edição 21 | outubro de 2007
espelho

 

despenca do espelho novo um convite para amanhã.

na manga do mágico uma foto, uma torta de ricota.

bronze um chá, cor de tachos ciganos:

a sorte está na estante.

 

 

 

 

olho o rio meu espelho caiouá. o barco aqui e nada entre nós turva esse espírito limpo e aqüoso cujo espaço se desdobra aos meus olhos. sou o rio.

não sei dizer do tempo pois aqui tudo manifesta o grande círculo cósmico, a grande geografia do meu corpo que permanece durando e aguarda - mesmo se tenho pressa pois o barco é de papel e o grande espírito das águas vai devorando-o aos poucos. sem dor. numa delicada operação cirúrgica e desmaterial, num ritual de profana decomposição. os barcos de papel sempre solicitam viajantes munidos de leveza e transcendência.

percorro minha bagagem com os olhos, examino que leis da física irão decidir o tempo que ainda tenho. escuto o som das pequenas ondas suaves [satie...satie] invocadas pelos sete xamãs da terra e observo o vento que hoje sopra alto. leva as nuvens que se transformam em coelhos, árvores, monstros ou anjos. elas também têm pressa de criar mundos fantásticos que o espelho do rio deixa levar em sua superfície conforme o aspecto lunar ou solar, conforme a voz da correnteza e seu vaivém.

ontem vi passarem as rosas, muitas e em tons escuros, de um laranja intenso quando o sol se pôs.

passaram os ratos da água com seu chio estridente, duas horas e trinta e cinco minutos, ninhadas se multiplicando com suas nadadeiras improvisadas.

depois vieram os caixotes de papelão aos magotes. vazios, desmantelados, debatendo-se à esmo demoraram-se dando voltas em torno do barco. numa box-dance de pina bausch uns iam-se para depois voltarem perdidos, até desaparecerem como miniaturas no horizonte.

aguardei. surgiram boiando armamentos de alguma antiga guerra entre os homens. eram como objetos não reconhecíveis, o radar nada indicava além do ir-e-vir da água carregando-os inertes, pacíficos, sem mãos.

adormeci. não sei se por muito tempo mas um balido me despertou. era o rebanho alvo e veloz das ovelhas - flutuando pareciam guiadas por algum deus invisível e sagrado. emitiam sons quebradiços, impacientes, rápidos. depois vieram os babuínos nadadores, os relógios, uma solene coorte de fantasmas.

por fim a noite caiu. uma miríade de estrelas e pequenos astros desenhou algumas constelações brilhantes, bordando o teto celestial de minha casa marítima - miraram-se luminosas  na ondulação suave da água .

hoje o dia amanheceu branco. uma névoa densa cobriu toda a paisagem. pescadores recolheram vagarosamente as redes e os muitos peixes, algas.

içaram meu corpo do fundo da água. eram três escafandristas e ainda escutava-se o eco, as lembranças das bailarinas rodopiando, o sussurro do espírito de bakun, os tocadores de violino, o rumor dos engolidores de fogo, os gatos do mar, o frescor da passagem dos pequenos tornados, o silêncio do espelho cristalino.

 

 

 

bufa empata-fodas

(com infiltração metalingüística & ideológica)

marília kubota

 

A Feia inquieta sobremaneira. Mais que A Boba. A Boba tem um universo: Sheiquispir, Dostoievisqui, Clarice, Anita. Mas A Feia? Antítese de O Belo. Ambos em redemônio de irreflexão. Uma em rejeição total, o outro atraído pela superfície. O Belo s'incomoda com artifício. Não a beleza de A Boba. De estranheza, ímpeto novo, coragem em subido vôo. O Belo atrai A Feia em pathos melancólico, enfarruscado semblant.

 

No íntimo A Feia sonha ser A Bela. Algumas vezes é. Acordando do sono letal, vestida por mãos de fada. Pensa elementais <<<<< comentário crítico-despeitado - ECTOPLASMAS NO ESTÔMAGO! COME ANANÁS, BURGUÊS! - comentário crítico-despeitado >>>>>. Em devaneio mórbido dança com O Belo, principinho do Chateau Pavões-Apavorados-ante-Trotskistas-Dervixes.

 

Sob vestes de bon-goût uma outra se metamorfoseia. A voz áspera, desce pérola, bebericando o vinho avinagrado de Santa Felicidade <<<<< espaço do patrocinador - ONDE SE FABRICA O MAIS AUTÊNTICO ITALIANO, EM CURITIBA. VÁ E PROVE ANTES DE ACABARMOS LOCUPLETADOS POR ARGENTINOS E CHILENOS! - espaço do patrocinador >>>> Inibe complexos; esparrama a miragem. Busca o adormecido, contempla o Sol Finício.

 

"Alguém mais belo que eu?", a pergunta não quer calar. Camundongos na platéia bocejam Uoooouuuouooouo. O anti-espelho leva a question metafísica em espirais, em túnel de vento. <<<< caco ato falho de leitor entediado - TROÇO CHATO MEU. DÁ PRA ENTENDER NADA. A LUA CONTINUA - caco ato falho de leitor entediado. >>>>> A Feia, doravante camuflada n'A Bela, responde:  "Só tu é belo como eu".

 

O Belo encantado pela voz locutora de rodoviária se enrodilha. Perdem-se em passos de balalaica até a meia-noite soar sininhos. A Feia, fascinada, esqueceu: o feitiço tem hora marcada. Continua a bailar, o vestido em farrapo, após as badaladas. "Não é Dior", horroriza-se o principinho. O desaforo atira a Miss Encene para além do passa-prato, e a Feia rolando chega à fronteira de Trás-os-Totens.

 

A Feia choraminga. Amaldiçoa O Belo. Praga de bruxa cola. Ele vira sapo. Coaxando, diante do espelho, si pregunta: "Jesucristinho, tem neste mundaréu arguém mais caruru qui ieu?". A Feia, em revanche, se compadece. "Vambora". O sapo puxa a abóbora até tudo pretear em nuvem de gafanhotos chineses.

 

 

 

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