edição 21
| outubro de 2007
moça sem mancada Não tenho certeza se me
arrependi de ter comprado aquele "botucário" para Giovana. O objetivo dele
era distraí-la com uma atividade enquanto eu escrevia. "Botucário".
Complicamos as coisas desde muito cedo. Eu havia tentado, mas nada a
convencia de que era diário e não botucário o nome daquele caderno de capa
dura com um saci desenhado. O fato era que ela só se distraía quando eu
desenhava no caderno, depois ainda tinha que contar a história do desenho
para ela. Todas as páginas tinham desenhos meus. No meu, um texto ainda
espera para ser escrito. Toscos desenhos de
fragmentos de letras do cd de Cássia Eller. Em uma página o desenho de um
pouco de malandragem. Não é difícil desenhar um pouco de malandragem. Uma
bolinha espinhuda e uma legenda resolviam o problema. O duro era contar a
historinha durante o tempo restante do cd. Menos que isso ela não relaxava
para dormir e mais que isso eu tinha que desenhar outra coisa e colocar o
cd novamente. Assim, todas as noites, quando íamos para a cama relaxar
para dormir eu tinha que desenhar algo no botucário, contar uma longa
história sobre eu tô na pá, aiquenteguetnôu, este último um dos mais
fáceis, com um nome desses, logo imaginei um índio roqueiro, com uma
língua enorme, coisa e tal. Outro dia ouvimos: "...até
sonhar de madrugada, com uma moça sem mancada...". - Mãe, desenha uma moça sem
mancada! Não pude deixar de rir, mas
não seria difícil, bonequinhas geométricas com largos sorrisos era minha
especialidade e colocaria a legenda, moça sem mancada, ninguém nunca havia
visto uma, não tinha como errar. Caprichei nos círculos,
triângulos, pernas finas, lógico, duvido que ela comesse duas calorias a
mais do que o necessário para uma dieta balanceada. Largo sorriso, pensei
em algo para demonstrar intelectualidade, mas óculos não caem bem em seres
perfeitos, talvez um livro de física quântica. A fase dos porquês de minha
filha me fez desistir da idéia. Não faltou um liso cabelinho channel,
roupas largas, mas nem tanto. Com certeza tinha curvas perfeitas, mas não
era do tipo que exibe o corpo, não de propósito. Eu já estava morrendo de
inveja da minha moça sem mancada. Melhor parar por ali antes de pensar em
duas ou três graduações e alguns livros editados, não, isso seria tortura.
Moça sem mancada desenhada, vamos à história: - Esta é Sofie, linda,
inteligente, sábia e educada. Sofie não... parei por uns
instantes. "Não vou lutar com Sofie, vou usá-la para um momento didático.
Como sou esperta!". - Continuando, Sofie é uma
moça que não comete erros, ela levanta todos os dias pontualmente às 6
horas quando a mãe chama para ir para casa de sua avó, para ir trabalhar.
Ela toma todo o seu leite, sem arrotar, nem derrama um pouco em cima da
formiga para alimentá-la. Levanta-se sem arrastar a cadeira e vai até o
banheiro, fecha a porta sem bater e escova seus dentes do jeitinho que a
dentista mandou. Faz seu xixi, limpa-se direitinho e joga o papel no
cesto, Sofie nunca, mas nunca mesmo, deixa de dar descarga e de fechar o
cesto antes de sair do banheiro. Veste-se com calma, não deixa seu
shortinho torto, dá um belo sorriso e um beijo de bom-dia em sua mãe,
desce as escadas sem bater o chinelo, não bate a porta do hall, porque
sabe que os vizinhos do térreo estão dormindo. Sofie chega à casa de sua
avozinha, dá bom dia a todos, escolhe um brinquedo e leva para o quarto,
para brincar. Não corta o cabelo da boneca, nem da priminha, nem do
cachorro, pensando bem, acho que Sofie não brinca com tesouras, mesmo
quando ela encontra uma esquecida. Ela não brinca de soltar puns, nem
arrotos e não diz que vai passar meleca em ninguém. Ainda faltavam umas 5
músicas para terminar o cd, isso daria para um dia inteiro de boas
maneiras, olhei para minha filha, que decepção. Ela estava quase
dormindo. - Filha, acorda, mamãe não
terminou a história. Ela mal pode
dizer: - Mãe, essa moça sem mancada
é muito chata... e dormiu.
reflexos Gostosa. Despertava
adormecidos gigantes por onde passeassem suas curvas de artista de cinema
mudo, sua cabeleira de cachos, seu sorriso de te encontro logo mais. Passo
firme, ombros retos, peitos empinados e a certeza de quem chegou pra
ganhar. Tudo e todos. Uma loteria pra qualquer um que soubesse sussurrar
ao pé do ouvido o abre-te sésamo daquela caverna onde todos e qualquer um
era espeleólogo. Despreocupada pois que a vida nada mais era do que o
descompromisso de amores tantos e tão únicos. Tão efêmeros e tão
eternos. Triste. Despertava de sonhos
onde artistas de cinema, mudos gigantes, passeavam pelos cachos de sua
cabeleira com sorrisos de
nunca mais. Passo trôpego, ombros caídos, peitos sugados e a certeza de
quem nunca chegaria. Um prêmio de consolação pra quem chegasse em último
lugar naquela caverna onde todos e qualquer um era ninguém. Preocupada
pois que a vida nada mais era que o descompromisso de amor nenhum. Tão
efêmeros e tão eternos. E, entre elas, apenas o
espelho.
poderosa o espelho só reflete o que
quer é o dono da
imagem alguma deformação em meu
rosto faz parte de minha
engrenagem mastigo todo o
silêncio e engulo o que me
reflete a escultura que nunca
aparece sou a madrasta da Branca de Neve
a menina A menina sonhadora tem pavor dos espelhos. Ela teme que os espelhos mostrem o que ela esconde de todos e dela mesma. A menina sonhadora teme que os espelhos lhe revelem o que ela não quer ver. Ela tem muito medo dos espelhos lhe contarem o que ela não quer ouvir. A menina sonhadora tem pavor dos espelhos porque não é mais viva.
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