edição 9 | agosto de 2006
sonhos

 

festa
dominique lotte

Aproximou-se do conjunto de jazz, piano, contrabaixo e sax, ele gostava de jazz, mas estranho,tocavam uma peça desconhecida, tudo era desconhecido para ele naquela noite, os convidados, os donos da casa, até a sua mulher, penetraram sem ser impedidos na festa ao ar livre, atraídos por vozes e alegres risadas, caminharam pela relva até a mesa do bufê, examinaram os pratos, pediram duas taças de vinho, não se serviram de comida, observaram os pares dançando por algum tempo, passaram pela piscina, pararam junto a uma pequena aglomeração, um cavaleiro e um cavalo fazendo evoluções, nada estranho, os ricos se divertiam com extravagâncias, examinaram o interior da mansão, voltaram ao terraço, ele ficara, ela se afastara, não a impediu, onde estaria ela agora? fazia mais de uma hora que ela sumira, preocupou-se, suas relações não iam bem, antes estiveram num bar, juntos na noite depois de meses, o show era bom, dançarinos em bailado exótico, ela nada interessada, ele entretido demais com as evoluções da voluptuosa negra, de propósito com esperança de sua mulher manifestar ciúme, ela continuara desinteressada, entediada... abandonou o jazz, andou pelo jardim, espantou-se com o imenso quadrilátero de rosas, o perfume o enjoou, ao longe a madrugada se anunciava, percebeu o vulto dela, parou, aguardou, ela se aproximava, esguia, andar de modelo, leve, ondulante...

 

— nunca se diverte? — perguntou ele.

— é assim que me divirto — respondeu ela, sem emoção.

Caminharam pela relva, uma mulher loura o agarrou pelo braço, desvencilhou-se, um homem solitário olhou-a, não tomou conhecimento.

— ainda tocam, ninguém está dançando — falou ela.

Ele permaneceu calado, não sabia o que dizer, por onde começar.

— ele morreu! — falou ela de novo.

— como soube?

— telefonei!

— quando?

– há pouco, estou triste, gostava muito dele.

— talvez mais do que devia.

— foi meu professor, me dava aula de literatura, dedicava-se mais a mim que a si mesmo, eu era adolescente e não ligava pra ele, adolescentes são muito cruéis, acho que me amava, não ousava se declarar, gentil, carinhoso... se me beijasse não ia refugá-lo, só de curiosidade, não o amava... te amei logo que te conheci, sua insegurança me atraía, parecia perdido, gostava de te ouvir falar, ver seu rosto se iluminar com seus planos, escritor ainda desconhecido, escritores... sonhadores... te amava mais que você a mim...

— sonhamos um futuro melhor.

— o futuro não existe, meu pai construiu o presente, prédios, industrias... não quis o casamento.

— me ofereceu emprego...

A conversa morreu, continuaram a caminhar, ela parou perto do banco de pedra, junto a um arbusto, virou-se, olhou-o.

— não te amo mais, tenho vontade de morrer, porque não te amo mais, não te amo mais, não te amo... não te amo... quando sinto vontade de morrer, sei que não te amo mais...

— eu te amo! — falou ele.

— não... nunca me amou...

— te amo, escuta...

Ela sentou-se no banco, ao seu lado, ele colocou a cabeça entre as mãos, ela abriu a bolsa e retirou um papel amarrotado, alisou-o, começou a ler:

 

Hoje de manhã acordei ao seu lado, era cedo, você ainda dormia, te olhei, vi sua bela cabeça apoiada sobre o braço, seus cabelos em desalinho cobrindo o rosto, linda, serena, senti seu perfume, passei a mão pela sua pele sedosa, adivinhei sua carne macia, você se moveu, os cabelos descobriram o rosto, sorriu sem abrir os olhos, fiquei quieto, sem nenhum movimento, sem mesmo piscar, queria que o tempo parasse e nós ficássemos eternamente assim, eu ao seu lado, você sorrindo, meu amor por você, imenso, beijei seu rosto, dormindo ainda, abraçou-me, te tomei nos braços, você abriu os olhos e falou:"o que foi querido?", e eu respondi: "te amo!", me beijou rindo, não esqueço  suas  palavras, "eu também te amo!". Sempre te amarei, morrerei se algum dia deixará de me amar.

