edição 9 | agosto de 2006
sonhos

 

abismos
romina conti

1.

 

a tatuagem do sonho

na nuca da noite

pesadelos coloridos

 

 

2.

 

Sonho sempre acordada. Sempre com sono. Sonho o mesmo sonho. Estão me vigiando e por ser vigiada sonho sempre acordada que é como se sonha aqui: de olhos abertos. Talvez meu sonho seja a realidade e a realidade meu sonho. Já não sei mais onde me encontro e onde sou mais eu mesma. Eu mesma me perdi de mim num dia em que sonhei. Num dia desses ainda vou me amar. Me amarrar na cama. E só, assim, arfar. A vida é um pesadelo ao qual fui me acostumando. Quando vou dormir é tão bom que já não quero acordar. Sonho com Everaldo, Sebastiana, Adélia, José e Iêda. Todos estão mortos e eu sinto falta deles. Mentira. Não sinto falta deles. Sinto falta de redescobrir meu tempo em vida. Sinto falta da vida que eu tinha. Dos meus amores. Dos livros que li e quando leio agora não me vejo mais. Da turma da faculdade. Enfim meu sonho é sempre uma saudade. Viver no ontem é tão duro. Como se toda a vez que fosse construir algo, o algo se desfizesse. Se desfaz porque não vejo futuro em nada. Estou aqui numa lata de sardinhas. Enlutada. Enlatada. Pronta para o consumo do nada. Não vivo mais faz 17 anos. Desde os acontecimentos de 89. Todo aquele passado está presente como se eu pudesse mudar alguma coisa. Eu mudaria aquele dia em que te encontrei. Temos dois filhos lindos, dinheiro e tudo para ser feliz. Mas vivo desesperada, com medo de dizer pra você que não te amo e que nunca te amei e que a vida é dura e que não agüento mais. Um navio ancora em meu cais. Uso drogas que irão me matar, mas não adianta. Meu sonho com você está morto; sou só sua empregada. Uma gota de orvalho umedece a janela. Vem a chuva tão bela. Eu não gosto de Sol. Só fico feliz quando chove ou quando neva. Viver é uma forma de nevar sempre. Ficamos sempre mais frios. Criamos os bonecos de neve que somos no outro. O outro é só um olhar gelado. A cocaína é branca como a neve. E me deixa normal que é como quero estar. Sempre a quinhentos por hora. Toda a vez que acordo, um abismo cai. Toda a vez que durmo, esqueço de você e é como se fosse verão de novo e na praia e nas ondas e no mar. Eu tento pensar em outra coisa quando acordo. Mas meu sonho ficou no passado. Nas cartas de um amor proibido. Na crença em um Deus antigo. Na família que eu queria ter. Em tudo que eu podia ser. Meus dias estão contados desde 89, onde fica o meu sonho menos real. Sabe, queria construir uma máquina do tempo para voltar ao passado e reescrever minha vida. Mudar minha biografia. Me impedir de fazer algumas coisas erradas. E você vem com este papo de "quem vive de passado é museu". Pois bem, eu sou um museu. Um museu vazio, sem quadros, sem esculturas, sem instalações. Sou uma sessão de cinema em que só passa o mesmo filme sempre. Um desses da sessão da tarde. Estou morta em vida. Sempre que tropeço em você é assim: quero tropeçar mais para ver se acordo e te mudo ou me mudo. Sempre é uma palavra eterna. Estou caindo e sobrevivendo na queda. Vou batendo em coisas. Ursos de pelúcia. Flores. Cartas. Cartões de boas festas. Beijos. Carinhos sucumbidos. Carimbos de amor. Não tenho força para mudar. A imobilidade diante dos fogos de artifício, neste ano novo de 89. É sempre 89. Mil novecentos e oitenta e nove: o dia em que beijei a morte pela primeira vez: essa boca que sugou meu âmago pra sempre.

 

 

 

 

 

dito & feito
silvana guimarães

Segunda-feira: eu começo amanhã, na terça, porque dá azar na segunda. Paro de fumar, de comer, de saudade, não volto lá. Arrumo os armários, corto os cabelos, escrevo a letra daquela música, entrego o relatório da pesquisa. (Eu prometo.)

 

Terça: sem falta. As borboletas conversam, a gente é que não escuta. As escovas de dente azuis são mais usadas que as vermelhas. Um terço de todo o sorvete vendido no mundo é de baunilha. (Sorvete.)

