edição 21
| outubro de 2007
crônica do 2º andar Coloquei o ouvido no chão
para escutar os passos dela. Acho que ela não andava, não tinha televisão,
não ouvia música, não tinha amigos. Talvez não more ninguém no andar de
baixo. Talvez a mulher que eu vi pela manhã estivesse interessada em
comprar o apartamento 103 ou tivesse ido àquele jazigo onde talvez morasse
um velho que passava o dia na cama esperando por ela. Moro nos fundos. No
bloco dos fundos. Apartamento 203. Enquanto os da frente vêem a rua, os
carros, o luxo, eu vejo os varais, as calcinhas, as fraldas, o lixo, as
estantes abandonadas, os catálogos empilhados, os livros que serviram ou
nunca serviram, enfim, a vergonha que não se mostra pela frente. Pior que
morar nos fundos, é morar no primeiro andar dos fundos, no 103, porque eu
ainda vejo os telhados, os restos dos faróis que correm nas ruas. Acho que
o mundo do primeiro andar é o de um cego, tapado por esse muro verde,
limitado aos barulhos dos meus passos, dos pneus ou de algum grito de
socorro na madrugada. Aos dezesseis anos a gente nunca sabe direito dos
sentimentos. Vergonha, saudade, tristeza passageira, tristeza para sempre,
amor para sempre. Dá uma confusão. Sei que não vou enlouquecer e que tudo
passa como a minha infância, como meu corpo. Talvez me doam todos os
sentimentos de uma vez só. Talvez, me quebrem os ossos cada vez que sinto
algo. A vizinha de baixo usava um vestido verde, uma bolsa preta, quando
saiu pela manhã, tinha os cabelos curtos, escuros, os olhos também eram
escuros e a pele era branca. Ela era a mulher mais branca do mundo.
Branca, branca, branca, branca, branca e o batom, vermelho. Depois não a
vi mais. Nem na janela, nem pelos corredores, em lugar algum. Ela foi um
leve ruído nas escadas que se prolongara por 15 segundos, ou 30, ou 1
minuto às 15:00 horas. Abro a porta. Daqui a pouco desço as escadas. Não
vou a lugar algum. Finjo que não a procuro. Carmélia Aragão (Sobral/CE,
1983). Mestranda
espelho Eu vou falar porque
transbordo. Só porque não tem jeito, vou dizer adagas afiadíssimas,
impiedosas, sobre sua carne. Não me olhe ou esmorecerei e minha voz vai se
calar, exausta de compaixão. Não me olhe, porque as palavras sairão como
cuspes lançados contra seu rosto. Escarros antigos, empedrados de dores
caladas. Não, por favor, não desista. Não cometerei escatologias de
espécie alguma, prometo. Mas não me olhe. Ou engolirei os cacos da verdade
que agora, encara o seu rosto sem, no entanto, olhar para você. E
sangrarei inutilmenlhe sobre palavras que não me
cabem. Escuta. É quase certo que eu
não te ame mais. Carrego sentimentos morredouros que rangem cada vez que
respiro. Adivinho os extertores da esperança. Imagino apenas e, juro,
espero estar errada. No começo não era assim. No
começo eu vivia sob as bênçãos da ignorância. Eu era o rio caudaloso em
sua primeira água rumo ao oceano. Nunca mais essa liberdade que só os
intrépidos, que só os inocentes, já que, você bem o sabe, liberdade é
privilégio dos ignaros. Mas isso eu já disse e não quero esgotar sua boa
vontade, enovelando palavras, tecendo sensações que, você sabe, são minha
razão e conforto. Eu, cega de eternidade,
rolando solta por entre as frinchas da terra, abrindo caminhos com a
voracidade dos recentes. Sei que metaforismos são irritantes, quando se
trata de acontecimentos com datas e suores. Como agora, quando confesso o
meu desamor por você. É um processo que, embora abissal, não surpreenderá
seus passos com um vazio súbito, sem alardes . Estou convivendo com o
desfolhamento desse legado que me foi deixado como testamento de vida. Não
o pedi. Entende isso? Me foi ordenado como também veio a sentença: deve
crescer, multiplicar-se e
buscar a felicidade resoluta e, antes de tudo, amar aos outros como a si
mesmo. Percebe porque nunca
experimentei o amor? Inventei, modelei meticulosamente histórias
formidáveis mas que, você sabe, serviria em diversos protagonistas.
Qualquer um. Os que foram. Os que são. Serão? Não se preocupe, não choro
enquanto confesso tantos silêncios. É que agora, como muitas vezes, me
acontece o frio nos olhos e as águas salobras vêm protegê-los de alguma
agudez indesejada deste sentido. Por exemplo, não verei o cansaço das suas
carnes. Sua testa desolada e cabelos desconsolados sobre ombros.
Não verei seus olhos
abaixados, perscrutando sua alma enquanto escovo ancestralidades,
trazendo-as à luz impiedosa da realidade. Olha. Vê que não há amor
possível diante de tal constatação: você não cumpriu com a promessa e não
é quem deveria ser. Ou poderia. Seus sonhos meninados
persistem enquanto o tempo arrancou cada uma das pontes suspirosas entre a
possibilidade e o nunca. Não é possível que não tenha percebido isto! E,
desculpe, mas eles não lhe caem nada bem agora que já não conta com a
benevolência do futuro. Não quero postar-me diante
da sua inércia. Não suporto mais a docilidade com que mimetiza minha
dor. Apago a
luz. Claudia Camara é mineira de Belo Horizonte, cidade para onde sempre volta, embora viva fazendo malas e planos com os olhos para muito além das montanhas. Algumas vezes foi e experimentou o Rio de Janeiro e Paris. Mas voltou. Sempre volta. Escritora, desde sempre, mãe desde 1987 (confirmada no posto em 1998), publicitária (ainda), por motivos justos. Jura de pés juntos que vai envelhecer em Paris. Publicou 5 livros, o mais recente a novela Quinze dias, sete anos e alguns minutos, pela Editora Biruta, São Paulo (finalista do Prêmio Jabuti na categoria infanto-juvenil). Criação de uma série para TV La minute Féminine comprada pela produtora francesa La Parisienne d'Animation e, em fase de produção, o livro Sol no céu da nossa casa para a Construtora Odebrecht. Escreve o blogue Mentiras Históricas. as
aparências não enganam
Na primavera, tarde da
noite, entre as insônias e as lágrimas, eu abria a janela da cozinha para
respirar. Olhava lá para baixo e via os jabutis cruzando, bebendo água ou
comendo. Quando eu estava boazinha, jogava uma banana para eles. Quando eu
estava azeda, torcia para que a fome os matasse. Para que os morcegos os
mordessem. Para que uma cobra os devorassem. Como seria uma tartaruga
morta dentro do casco? E logo, fechava a janela. E logo, me olhava no
espelho da sala. Cláudia
Villela de Andrade (Rio de Janeiro, 1956). Professora,
escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o
Prêmio Áureo Nonato 2007, da Prefeitura de Manaus, destinado ao melhor
livro de memória: Prosas do ninho. Organizou e participou
da antologia poética DiVersos (Editora Scortecci, 2002) e
da antologia de prosa, Com licença da palavra (Editora
Scortecci, 2003).
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