 

— quem escreveu essa carta?

— você... — respondeu ela, sem o olhar.

 

Tentou abraçá-la, ela se afastou, ele insistiu, caíram sobre a relva, segurou-a, acariciou seu rosto — te amo, te amo... — não... não... — ela movia a cabeça de um lado para o outro, não queria seus beijos, ele repetia sem cessar — te amo, te amo... beijava seu rosto seu pescoço, seus cabelos, ela, repetindo — não... não... não... — te amo, te amo... colou seus lábios aos dela... — te amo... murmurou ela.

 

Ouviram, vindo de longe, Tenderly, o amor na relva foi intenso.

 

 

 

 

 

 

3 sonetos
eugênia fernandes

soneto XV

 

Viver parece se esgotar

na ânsia de cada segundo.

Parece apenas. É que ser e estar

se exaurem no mistério profundo

 

que é ser e estar neste mundo.

Viver é mais que respirar

já disse algum sábio rotundo,

porque o destino de tudo é passar.

 

Só não passa esse tal Incriado,

que invisível em tudo está,

que não gerou nem foi gerado.

 

Tão doce que chega a amargar,

tão absoluto em seu estado

toma a forma do que se formar.

 

 

 

 

soneto XVI

 

Para o corpo há que ter algum conforto

um banho, cama limpa, dinheiro,

afeto sincero e um possível porto

para que possa parecer inteiro.

 

O espírito, sim, o espírito absorto

que não fique aí como hospedeiro.

Mas o corpo sem o acima citado é morto. 

A vida, infelizmente, é um viveiro 

 

onde cada um cuida de suas penas.

Claro, deve haver a exceção da regra

para de todo não nos envenenar.  

 

O que verdadeiramente o soneto prega

é que o valor das coisas pequenas

nos ensinam muito mais a odiar.

 

 

 

 

soneto XIX

 

A palavra vento nunca vai ventar

e só suspende saias na imaginação,

que é a melhor forma de inventariar.

Somente ela pode o vário e a concisão.

 

Numa única imagem a se materializar

todas as imagens do mundo com precisão.

Todas, eu disse, e sem se embaralhar,

superpostas e distintas em comunhão.

 

É o Aleph de Borges chupado em Lobato?

Talvez. Não é nova nas crianças tal idéia,

que os imaginativos logo dão trato.

 

Realizá-la é que é a velha dispnéia,

porque impossível para o nosso gasto.

O fracasso é o sentido de outra estréia.

 

 

 

 

 

soneto mucungo
florbela de itamambuca

pernilongo zunindo trás da orelha
e o remédio me deixa assim zureta
sonho homem mar dor pássaro em caixeta
ovelha trás dovelha trás dovelha

três filhos e já tô ficando velha
canto de ninar xifre de capeta
hoje em dia as coisa anda tão preta
que até pra sonhar tem que olhar disguelha

então não sonho muito vô seguindo
pra morrer nem precisa de promessa
criar meus curumim tá tudo lindo

se pensar demais o aço me atravessa
no caneco mucungo e tamarindo
que o mar mais bravo é dentro da cabeça

 

 

 

 

3 poemas
jane sprenger bodnar
 

travesseiro

 

a cabeça sobre um dicionário de sonhos

 

                                                 p/ hatsue

 

 

 

 

anunciação

 

guirlanda de sete anjos dez da noite sinaleiro

de cada um o nome e um beijo uma bala de cereja

 

 

 

 

livro de histórias

 

teu corpo delineia-se em um pescador chinês,

que ia ao fundo do mar em busca de pérolas.

mas você apenas frita pastéis.

 

 

                      p/ marília, o dragão e as borboletas

 

 

.

 

 

 

 

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