 

Quarta: acendo um cigarro, preciso dizer ao médico que o remédio faz efeito contrário, foi a mesma coisa com o meu apetite. Só um alimento não se deteriora: o mel. (O mel!)

 

Quinta: aquele homem gordo, quase careca, ali na esquina, carregando a pasta, tá vendo? Há vinte anos foi o meu primeiro beijo. Meu corpo treme até hoje entre o dele e o muro. Naquele tempo ele não tinha barriga. (Eu juro, só um chocolate.)

 

Sexta: com deus me deito, com deus me levanto, pela graça divina do espírito santo. Repetir. (O prato não.)

 

Sábado: boca de forno! Forno! Farão tudo o que o mestre mandar? Faremos todos! E se não fizerem? Ganharemos bolo! (Oba: bolo.)

 

Domingo (à tarde): num mato sem cachorro.

 

 

  

a cética ascética
tereza yamashita

Sonhos? Como o brasileiro  sonha? Chamam-me de Maria, Amélia, Ana, João, Pedro. O ano 2.006? Revoluções, avanços tecnológicos, o pós-modernismo. A internet e a globalização. Aids, liberalismo sexual (hetero, homo, pansexualismo), drogas, álcool, bichinhos virtuais, a manipulação dos genes. Guerra, terrorismo. Um homem-bomba — buuuuuunda!

 

Divórcio versus casamento. Débito ou crédito na conta bancária? Melhor rever o investimento. Sexo? Depende! Cash, motel, cu, buceta bem depilada. Do cacete maior? Não, só da cor… do carro. Amor, das novelas — raça, posição social? A Mariazinha da periferia, sem almoço, comendo erres e esses, mas boazuda. Casa-se com o jovem rico, que a torna uma princesa… do lar. A princesa desdentada, intelectual, magra ou gorda. Sempre à procura de um sapo. Os sapos em minoria, à espreita, com a arma em riste. O sonho nunca acaba. A princesa que ama outra princesa que ama outro príncipe que ama outro vagabundo.

 

Violência. Bundade disfarçada em moedas debitáveis no IR. Padres show-bussines. A religião e seu capitalismo disfarçado em orações e músicas sacras. Seus cordeiros, cegos pela fé ou pela dor. Deus sem imagem? E o diabo? O diabo gosta! Músicas e danças nos rituais. Que diabos estou escrevendo?! O demo sou eu, somos nós! Pobres-diabos, multiplicai-vos. Cagam e riem o tempo todo. Jogam na mega-sena, compram títulos de capitalização e assistem aos domingos da alegria. Um dia a sorte chega, pena que um dia depois da sua morte. Filhos se matam pela herança. Filhos da puta, filhos da mãe. Não pedimos pra nascer. Os filhos da Terra do futuro — 500 anos de Brasil, somos independentes, abolicionistas. Que história! Que História! Histeria pura. Filhos sem-terra, sem-teto, a seca e a fome do nordeste, nossos jovens e a Febem, nossas crianças e seu tráfico. Governantes tão patriotas, e o seu dinheiro no exterior. Ex-presidentes — perdoai-nos meu povo, errar é humano. O perdão… a maior das virtudes!

 

Perdoai-me, serei menos cética no novo ano-novo. Prometo! Palavra de bandeirante. Feliz Ano Novo! O sonhos ainda existem. Mesmo que seja Páscoa.

 

 

 

3 poemas 
valéria tarelho

eu te contemplo (há tempos)

 

quando te penso
agradeço que
não passa disso

pensar
é o máximo
que posso

imaginar
é o parco verbo
que possuo

quando muito
fantasio que

[ah, se por acaso
tua boca
se por descaso
teu murmúrio
(em ondas
se por orgasmo]

mas logo apago
a idéia de

[ah, se por ocaso
tua lábia úmida
na seca
de meus lábios
se por relaxo
se por capricho
amor ou sexo]

num átimo
deleto
o que — em tese —
seria ótimo

sem o ato
evito
passo
em falso

veja baby
o lado
prático
:
você nunca
será passado

[mas ah
se por um lapso
uau
se por um ímpeto]

 

 

 

s.o.s. solidão

sonho
que
comporta
outros
corpos
pesa
pouco

tenso
o pesadelo
que
suporta
cama

:
sem
soma
de
t[r]emores

 

delírio

meus sonhos
matei a sangue frio
aprisionei-os
cortei asas
estrangulei seus anseios

— um a um, sacrifiquei —

e para ter certeza que morreram
atirei-lhes pesadelos


 

 

.

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>