edição 24
| março de 2008
1 limeirique No jornal, baita
qüiproquó,
que terminou no
xilindró:
moça de família,
reza, terço,
bíblia,
rifou na web o
fiofó.
2 contos a hora das
coisas O silêncio percorre em
desespero todos os aposentos da casa. As duas irmãs pressentem a hora das
coisas. Laura sempre foge para o jardim. Tem medo que o tempo sufoque seus
onze anos. Assim como deforma a casa.
A luz do sol desliza as mãos mornas na parede principal da sala.
Uma carícia pesada que adormece devagar as cores e desperta figuras
disformes das lascas de tinta que se desprendem. As torneiras choram. O
gato esfrega-se feito sombra aos móveis que serviram a outras casas antes
de vir parar ali. Laura não quer que a mão do tempo a puxe para a hora das
coisas. O vestido amarelo é novo. Responde às rosas vigorosas que a
roseira sustenta; à revelia do que o tempo contamina.
Agradam-lhe as rosas. Permitem-se tocar pelo vento como que
entontecidas. O coração de Laura vibra dentro da pele em roupa nova.
Existe música no jardim. Por trás do silêncio. As coisas adormecidas e
doentes não chegam ali. Não podem estancar a música que os seus
pensamentos criam da partitura do vento.
Laura cerra a vista para que o rastro vermelho das rosas tinja o
campo da tela de seus olhos. E sussurra a música inventada. Isso acalma
seu pequeno e vasto coração. Dentro da casa finita, Ana prepara-se para o banho. Os braços cruzados e as mãos agarradas à barra da blusa. Os gestos são pesados. Sua juventude cheia de desejos atravessa o dia sem que nada aconteça. Respira fundo e ergue a roupa sentindo por um tempo o cheiro do corpo que fica no tecido. O seu cheiro disperso sem que ninguém o venha colher.
Molha as mãos na água morna que escorre do encanamento
antigo. Sente que o seu corpo é observado. Como se as coisas invejassem a
vida nela. Uma inveja que deseja tocá-la. Ferindo-a. Ela corresponde ao
desejo das coisas. Acaricia a água morna e leva as mãos aos seios. Os
olhos fechados. As coisas corrompem sua adolescência. E a casa a envolve
num abraço frio. O masculino do silêncio em suas mãos. Ana entrega-se ao
exercício de entender como o silêncio atinge seu corpo. O braço do vento
arrepia os pêlos. Sinais de um temporal que se aproxima. Ana gosta das
tempestades. Em noites assim, apaga as luzes do quarto e vai à janela
surpreender os gritos vermelhos das rosas despertadas em pânico pelo
romper dos relâmpagos.
Mas neste dia não haverá noite.
Com a irmã, Laura aprendera a amar as rosas. Às vezes encosta os
lábios delicadamente nos botões que guardam a fúria do desabrochar. Os
dedos frágeis pressionam os espinhos. Fecha os olhos de tanto sentir.
Assim é estar viva. Cada uma de suas tardes são como os botões de rosa.
Esta abre-se em definitivos tons de vermelho. Como se pudesse vingar-se
das coisas.
Uma lâmina afiada percorre a carne branca dos pulsos. A água morna
abre em intervalos mais fortes os sulcos da pele — enquanto Laura cresce
no jardim.
Entre as roseiras, a menina corre o carrossel de seu vestido
amarelo.
Mas sente tingir-se das rosas. E pára de repente; surpreendida.
Respira ofegante. O vermelho também faz parte dela. Líquido escorrendo
devagar em sua perna. Fez medo existir tão intenso, no meio da tarde; no
meio do jardim; sozinha. Os dedos pequenos manchados. O vestido amarelo
manchado.
Talvez Ana a fizesse compreender.
A noite arrasta-se pelos vãos. Os olhos de Ana enchem-se de uma
escura vertigem. Corpo pálido ao chão. Passos nervosos na casa. Vermelho
avançando na pedra antiga do piso.
Enquadrada na moldura da porta, Laura retém um grito. E contempla a
beleza fria da morte cobrir como um véu o corpo da irmã. O silêncio lambe
a hora das coisas.
