edição 19 | agosto de 2007
sexto sentido

 

desdobrando abstratos

nuvens são seus cabelos

chuva de sombras estrangeiras

consentir de dores

por pisar em infinitos 

 

 

salve, raposinhas
marília kubota

Você precisa derrubar paredes, diziam, soprando para cima dos olhos a franja espessa. Derrubar paredes. A casa sonhada de tantos anos. Dias internada ali. Sem móveis, um colchão num dos quartos. Uma lâmpada aqui, outra em outra na sala e na cozinha, malas abertas com roupas amassadas dentro, sapatos espalhados em todos os lugares. Asceticismo inútil. Penitenciando a vida inútil.

 

Entretanto a paisagem vibrante encharcava a janela. "Não existe espaço fora de mim", pensava, a vista estonteante. Copos-de-leite em profusão, o azul arrebentando o céu, o bosque de pinheiros refugiando os excluídos da ordem urbana. "Não existe espaço fora", sussurrava para a sombra em que pisava. A chama da vela subia e descia, como um morto buscando mais fôlego. "Não existe espaço", o íntimo aturdia. Mas a avidez exigia a paisagem limpa. O mundo primitivo, a selva preservada no bosque. Dentro da mata, raposinhas espreitavam para atacar ovos de galinhas e patos, desarranjando a ordem do lugar.

 

Um homem que aprendeu a desviar-se dos perigos da vida não sabe. A Morte é um Deus. Armadura, espada e palavra aguda. Um homem alerta não sabe morrer. Lembrou amigos perdidos que não mais voltariam. E amigas que relutavam em aceitar batalhas perdidas. "Não existe". As mais resistentes, coração de mãe. Em todas as guerras, as últimas a cair.

 

"Não". Derrubar paredes, comungar com a Natureza. Ser o Deus único, o Eu a sós, contra a bestialidade civilizada. Alimentar raposinhas, restaurar a ordem natural. Ser espessa, indiferenciada, viva. Derrubou as paredes e os olhares estavam ainda, sérios, sob as franjas cerradas.

 

 

 

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