edição 25 | abril de 2008
temas:  "quando soltaram os cachorros loucos" | noite

 

quarto minguante
andréa del fuego
 

Salão encerado, suor entre os seios. Eu queria apanhar. Apanhar até a pele esfolar, provoquei. Joguei a sandália num grupo que dançava em frente, atingiu justo ele. Vestido de pirata, eu furaria seus olhos para que cego ele me odiasse. Acordei, levantei, lavei o rosto.

No palco evoluía uma banda antiga, encantei o senhor de chapéu vermelho, ele me quis. Beijei o velho na coxia, devagarinho. Ele me capinava o rosto com a língua áspera, a saliva umedecia a saboneteira. Acordei, bebi da água que deixo ao lado da cama.

Passei para uma sala oval com portas que davam para outras salas ovais, fui penetrando a ambiência. Alguém me chama, um bispo no quarto escuro, sentado no chão. Entrei. Fui rasgada com talheres de ferro, a carne se soltou dos ossos com nenhum esforço, ele me desfiava pelos punhos. Roeu a coxinha de minha mão e ofereceu o resto ao Saturno numa pia batismal. Acordei.

O homem vestido de pirata me tirou para dançar. Não queria mais furar seu olho, desse ele um vacilo e eu o montaria, faria dele cavalo árabe. E assim foi. Campeei seu tronco, meu sexo ceifava o dele. As pessoas desapareciam uma a uma, o velho de chapéu vermelho tocava de costas. Acordei, abri as cortinas do quarto.

O salão repleto de meninas. Matinê, eu era tão menina que as coxas não fibrilavam com o calor. Fiz trenzinho por horas, enfastiada, cochilei no palco. O velho da banda me guardou na caixa de seu instrumento. Acordei.

Deixei tudo como estava, entrei a festa já ia alta. Me capturaram, dois homens. Um deles patinava dedos na minha cintura, outro soprava minha nuca. Dilataram-me. Bebi delícias de homem. Uma cereja entrou em mim, um licor escorreu, adocei e fui adoçada.

Voltei sozinha, eles ficaram. Até minha casa, túneis e faróis verdes.

Deitei-me nua e almiscarada, dormi. 

ensinamento
assionara souza
 

Um cansaço bem maior que a capacidade de compreensão. Quando chegou, era noite; não exigiu explicações. Nenhuma. Precisava. Lembrou-se do modo como a mãe esmerava-se em raspar cuidadosamente as pernas com a mesma lâmina com que o pai fazia a barba. As longas pernas da mãe acariciadas pela lâmina, preparando-se para serem acariciadas pela língua do amante. Uma lâmina mais afiada que a que o pai usara há poucas horas. Era uma delicadeza observar tudo aquilo. Ajudar a mãe a se preparar para o amante. Por isso quis. Porque fazia lembrar o silencioso passeio da lâmina na carne branca da mãe. Isso aproximava as duas. Essa cumplicidade. Quando o corpo traduziria outras linguagens desconhecidas do pai. O peso. A febre. Fluindo. Tudo a mesma freqüência do som original. O feto dentro do útero. O falo dentro do fluxo. A mesma atmosfera do vapor que saía de seu olhar. Se conseguisse se concentrar o suficiente poderia compartilhar da pulsação do mundo. Por isso não exigiu explicações. Nenhuma.

 

1 conto, 1 poema
cida pedrosa

o destino late antes da hora

 

Joly foi amarrado ao meio-dia. Só olhos e sede. O pé de juazeiro era pouco para a impaciência e o silêncio. A tarde era castanha e corria em um abril sereno, desses sem nuvens e de brisa rasteira a balançar as saias.

 

Joly foi amarrado ao meio-dia. A menina se aproximou da corda e foi puxada bruscamente pelo pai. Sem entenderem nada, o encontro de quatro olhos aflitos, partido apenas por um leve grunhido e um suave balançar de rabo.

 

Joly foi amarrado ao meio-dia. Olhos vidrados, baba na boca. Não quis o pão embebido em leite, nem o almoço tirado da mesa e longe das sobras.

 

Joly foi executado ao meio-dia. Um pai uma única mão um único tiro misericórdia nos olhos. Duas cabeças dois corações. Um destino que parou. A menina não tinha palavras na boca e correu estrada afora. Tarde sem dentes, água entre as pernas e um latido encravado no ouvido.

 

A mulher parou no sinal ao meio-dia. Só olhos e cansaço. A sombra da alameda era pouca para a impaciência e o barulho. A tarde era castanha e corria em um abril apressado, cheio de nuvens e de um vento ligeiro.

 

A mulher parou no sinal ao meio-dia. O menino se aproximou do carro e puxou bruscamente a arma contra o vidro. Sem entenderem nada, se repete o encontro de quatro olhos aflitos, partido apenas pelo suave levantar do cão.

 

A mulher parou no sinal ao meio-dia. Estava com fome e na mesa posta pratos e filhos à sua espera.

 

A mulher foi executada ao meio-dia.  Um menino duas mãos vários tiros uma bolsa. Duas cabeças dois corações dois destinos. O menino não tinha misericórdia nos olhos vidrados e correu rua afora sem amarras. Tarde sem dentes, baba na boca, água entre as pernas e um barulho de sirene no ouvido.

 

 

 

vinil

 

para rodrigo cortez

 

 

à noite

a cidade muda de pele

 

a moça de vermelho

coxas de pedra

serve um gim ao poeta

que tateia um verso

 

na vitrola anísio silva

diz que sofrer por ti é viver

 

à noite

a cidade muda de pele

e o homem da esquina

se perde entre balas e fogos de festa

 

 

nem todo mundo
daniela lima

Penso, Daniela, eu, esse maior dos idiotas — um confesso, contudo —, que existem só dois tipos de pessoas, a despeito de tudo mais: as que, no amor, precisam antes ser amadas e as que precisam amar.

Acordava no meio da noite com a sensação de que estava faltando alguma coisa, levantava, andava pelo apartamento, conferia as portas, o gás e sentava no sofá ao lado do telefone. Queria ligar para alguém; queria ter para quem ligar, mas: ninguém. Verificava se ainda havia alguma luz acesa nos prédios vizinhos e, quando havia, imaginava por quê. "Estou morrendo de tempo", ele disse. "Estamos", respondi. A última conversa não me saía da cabeça. Sempre ficava com a sensação de não ter dito tudo e de ter dito tudo errado e de ter escondido o que não deveria. Queria ter dito: "Não estou feliz". Foram meses planejando, idealizando e viabilizando uma vida nova, unicamente para entender que essa vida nova não era a minha vida; que essa felicidade não era a minha felicidade. E que essa paz, esse silêncio, essa pessoa no espelho…! "Um café e a conta, por favor", "Aliás, esqueça o café, me traga um desfibrilador, que o meu coração ainda pode ter jeito". E eu achando que poderia viver sem coração; que amores assim poderiam ser mortos com meia dúzia de palavras enterradas no peito. Burra.

"Alô… Oi, te acordei?".

 

 

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