No jardim, o vento açoita com violência os frágeis talos das
rosas.
o artista de
plástico [L]á é onde fica a sala dos
móbiles. Branca e com janelas que mudam constantemente de lugar. É
imperativo olhar. E sentir a ação das cores e formas agindo no olho como
um líquido luminoso. Escolho um deles para o meu especial desejo de ver. A
composição brinca comigo. Por vezes tenho certeza de que me chama. E os
meus pés perdem a referência dos planos. Suspensos, eu e o móbile, giramos
na sala de janelas oscilantes. Se me distraio de tanto observar, não o
encontro mais ali. Tenho que me mover de olhos fechados para conseguir
novo reconhecimento. Sei que há nisso um divertido truque. O móbile se
esconde dentro de mim. E quando fecho os olhos ele se mostra. Estou dentro
do encontro.
[A] memória converte corpo em
espírito. O {corpo (ele todo)} é [constituído {feito (formado)}] de
partes. Cada uma das partes tem um nome especial. Há muitas formas de
chamar cada parte do corpo. Mas chamar nem sempre significa fazer vir.
Chamar pode significar apenas nomear. Eu chamo o seu nome como se chamasse
o seu corpo. O corpo junto com o nome. Talvez eu queira estudar bem o seu
nome em mim para entender o seu corpo. Modo de pronunciar seu nome:
1. "Na boca é essencial
distinguir os lábios, a língua, os dentes [t], o palato, que compreende
uma parte anterior, óssea e inerte [h], e uma posterior, mole e móvel ou
véu palatal, e por fim, a úvula". [ferdinand] Seu nome é quase artigo +
afirmação. Artigo primeiro do código da urgência. Começo a pronunciar
sílaba por sílaba. Até que o sentido faça parte de mim. Dizer ou pensar
seu nome é sinônimo de sentir. [B]icicletas. Esferas. Um disco
de vinil. Gosto de coisas que prevêem movimento. É uma emoção segurar o
braço da vitrola e ir até a melhor faixa. Talvez por isso as músicas
comecem de um jeito especial: As
the world falls down! Tenho medo de arranhar o disco. Justo na melhor
faixa. Se isso acontece posso perder a música. Penso na música antes que
ela comece a tocar. Assim como penso em você. Acompanho o percurso da
agulha no disco. Essa é a parte física. E os pensamentos suspensos. Ouço e
lembro. À medida que a canção avança recupero toda a cena. Fragmentos de
imagens vindos à superfície. Olhar com desejo é sempre uma frustração
impulsiva. [IR] até. Dirigir-se. Planejar
ir por pura vontade. Chegar. Não pensar. Levar o corpo até o ímã que o
atrai. As ruas desencontradas. Porque dentro tudo embriaguez. Os passos
condicionando a rotação do planeta: pé por pé. Coisas adormecidas dentro
de caixas por tanto tempo. Marcadores de páginas. Fotografias perdidas.
Bilhetes. Nenhum plano que resista até o final do dia. Olhos insuficientes
para traduzir palavras. O que é o espaço? O espaço do corpo. O espaço da
casa. O espaço sideral. A roupa determinando um limite entre a pele e o
mundo. A roupa comprada. A roupa lavada. A roupa no corpo. O suor na
roupa. Entre a mão e a pele: a roupa. Todos os materiais provenientes do
corpo. Pêlos: linhas & tecidos. Olhos: vidros & acrílicos. Língua:
plásticos & borrachas. Dentes: metais & lâminas. Unhas: papéis
& esferográficas. O mundo todo em volta feito a partir do corpo.
Olho pra ela e penso que
sempre quis ter uma boneca assim. Com bochechas tão rosadas e que me
dissesse "sim" a cada vez que eu a tirasse da caixa. Minha mãe me ensinou
a tirar uma boneca da caixa: "Ela
será sempre sua se souber guardar, meu querido". — minha mãe dizia. A
boneca sorri mesmo quando presa. Mas não é bem um sorriso. [I]ronia de filhote abandonado
que balança o rabo. O que quer mesmo é que uma criança a leve para
brincar. Bonecas sofrem do tédio das coisas de plástico. Um tédio moderno
e sem história. Existir é imediato. Por isso querem tanto sair da caixa
para brincar. E querem ser desejadas o tempo todo. Sei disso quando encaro
a boneca de frente. Uma roupa que parece per(feita) no corpo. Botas
brancas com detalhes de curva-francesa em dourado. Se eu tirar toda a
roupa, certamente vou querer que ela permaneça de botas. Ainda haverá
tempo. Presa na caixa. Impassível. [N]ada a atinge. Nem o turbilhão
da rua consegue desfazer a nitidez do risco de riso construído no delicado
rosto. Observo os fios de arame na altura da cintura; nos braços; nos
tornozelos. "Eu posso libertar
você, garota! E te levar pra brincar longe daqui". Sempre sinto
tristeza e prazer. Sinto o quanto sou capaz de violência. Ela aceita e
quer. Bonecas têm uma convicção desafiadora. Sou o dono da brincadeira.
