edição 24 | março de 2008
temas:  labirinto | família

 

2 poemas
dominique lotte

pai

 

meu pai iniciou a vida

como convinha

foi criança, foi miúdo

bem cuidado e com saúde

viu o sol raiar, o sol se pôr

e com certeza ficou encantado

e sem se dar conta

viu-se de repente crescido

suas roupas encolhidas

a infância ida.

 

percebeu que a vida

não era brinquedo,

em vão tentou reencontrar a Magia,

a surpresa da inexistência o fez esquecer

de vez aquilo que ele chamava de Magia

 

no seu coração agora só a lembrança

dos bondes, da praia virgem,

da cidade limpa como conheceu,

das salas de cinema amplas,

do sorvete de chocolate.

 

meu pai não teve horizonte amplo

não soube o verdadeiro significado

da felicidade, eu garanto,

esperanças sumidas como se lagoas

fossem secadas pelo inclemente sol,

escravizado de manhã ao entardecer

o dia não tinha muito pra lhe oferecer

 

o pai do meu pai viveu num mundo

de flores e campos verdejantes

mundo ainda primitivo, nevoado

que meu pai nunca conheceu como devia

um mundo ao qual ele deu adeus

junto com o adeus ao pai dele

assim como eu dei adeus a ele

e meu filho me dará seu adeus

do mesmo jeito

 

pais surgem de um ponto

e somem num outro

é tudo que sempre todos teremos,

o pai é pai enquanto precisam dele

e sempre, sempre daremos o nosso adeus

a ele

antes do tempo

 

 

 

 

esgoto

 

em algum lugar essa rua acaba

num beco sem saída

e agora tem grama de cada lado

e o sol ilumina e os pássaros piam

e a brisa não traz cheiro de fumaça

e a rua encontra outra rua

que atravessa outra mais

e mais duas se cruzam

e agora há paz nessas ruas

mas não faz muito tempo atrás

que os judeus encurralados

no gueto de Varsóvia

ouviam

gritos, berros, vidros quebrando-se,

viam

sinagogas incendiadas,

lojas arrasadas,

escolas fechadas,

botas alemãs e a cruz gramada

 

e no labirinto do gueto

os mais valentes, em subterrâneos,

cochichavam à luz das velas

e planejavam o levante

enquanto o bebê chorava

enquanto balas crivavam as janelas

e alguém da família morria em agonia

e a mãe falava:

"espera mais um pouco, meu filho!"

e atingida de morte, murmurava:

"no céu te encontro!"

 

túneis cavaram, como ratos viveram

labirinto de vida ao labirinto do esgoto

de Varsóvia

mil lutaram, crianças e velhos,

morreram,

gueto arrasado, poucos ratos escaparam,

 

o sol se põe, nenhum ruído,

as ruas se calam,

a noite é calma,

uma criança chora, risadas,

tudo silencia,

o esgoto labirinto

por baixo do asfalto

ainda vive.

 

 

soneto rodamoinho
florbela de itamambuca

para Anike Laurita

 

antes eu conhecesse de você

mesmo sem nem você nem convidar

foi só pousar as vista e ogunhê

é quem chega quem leva quem traz mar

 

tiro no escuro, aí que a gente vê

se tanto fogo é palha ou tronco ipê

olho dágua na encruza do lugar

borbulha o rodamoinho no luar

 

se for perder nas onda de quem ama

vira prum lado vira pro outro lado

firma nessa canoa, o fundo chama

 

entre o mar entre a mata tá encantado

se cruza o pé na brasa não reclama

o que é do meu caminho tá guardado

 

 

andorinhas furam a paisagem

bicos, bicos, pontas de asas,

a curva rasante de um vôo

de encontro ao invisível

abismo

 

 

três movimentos mal-ensaiados para sair daqui

julya vasconcelos

 

Eu rivalizo.

Sombreio com o lápis preto o mais dentro do olho até que mais vermelho fique.

Azul, que seja:

um balão de gás lacrimogêneo, vestido esvoaçado de tafetá verde, peitos lactescentes:

sempre há de haver um estímulo quando é noite e todos acham que são a Alina Reyes com diários a tiracolo.

A via-láctea vai cheia de estrelas na retina dos outros, todos lindos e prontos. Na minha,

não.

 

Noite escura e chá de boldo.

Sorvo.

Eu trapaceio.

A criança escolhe a carta no monte e devolve, no rabo de olho, quando é inesperada e ruim. Eu devolvo vinte vezes.

Só posso andar fora da língua ou na língua dos outros. Na minha,

não.

 

Lábio e lábil são coisas diferentes, mas as duas aprisionam e mordem.

Um homem exatamente francês, disse: "Só se pode sair pelo preço do impossível".

Eu tenho duas vogais no lugar do nome

e não me chamo Alina Reyes.

 

 

 

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