edição 23 | dezembro de 2007
a vida como ela é

 

entre tapas e beijos
(ou as partes obscenas)

adelaide do julinho

meu coração batendo no seu

seu coração sofrendo no meu

: dialética da boa 

 

soneto groselha
florbela de itamambuca
 

vai refogando a vida na panela

enquanto lavo as folha da salada

a mesa da cozinha tá arrumada

só falta pôr dois copo de groselha

 

saíra vem cantar bem na janela

tralalá acompanho na toada

já começo a inventar de assoviada

e o bicho ressabiado voa pra viela

 

apago o fogo e garfo na mistura

que a banana do peixe tá madura

tem mais come à vontade sem frescura

 

não sei se reparou em mim agora

não sei se faz o tipo que namora

mas é que hoje eu não tô pra nove hora

 

 

 

conquista
marília kubota
 

- Este coração custa U$10.

 

O coração de plástico vermelho inflado saltou à sua frente. Bruno ultimamente se divertia pregando sustos bobos.

 

- Pare com isto, pare com isto, pare com isto, dizia Sandra. Poderia acrescentar: pare de ser medíocre. Mas a mediocridade era parte essencial de Bruno. Ele até se esforçava em fazer parte do pelotão dos médios. Como gerente de banco, devia estar atento para não parecer freak.

 

Sandra havia prometido que seria condescendente. Há algum tempo, deixou para trás a vida alternativa, os vestidos de cigana, o vegetarianismo, os amigos artistas. Estava disposta a se regenerar, um pilar da sociedade. Como alguém com uma mente perturbada pode...

 

- Tenho entradas para a ópera.

 

Outro susto, vindo da parte dele. Teria ouvido bem?

 

- Madame Butterfly. O banco está patrocinando. Sei que gosta de arte.

 

Ele queria conquistá-la. Vez ou outra citava uma peça de teatro, revelando a antiga paixão. Mas gostaria que fosse uma página virada.

 

- Estréia sexta-feira. Vamos?

 

- Por que está sempre me cortando?, ela falou intempestivamente.

 

- Cortando você?,  ele se surpreendeu. Pensou alguns minutos, depois respondeu: você disse para parar, quer dizer, de fazer brincadeiras, por causa do coração de plástico. Mas era um presente, como as entradas pro teatro. Ficou irritada?

Irritada não. Só não tinha vontade de falar com ele. Lembrou a tarde em que passou com Chico na praia. De como conversavam e se entendiam perfeitamente. Com Bruno era assim, um diálogo atravessado.

 

- Não.

 

- Não gostou do coração?

 

Olhou para o balão com desgosto.

 

- Gostei.

 

- E a ópera?

 

Não sabia ao certo por que queria conquistá-la. Tinha certeza que dava sinais de desagrado. Era isto, uma presa difícil? Talvez uma de suas conquistas mais difíceis. Ele poderia ter qualquer uma. Executivo bem-sucedido, charmoso e nada tímido. Mas queria a estranha Sandra, a solitária Sandra, a imprevisível Sandra.

 

- Neuza disse que a peça é sobre uma gueixa que se apaixona por um soldado americano, comentou. Neuza era a secretária dele.

 

- E você achou interessante?

 

- A gueixa fez lembrar você. 

 

Devia ter sido o único namorado até agora que tinha condições de pagar entradas de ópera. Chico era professor de História, em alguns fins de semana desciam à praia. Separou da mulher e voltaram a se encontrar.

 

- Não tenho vocação para morrer de amor.

 

Ele recolheu o coração inflável do chão. Ficou brincando de puxar o fio, em cima, embaixo, em cima, embaixo.

 

- Tá pensando que virei criança.  De vez em quando eu pareço um bobo.

 

E falou, como quem atira moedas dentro de um lago:

 

- Aquele seu amigo, como é o nome dele, Fernando...

 

- Francisco?

 

- Isto! Ligou umas duas vezes perguntando por você.

 

Ela parou de divagar. Ele sabia alguma coisa. Ou queria saber.

 

- Vocês não foram namorados?

 

- Fomos, na época da faculdade. Depois que nos formamos, brigamos.

 

Um terreno inseguro. O balão está novamente no chão. Bruno tira do bolso a carteira de cigarros e o isqueiro.

 

- Não sabia que tinha voltado a fumar.

 

Ele acende o cigarro e diz, calmamente:

 

- E eu fiquei surpreso em saber que vocês voltaram a se encontrar.

