edição 23
| dezembro de 2007
no compasso da vida "Viver é muito
perigoso",
já dizia nosso Guimarães Rosa. Imagine você que hoje estou
aqui no enterro do meu amigo Rocha, companheiro de toda a vida. Rocha era
menino ainda, de uns quatro anos, quando sua mãe, costureira, foi morar lá
na minha rua. Eu tinha pouco mais de dois, dois anos e meio, e ficamos
amigos logo no primeiro dia. Brincávamos na calçada enquanto mamãe
estendia a roupa no varal. Nunca brigávamos um com o outro. Éramos amigos
mesmo. Talvez por sermos, os dois, filhos únicos, sempre nos tratamos como
irmãos. Quando fui para a escola
pela primeira vez, o Rocha foi comigo. A mãe dele não queria que ele
aprendesse as letras, não. Dizia que isso não deixava as mãos calejadas,
imagina! Minha mãe foi quem convenceu a costureira a deixá-lo ir comigo.
Íamos juntos, de mãos dadas. Por várias vezes ele me salvou dos amigos no
recreio. Eu era muito implicante e malcriado e abusava dos colegas. Rocha
era um garoto forte, bem disposto e se punha na frente do primeiro que
viesse me bater. Aí mesmo é que eu provocava. Fizemos juntos o curso
ginasial inteiro. Depois, fui para a faculdade e Rocha foi ser
carpinteiro. Sua mãe queria ver as mãos dele calejadas de qualquer
maneira. Conseguiu. Ele se
tornou um excelente carpinteiro. Dos melhores daqui da
cidade. Quando terminei o curso e
voltei para a casa de meus pais, ele havia se casado. Sua mãe tinha
morrido de tuberculose e ele, muito sozinho, se casou com a primeira
namorada que encontrou. Voltamos, então, a ser vizinhos e novamente
estreitamos nossa amizade. Jantava na casa dele uma vez por semana. Aos
domingos, ainda íamos juntos pescar. Como vê, continuamos a ser mais do
que amigos. Éramos irmãos. Um dia, a esposa do Rocha
pôs as pernas sobre as minhas, por debaixo da mesa, na hora do jantar.
Nunca, na minha vida, havia experimentado tamanha indignação. Mas,
respirei fundo, puxei minhas pernas, devagar e nada falei. Achei melhor me
calar e pensar muito sobre isso até decidir o que fazer. Naquela noite mal
dormi de tanto pensar. Que traição a dela! Logo comigo, um irmão da casa.
E agora, o que faria eu? Afastar-me-ia do amigo querido? Contaria a ele
que sua mulher era uma vagabunda e estava me dando bola? Ignoraria tudo e
continuaria a freqüentar-lhe a casa como se nada tivesse acontecido ou a
chamaria num canto, sem que ele estivesse em casa, e falaria com ela? O
que fazer? Pensava sem parar. Na manhã seguinte, depois do
café, ainda com as olheiras profundas de quem não fechou os olhos a noite
inteira, fui bater à porta do amigo que, já sabia, estava no trabalho há
tempos. A senhora abriu a porta e ressabiada mandou que eu entrasse.
Corajosamente, fiz-lhe ver o absurdo que ela praticara e que eu nunca
poderia trair meu amigo, meu irmão... e ela então? Por que fizera isso?
Por que comigo? Um companheiro de uma vida, do Rocha! Calada, ela ouviu
toda a minha indignação. Olhando bem dentro dos meus olhos, lançou-me ao
rosto a verdade mais absoluta e secreta que um casal tem durante a vida de
casado: — Enjoei dele — disse-me,
sem pestanejar — se não for com você, vai ser com outro. Com qualquer um.
Mas vai ser. Escolhi você justamente por ser o mais de casa, o mais
conhecido, o mais irmão do meu marido. Essa proximidade de vocês dois é
que me faz querer você. Como dividem tantas coisas, por que não podem me
dividir? Outro qualquer vai sair por aí falando de mim. Você não falaria.
Você é nobre, amigo, médico, companheiro do Rocha. Fiquei perplexo ao ouvir
todas aquelas palavras. Que será que era aquilo, meu Deus! Não podia
acreditar que aquela criatura de um metro e cinqüenta, quarenta e oito
quilos, estava me dizendo com a cara mais lavada do
mundo! Agora aqui, enterrando meu
melhor amigo, depois de uma vida inteira, sou obrigado a confessar que
realmente dividimos até a mulher. Juntei todos os meus sentimentos num só.
Para o amigo, tomei-lhe conta da mulher. Ela não seria de ninguém mais e
não o exporia a situações ridículas na rua. Para a mulher, dei-lhe o que
queria e até mais, porque a amei de verdade. Para mim, resolvi um sério
problema que sempre tive de não querer assumir responsabilidades maiores.
Visitava-a durante as tardes, somente, e nunca ninguém ficou sabendo de
nada. Viver é mesmo perigoso,
Guimarães. Mas é muito bom! (Conto selecionado no Concurso Nelson Rodrigues, patrocinado pela Editora Nova Fronteira e pela Oficina Literária de Sônia Rodrigues, filha do autor.) Cláudia Villela de Andrade (Rio de Janeiro, 1956). Professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o Prêmio Áureo Nonato 2007, da Prefeitura de Manaus, destinado ao melhor livro de memória: Prosas do ninho. Organizou e participou da antologia poética DiVersos (Editora Scortecci, 2002) e da antologia de prosa, Com licença da palavra (Editora Scortecci, 2003).
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