Não posso fraquejar. Desenlaço a amarração. Ela se mexe ansiosa
pressupondo a liberdade. Os meus dedos apalpam a curva do quadril. Os
olhos dela brilham mais. Sou Jack, "O iluminado". As
cores acima da minha cabeça. E o rosto diante de mim. Olhos de vidro
querem ouvir cada palavra. Estou pronto pra falar. Estou pronto pra me
comunicar com ela. Dizer tudo o que penso. Um cigarro entre os dedos e a
fumaça doce aderindo-se aos poros e cabelos. Não tenho como reclamar. Se
quero ver a dança de Salomé terei de aceitar cortar a cabeça de João
Batista. Nunca me senti tão atraída
assim por alguém que não fosse do mesmo material que eu. E eu mastigo
lentamente a língua de plástico enquanto observo o mecanismo de sua boca.
Por favor, moça! Gostaria que você
me trouxesse urgente um guardanapo para eu pôr em volta do pescoço.
Assim evito que o sangue suje meu novo traje. O mundo fora da caixa orbita
em torno dela. A minha mão delirando com texturas plásticas. À nossa
direita, meninas magérrimas desfilam Herchcovitch. À esquerda, no front de
guerra, um soldado lê uma carta de amor entre lágrimas. Posso ficar a noite inteira aqui com
você. Mas eles não querem.
Quando ela anda, as mãos de Baco seguram firme as ancas que balançam em
volteios de entontecer. Me encosto à parede para desfrutar do melhor
ângulo que me permita ver o líquido dourado sair do pequeno furo circular.
Ela sorri tão docemente que mal me contenho em lavar as mãos. Os pêlos de
nylon deixam a água deslizar sem qualquer envolvimento. Você pode segurar a minha mão enquanto
vamos para o outro lado? As ruas são escuras e temos faróis poderosos
para nos guiar. Não quero ver que horas são. Na entrada, um brutamontes
pede que ela se grude à parede e percorre com as mãos mais rudes as curvas
de minha boneca. Ela pisca pra mim. Deixa eu ir uma vez? Dentro do
móbile, a luminosidade explode. [TO]ns de vermelho e azul e uma
música vertiginosa. Precisamos sair de nós. E entrar de vez no mundo
sintético. Circular por aqueles vãos no centro nervoso da música e olhar
os rostos refletidos pelas luzes. A batida cresce dentro forçando o
impulso a sair. Tudo começa a girar muito rápido. Ela compreende as coisas
projetadas para aquele espaço. E se entrega com vontade. Pode ser mais
rápido. Pode ser mais perigoso. Ela me diz que é pra gente fazer tudo
junto com eles. Dentro do móbile é possível existir por eternidades em
algumas horas. Todos parecem se divertir muito. Ela parece se divertir
mais ainda. Eu me sinto contaminado pelo tédio do plástico. Aceito a
bebida que os meninos azuis trazem. Bebo em grandes goles. Não adianta
querer voltar atrás agora. Estamos todos ligados no mesmo circuito
elétrico. O soldado beija a namorada no meio do baile. Mas ela não está
ali. O beijo dura quase uma música inteira. Mas ela não está ali. Eles
parecem girar em uma esteira rolante. Mas ela não está ali. O beijo é
líquido e o corpo se ilumina. Mas ela não está ali. Chamo pelo nome. É
essencial distinguir, entre as outras bocas, a boca vermelha da minha
boneca. Mas ela não está ali. Minhas mãos seguram a cintura de plástico.
Mas ela não está mais ali. Estou dentro do móbile. Na sala branca com
janelas oscilantes. Vejo que alguém me observa do lado de fora. Preciso
trazer para dentro. Para dentro do encontro. Não posso sobreviver por
muito tempo ouvindo a música. Não posso sobreviver aqui dentro sem ela.