 

Sandra sobressaltada, confessa: 

 

- Nos vimos... para colocar as fofocas em dia.

 

Ele aproxima o cigarro do balão e o estoura. Agora Sandra se assusta de verdade, tem uma taquicardia leve.

 

- Calma, querida. Este coração custa só US$10. O seu, se acontecer alguma coisa, é um grande prejuízo. Tenho que cuidar de você.

 

E falando num tom mais alto:

 

- O seu ex-namorado, convidei para aparecer no banco, tomar um cafezinho.

 

Ela o olhou firme nos olhos. Por isso tornou-se valiosa para ele: não era ela...

 

- Convidou?

 

- Convidei. E quer saber, pelo visto, ele vai. Não tem conta lá, ainda.

 

 Volta a jogar as moedas no lago, distraído.

 

Ela o olha como uma criança contrariada por uma criança malvada. Por que  arrebentou o  balão?,  recolhe os restos do plástico. 

 

- Vou acabar convencendo ele a abrir uma conta, sorri, triunfante.

 

E beijando os dedos dela, ternamente:

 

- Tão longos, sempre achei admiráveis. Vamos à ópera? Tenho certeza de que vai se divertir. 

 

Chico não vai ao banco. Não vai voltar a ligar. Idiota, idiota, idiota. Precisava se livrar de Bruno. Era um ser maligno, entidade perigosa, manipulador...

 

- O coraçãozinho de plástico era brincadeira. A Neuza diz que tem promoções ótimas no shopping. Você não quer aproveitar?

 

Ele sempre cortava ela. Era como se estivesse pela metade, a metade aparente mostrava indiferença. A submersa submergia cada vez mais.

 

irmãos
mariza lourenço
 

Henrique amava Lúcia e sofria cada vez que a via passar, cada vez que a moça abria a boca encarnada e carnuda.

 

Henrique meteu um tiro na boca no mesmo dia em que Lúcia ficou noiva de Edgard.

 

A jovem, abestalhada, olhava para o caixão sem entender por que Henrique havia feito aquilo com ela, confidente de todas as horas.

 

Tia Neuza, no entanto, fez questão de botar lenha na fogueira do morto ao dizer em voz alta e para quem quisesse escutar:

 

- Bem que eu avisei que ele tinha inveja da irmã. E digo mais, esse noivado começou com ares de desgraça... Neuzinha, minha filha, você seria a noiva certa para Edgard!

 

a morte como ela é
santa maria

A romântica,

mesmo depois de morta,

continuou a receber flores.

 

...

 

As velas acesas,

ao redor do caixão,

choram seu próprio fim.

 

...

 

O gato preto,

ao saltar da janela,

não agüentava mais

a sua vida branca.

 

 

 

 

a face oculta
silvana guimarães
 

"Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível".

- Nelson Rodrigues

 

Três homens me amaram e eu poderia começar essa história assim: Terezinha de Jesus numa queda foi ao chão acudiram três cavalheiros todos três com o pau na mão. Ou pedra. Três homens me amaram e amaram igual. Como sofreram nas minhas mãos, no meu corpo, na minha loucura. Tão calma e explícita. Dos três eu arranquei o rosto: não fazia diferença. Eu sempre preferi a alma. E o corpo. Nem sempre nessa ordem. De pior que eu fiz, foi bagunçar a sua essência. Desgovernei o seu destino, que foi me desejar e acreditar que eu ia ser deles para sempre. Eu sou a mulher da vida dos três. Aquela que eles não vão encontrar ou ter jamais e vão desejar para o resto inteiro do seu tempo. Três homens me amaram. Deixei que chorassem, dizendo-se ressuscitados em mim. No meu amor. No meu querer. Os três que me amaram me traíram. E talvez a pior maldade que eu tenha executado nessa existência tenha sido isso. Nunca pedi perdão a eles pela traição que me fizeram. Dia sim, dia não, lembrei-lhes o mal que me causaram. Como um suplício sem fim. Para ouvir os três arrependidos, suplicando o meu perdão. Assim eu entendo o amor. Tem de rastejar. Aí eu acredito. Depois, mandei embora. Os três homens que me amaram tão igual. Dois sumiram no mundo e não me esquecem. O que ficou não sai de mim. Só ele revelou meu mistério de ser sempre *. Três homens me amaram e eu poderia terminar essa história assim: Terezinha de Jesus fecha a porta apaga a luz.

 

 

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