. Se um cachorro louco, espumando, não tivesse adentrado o restaurante e atacado a senhora gorda da mesa vizinha eu jamais diria a ela que tinha sido eu quem soltara todos os malditos cachorros loucos da cidade. O cachorro entrou e pulou em cima da senhora gorda da mesa vizinha. Um garçom tentou acertar o cachorro louco com uma garrafada e acabou acertando o senhor gordo marido da senhora gorda. A senhora gorda, àquela altura, o cachorro louco grudado em sua jugular, esvaía-se em sangue. Pelo menos não vai passar por toda essa chateação de ficar louca e coisa e tal, ela me disse, desinteressada, mordiscando um pedaço de brócolis. Foi quando eu olhei para ela com aquele meu olhar eu-não-devia-te-contar-isso e ela olhou para mim com aquele seu olhar devia-sim-conta-logo-porra e eu contei, e então ela me perguntou: Por quê? E eu respondi, indiferente à confusão do lugar (o gerente aparecera com uma arma e alvejara o cachorro por duas vezes, matando-o quando, infelizmente, a senhora gorda já estava morta; naquele momento, tentavam acordar o senhor gordo marido da senhora gorda, ainda desacordado por conta da garrafada), ela me perguntou e eu respondi: Para mordê-los.

 

 

quando soltaram os cachorros loucos
márcia maia

quando soltaram os cachorros loucos

branco um só negro um só e todos os

outros azuis

                   não se fazia tarde

nem se fazia noite ainda   rouco

 

sino abafava o alto e agudo alarde

(

quando soltaram os cachorros loucos

branco um só negro um só e todos os

outros azuis

               )  

                  do medo feito mouco

 

mínimo mudo apavorado grito

quase-palavra sob a língua inerte

risco de sangue que entre olhar e boca

 

(

quando soltaram os cachorros loucos

branco um só negro um só e todos os

outros azuis

               )

                 dos transeuntes arde

 

justo no instante feito noite e tarde

(

quando

          )

            descrentes e famintos de

carne em vazio imersos loucos homens       

                                                    

ocos

       (

         soltaram os cachorros loucos

branco um só negro um só e todos os

outros azuis

 

 

 

 

vigília
maria terra

Apesar de o momento ter sido anunciado com uma antecedência que mais lhe parecera prova inconteste de crueldade, o aviso de que se preparasse para a partida ainda assim a pegou de surpresa. De nada adiantara a menina, quase uma criança, ter usado dois meses de uma adolescência que não voltaria jamais a preparar os dois baús com tudo o que mais amava, entre agulhas de crochê e de tricô, retratos, livros de poesia e de romance e roupas, muitas roupas, pois que a sensação que a envolvia no instante da partida era a de que não voltaria jamais. Além desta impressão assaltava-a também o sentimento de que havia esquecido de incluir algo muito importante para levar consigo. Primeiro, conferiu os quatro cantos do quarto a fim de descobrir o objeto faltante. Depois percorreu toda a casa, do quintal dos fundos à varanda, em busca do incógnito item da bagagem sem que pudesse defini-lo, até que desistiu da busca e a interpretou como mais um dos ramos da raiz prestes a ser destruída que ainda a mantinha agarrada à sua casa. Mesmo após ter chegado ao colégio interno, para onde o pai vilão e um destino mau decidiram que passaria os melhores anos de sua vida, e mesmo depois de ter esvaziado sob o olhar vigilante de uma freira todos os pertences que havia trazido e de assim ter tido a oportunidade de conferi-los um a um mais uma vez, a estranha sensação de que havia deixado no casarão um pedaço indispensável de sua própria existência não a abandonara um só instante. Isto a assustava de tal maneira que sequer o fato de se saber castigada injustamente, com o isolamento do desterro e o panorama de um futuro atormentado, a conseguira deixar mais amedrontada. A menina, porém, ainda não desconfiava, naquele momento, de que algo ainda pior em breve conseguiria ultrapassar em terror a sensação de perda que a perseguia e transfiguraria seu coração, que antes julgava valoroso e forte como o dos grandes poetas que lia incessantemente, em um diminuto fruto seco e sem frescor. Nesse mesmo dia foi apresentada ao monstro. No dormitório, depois da oração coletiva feita à luz da última vela acesa no castiçal erguido pela mesma irmã que a recepcionara pela manhã no momento de sua chegada, cumpridos os derradeiros rituais do dia, a freira, agora transformada numa figura macabra devido ao ângulo baixo da luz tristonha e hesitante, foi se afastando até a porta no fim do corredor de camas — onde outras adolescentes, julgava ela,  igualmente prisioneiras de um mesmo pai desnaturado e de um mesmo destino cruel preparavam-se para anestesiar de vez todos os sonhos de vida — e abriu-a lentamente. Da mesma forma fechou o dormitório e continuou se afastando. A menina pôs-se a vislumbrar os últimos sinais de luminosidade esvaindo-se pela soleira enquanto surgia, de pouco em pouco, a fera que em sua casa jamais lhe fora permitido conhecer, visto que, mesmo quando todas as luzes se apagavam, o aconchego do lar, a certeza de uma família unida e de um alvorecer que jamais faltava não consentiam no surgimento desse fenômeno ameaçador que, agora presente, a fez estremecer e encolher-se o mais que pôde. Entendeu imediatamente que, o que fosse que tivesse esquecido em casa jamais seria recuperado e que este algo muito mais assombrador e de tal modo poderoso jamais a faria lamentar novamente o que havia ficado para trás, e passaria a existir para sempre em sua vida. Depois que a luz emitiu o último lampejo, vi cair pesada e definitivamente em minha vida a verdadeira e profundíssima noite.

 

 

 

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