Preciso puxá-la de volta. Para dentro do encontro. Antes que eu esqueça
como se pronuncia o nome. Antes que a agulha percorra toda a superfície do
disco. Antes que a música acabe. E reste somente a sala de móbiles
vazia.
ciclo Naquela casa todos já
nasciam velhos. Da hora do parto à primeira labuta o tempo era curto. Com
a menina não foi diferente. Mesmo sendo a filha mais nova, de quatorze
irmãos, o destino já estava traçado antes da lua pousar no seu rosto pela
primeira vez. Duas irmãs mais velhas haviam casado e faltavam mãos
femininas para as obrigações do dia. Começou jogando milho para as
galinhas, varrendo o galinheiro, tangendo as cabras para o chiqueiro,
aboiando os bezerros rumo à roça, lavando as xícaras da merenda e
auxiliando irmãs a encherem potes tão grandes quanto as jarras de
Cleópatra. A única coisa que detestava era recolher os penicos pela manhã.
Maldizia as vezes em que cada uma da casa acocorava-se sobre o urinol de
ágate branco e enchia a noite de chiado e charco. No mais, habituou-se
logo cedo a brincar com o trabalho e a ver o pôr-do-sol como recompensa.
Naquela casa todos já
nasciam velhos e nem o medo era permitido. À noite, quando as pernas se
abastavam na rede e olhos aflitos seguiam as figuras que a luz das frestas
desenhava na parede, apenas o murmúrio do vento e o mugir das vacas eram
ouvidos. Na garganta da menina nenhum gesto se fazia. O grito de vá
dormir, deixe de besteira era mais assustador que os fantasmas postos na
parede. Neste tempo aprendeu a levantar-se, correr para o terreiro e fazer
xixi sob os raios do luar. O medo passava e evitava o nojo de acocorar-se
sobre o ágate branco, quase cheio. Naquela casa todos já
nasciam velhos. Daí o espanto da menina quando ouviu pela primeira vez a
mãe dizer: saia já daqui, pois isto não é coisa para criança escutar.
Ficou parada um tempão e foi preciso sentir o beliscão para fugir na
carreira. Desde então aprendeu a ouvir murmúrios e a decifrar os mistérios
por entre portas e paredes. Descobriu que as mulheres parem iguais às
vacas, os homens cruzam igual aos touros e que existem certos dias do mês
em que as irmãs lavam paninhos lá para as bandas do curral.
Naquela
casa todos já nasciam velhos. A menina não viu quando surgiram peitos,
sorriu o rapaz, pariu os filhos, perdeu o marido e muito menos quando
ao pôr-do-sol um rastro
branco brilhou em seus cabelos.
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1 conto testemunha(s)
s. f., pessoa chamada a assistir a certos atos de outrem, para os tornar autênticos;
El mar, el mar. A areia perdida pelas avenidas, empurrada pela força d'el mar, el mar, el mar e toda a sua raiva, el mar dentro de mí, as veias e o mar azuis e de ressaca dentro de mí, batendo, batendo, e me revirando e: todo o meu interior para além de mí. Os primeiros raios de sol invadiram o quarto sussurrando promessas de calmaria, enquanto eu ainda tentava, com pás, sacos plásticos e vassouras recolher o que sobrou. Ouvi o assoalho estalar. A minha mãe já estava acordada. A minha mãe, um arremedo de gente, tossindo pelos cantos: — Já tomou café?
Estávamos tomando café na varanda e observando o movimento da cidade que, pela manhã, era nenhum. Cinza, cinza, cinza, atravessado pelo verde de uma ou outra árvore insistente. Minha mãe queria ouvir sobre o meu trabalho, amigos e até sobre a câmera que comprei para, assim, fugir de si mesma — a minha vida era o seu refúgio. Uma brisa suave e morna soprava os cabelos dela: — Filha, eles estão caindo... Há dias não tenho coragem de penteá-los. [A quimioterapia é um tratamento médico que utiliza a introdução de substâncias químicas na circulação sanguínea para controlar processos celulares. Esta terapêutica é indicada para doenças relacionadas com a multiplicação e mutação de células, em particular o câncer.] Fui até o quarto, peguei o pente azul — o mesmo da minha infância — e penteei os cabelos de dona Helena, filha-e-mãe, mãe-e-filha, sem palavras, sem depois, o sal espalhado pelo meu rosto, el mar, el mar...
Amor! As músicas da minha mãe só falam de amor, amor... E a língua do amor é o espanhol. Amor em Buenos Aires. As mãos dos amantes que se procuram nas ruas, praças e cinemas, o meu pai e a minha mãe abraçados numa estação de metrô; uma brisa suave e morna soprando os cabelos dela, enquanto ele dizia: — esas cosas, acaso, son el poema. O amor subtraindo e somando em Buenos Aires e... Aqui. A vida me subtraiu alguma coisa e, desde então, tento controlar a fúria do meu corpo, el mar, el mar...
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