edição 21
| outubro de 2007
con-fundidos As cores
cintilantes. Eram 5 horas da tarde. O céu verde-cor-de-rosa, o Sol dourava
as folhas. O Amor. A tarde grandiosa e a noite
branca. Ontem,
um filme: O Amor só existe para quem acredita nele. Meus olhos
presos não compreendiam o valor daquelas palavras. A igreja
São José, o Altar do Amor. Rosas vermelhas, Cheiros adocicados. Ao fundo,
um violino e um Anjo. O tempo parou.
A Noiva, seu vestido. Não sabia distinguir quem era a Pérola,
trazia no lábio rosado um Sim adormecido. Os convidados permaneciam
calados. Homem e Mulher con-fundidos - espelhos
refletidos. Nunca
havia participado de tal ritual. Mas minha casa naquela noite fazia-se
festa. E eu era o anfitrião. Ouvi o Profeta falar-lhes sobre o Amor. Tão
velho e solitário, como poderia falar tão lindamente sobre algo que não
viveu?! Sim, esse era o segredo. O Amor do antigo filósofo. Esse era seu
discurso. Noiva e
noivo choravam, testemunhas choravam. Eu, suspenso. Não conseguia
mover-me. Despedaçado ao chão por um tapa que não me fez acordar.
Continuei ali, suspenso. Vi as sementes plantadas, os temporais, o
replantio, os frutos daquele início de viagem. Eram frases curtas, como a
própria Vida. Ao
final, altar e violino, um Anjo cantando, rosas vermelhas ao chão como
tapete, a maciez das pétalas nos pés nus da Mulher e do Homem. Ali, a
multiplicação espontânea dos pães. Eles,
juntos, dentro de uma banheira. Ao longe, uma estrada, uma longa estrada.
A existência enfim... Desci as
escadarias da igreja. Atravessei a avenida. Entrei no Parque Municipal.
Ali permaneci em silêncio absoluto até às 7h. da noite. Só então, voltei
ao lago e estendi-me nas águas
frias, lavei-me e as minhas roupas. Voltei à
praça. A noite, a cidade, eu e meus companheiros. Ora dormíamos, ora
caminhávamos, ora bebíamos, e só assim ríamos. Emília
Passos. Mineira, nascida em 1964. Mestre
poética o vento cobre o
barro o oleiro faz do vaso o
vazio opala
derramada sobre o negro dos
olhos o barro cobre o vento
o oleiro faz do vazio o
vaso a mesa outonal desfaz-se em
folhas Jacineide Travassos (Carpina,
Pernambuco) nasceu com o vento e as magnólias. Autora do inédito Livro dos
ventos (poemas), participa das revistas Entretanto, Cronópios, e Zunái. Escreve em Logofania.
gestalt você já foi ao espalho
nega, não? então,
vá... quando tinha seis meses a
mulher desdenhosa levou-a até o espelho. esperava a mãe ver na menina
aquela assunção jubilatória de sua imagem especular; que acabasse aquela
relação umbilical-paranóica. apesar de ainda não se
suster sem apoio, na prima-hora frente ao espelho, ela vergou-se ereta
para frente. mas suas pernas e braços, seu corpo miúdo, não se moviam em
êxtase, sequer um riso fino no canto dos lábios. ela já era qual um
chimpanzé. não via imagens duplicadas, antes olhava o espelho como uma
identificação. como não gostasse do reflexo, seu eu precipitou-se,
assumindo uma imagem que continuaria a forjar por toda
vida. podia então a mãe descansar:
a menina já não tinha qualquer ligação com ela ou seu
mundo. ***
uma persona perguntou-me por que tanto ódio dos espelhos.
esquivei-me. nunca saberão que estes são para mim tal qual um retrato de
dorian gray.
sem se olhar, colocava por dentro dos olhos o carvão moído, ritual
tão dolorido que aprendeu com as prostitutas marroquinas. a imagem que
criava para si estava presa à memória-criativa; quando parava de
lacrimejar sabia estar pronta.
era, de fato, inúmeras. uma pra cada uma. atriz em tempo integral.
claro que era amada. conhecia a alma dos que lhe cruzavam e dizia o que
esperavam. nunca sobre si.
amar é que não podia. a memória-afetiva jogava-lhe nos olhos o
olhar desesperado da mãe.
a pobre não podia amar o feto, mas quem o podia sem o conhecer, sem
saber que seria, donde viria o afeto? claro que não crescia
concomitantemente à barriga. e mesmo após o nascimento conservava a
indiferença, e conforme seguiam-se as noites de insônia cultivava o
desespero. siamês do ódio. ***
olhava para os outros e lhes perguntava como a um espelho. por quê
não se mostrar, e a sinceridade? e como não achasse resposta em verdade,
desistiu de encontrar a felicidade, aquela clandestina, e foi ter com os
irmãozinhos da terra.
discursou a plenos pulmões, não como atriz que interpreta, como a
que vive, boa filha que era de stanislawski.
riu bebei cantou amou chorou. não se atirou à lagoa rodrigo de
freitas porque ela não estava lá. a amante que lhe prometera o encontro
faltou. mas nem por isso vacilou. aprendera bem a lição: "antes um
sofrimento elevado que uma felicdade barata". convicção tão peculiar dos
solitários. como os judeus retratados por nietzsche, a exaltar a condição
de oprimidos para se elevar.
até que esse espetáculo coletivo se esgotou e ela se
fartou.
procurou, então, uma identificação com o coletivo, mas num liame
individual. entretanto, seu eu não podia figurar-se como os da turba. ela
já tinha vivido o suficiente, apesar de não o
bastante.
oh, humanos. semelhantes, iguais, diversos? ***
ela percebeu que seu eu não estava no coletivo. estava no espelho
que desde a infância não encarava.
tirou suas roupas, removeu a maquiagem e soltou os cabelos.
levantou a cabeça ainda persona e olhou-se.
tantos eus por não saber quem sou. quem é essa a quem alguém por
certo amou. acaso sabe ela própria além do nome na identidade. lá está
minha identidade.
não gostou do que viu.
esmurrou o espelho em profunda histeria e quando ele se quebrou em
estilhaços mínimos esqueceu-se de si e suas
personas.
agora posso me reinventar. Nina Rizzi (1983). Formada em História pela UNESP, em Franca/SP. Mãe de uma menina de 10 meses, a Lavínia. Agora que acabou a graduação, mal sabe o que fazer. "Sou a catalisação, a junção de todos meus pseudônimos, pseudo-eus, eus perdidos, alter ego... o que chamo de ELLO. ELLO é também uma nova fase. Uma reconceituação de poesia, música e teatro, tudo um elo, ou ello".
1
poema
Era outra a mulher que ali
caía Desciam-lhe sobre os
ombros Cintas e vestidos
roxos. O perfume do
banheiro No espelho da
madrugada: Jurava-lhe lascas de uma
dama. No sem-sentido daquela
manhã Hematomas de
solidão: "Desculpe, vou me
atrasar." Os estilhaços, minúsculos e
grandes, aspiravam Outra mulher
caída E seus pequenos tormentos em
cima da hora. Serena Assumpção nasceu e vive
|