edição 6
| maio de 2006
a única liberdade que me resta (Carta
encontrada no pátio da Universidade de Regensburg em outubro de
2005) Caríssimo
X. Sabendo
que sua artrite não combina com os ares gelados da Baviera, sugiro ao
prezado amigo que venha aproveitar o próximo inverno em Roma, para onde,
como bem sabe, a profissão de fé encaminhou de modo definitivo este
humilde trabalhador da vinha do Senhor. A bela e generosa Roma a tudo se
presta. É uma cidade onde todos os prazeres são encontráveis, desde,
claro, que se possa procurá-los, direito a mim
negado por força das circunstâncias. Tamanha punição, mesmo contraposta às
benesses do meu cargo, ainda assim as sobrepuja, atormentando meu espírito
dia e noite com os desejos naturais da carne, desejos que comungamos em
discreta cumplicidade desde os idos de nossa juventude. Se
aceitar minha sugestão e vir a Roma, jamais passe pela minha
praça nas noites de sábado ou verá meu palácio mergulhado na
escuridão, com exceção da luz solitária de uma janela do último andar, a
segunda a contar da direita. A tentação de arranjar um par de asas e
voar até à altura da cortina será grande. Evite-a, pois um sopro de brisa
poderá afastar a cortina e o amigo terá o dissabor de vislumbrar meus
dedos ocupados com a tarefa de apagar-me a fornalha do baixo ventre,
puxando a corda do sino para baixo, para cima, para baixo, para cima,
blémblém, blémblém, até a obtenção do clímax, do jorro leitoso e da
subsequente sensação de sixtina paz. A visão poderia
ser estimulante quando éramos jovens. Hoje seria constrangedora para
ambos, em especial durante minha imitação de Pilatos, quando lavo as mãos
e a água da pia entrega meus restos de pecado às velhas cloacas romanas.
Embora
use normalmente a mão direita, às vezes quebro a rotina apelando para os
préstimos da esquerda. Detalhes. Direita, esquerda, tanto faz. Bom mesmo
seria ingressar de carne e osso no reino de Saphos, a cores e ao vivo,
sentindo no tato, reais, os contornos febris das fêmeas que me habitam os
sonhos. Na minha posição é impossível. Em outros séculos talvez, não
agora, com um paparazzi em cada esquina, a mídia atenta ao menor deslize.
O jeito é improvisar, voltar às espinhas da adolescência, mas hoc opus
hic labor est, é aqui que a porca torce o rabo. Faz muito, muito tempo
que meus olhos viram uma mulher nua pela última vez. Foi durante a guerra,
em Munique, quando servia na defesa antiaérea da fábrica da BMW e uma
refugiada húngara despiu-se para o pelotão em troca de um punhado de
batatas. Refresco
a memória através de duas fotografias que me acompanham desde os anos 80,
dessas publicadas em revistas masculinas. A garota ruiva, dobrei-lhe tanto
as quinas que acabei por extirpar metade de um seio à coitada. O
papel da morena é mais resistente, suporta melhor o dobra-dobra, mas
a foto é muito antiga. Se a modelo ainda estiver viva, terá décadas de
rugas, quilos de pelancas. Há ocasiões em que isso me ocorre quando os
sinos estão quase batendo. É frustrante. O badalo murcha, tenho que
recomeçar do princípio e, convenhamos, não sou mais o rapagão vigoroso que
marchava horas a fio pelas estradinhas de Traustein. Havia uma terceira
fotografia, uma terceira musa, a melhor delas, uma gordinha com ares de
camponesa sueca, cujo olhar brejeiro me elevava ao paraíso. Perdi-a por
conta do zelo de Monsenhor Tardelli, o mordomo. Certa tarde, vermelho como
um comunista, ele veio relatar-me, indignado, ter encontrado entre minhas
ceroulas, "o retrato ignominioso de uma rubicunda filha do demônio!".
Felizmente
a culpa acabou dissolvida entre os relapsos guardas suíços, mas o problema
persiste: como arranjar fotografias novas? Fosse eu um sibarita anônimo,
qualquer jornaleiro me venderia o último número da Playboy sem nenhum
questionamento. Sendo quem sou, mataria o homem de herege enfarte. Já
pensei em recorrer aos préstimos de alguém da casa, um desses noviços
holandeses mais liberados, todavia receio criar um Strossmayer
contemporâneo que venha abjurar-me no próximo concílio. Encomendar pelo
correio? Daria certo em qualquer lugar do mundo, menos aqui. Ao verem o
endereço da entrega, os carteiros ou até os próprios editores promoveriam
um escândalo de repercussão planetária e, mesmo que tal não ocorresse, o
material seria interceptado e incinerado pelos frades da secretaria. Eles
abrem tudo, examinam minha correspondência pessoal, não perdoam nem os
emails. É, meu amigo, sequer direito à vida virtual eu tenho e não há nada
que possa fazer além de resmungar e apreciar os nus dos afrescos, mas
cubro de indulgências quem conseguir excitar-se com a obra roliça dos
pincéis de Rubens ou manter uma ereção diante das evas de Michelângelo.
Resta-me apenas rezar por um milagre, buscando pelas frestas, qual Davi
espionando Betsabá, a visão das ancas de irmã Beatriz, a camareira. Aquela
realmente tem sobre mim o dom da levitação, porém
seus olhos verônicos só enxergam Jesus, sem saber que até Ele teve sua
Madalena (é verdade, vi lá embaixo, nos apócrifos da biblioteca). Enfim,
como dizia Da Vinci, quem não pode o que quer, blémblém, queira o que
pode. Deo juvante. Um
abraço afetuoso Joseph
garçon manqué Não é bem que sempre tenha agido como um menino. Não diria isso assim. Embora talvez devesse (já que nunca agi como mulher). Não sei se me explico. Sou filha de machista, irmã de machistas, namorada, mulher e amante de machista (muito macho, aliás, meu homem). Sou mãe de machista (um jovem adorável, diga-se de passagem). Mas nada disso jamais me inibiu. Adolescente, já discutia política com os homens, inclusive com os delegados barra pesada e de direita amigos do papai, e discordava deles todos. Durante as reuniões em casa, em volta da churrasqueira, fazia aposta com eles para ver quem comia mais pimenta malagueta. Nos fins de semana andava a cavalo a galope e descia ladeiras íngremes montada em bicicleta sem freio. Mamãe dizia que era como um guri. Mais tarde, o horror representado por certo comportamento machista me sensibilizou. Logo insurgi-me contra ele e declarei-me a favor de um abrandamento dos usos e costumes da espécie masculina. Mas isso nunca me impediu de fazer nada na minha vida. Existe em mim uma irreprimível liberdade interior que não me sabe a quê. Ganha a duras penas (talvez, à força de lutar contra o machista do pai autoritário), etc. Filha de pai autoritário. Mas ele não pôde me domar. Ninguém me doma não. Mulher autoritária. E assumo as consequências. Gosto de homens. E sou doce como um mel poivré.
Flávia Nascimento
Falleiros
é professora universitária e tradutora literária, autora de vários artigos
publicados em revistas universitárias (sobre as literaturas francesa,
portuguesa e brasileira). Publicou alguns poemas na revista Inimigo Rumor
n° 17, é autora de uma plaquete de poemas inédita: Brasa móbil de vôo
ágil, e de textos curtos em prosa, também inéditos. Paulista (mas
também um pouco mineira), vive atualmente, desarraigada, na França.
Escreve para trocar de pele, o que no fundo é uma forma bastante peculiar
de desespero ligada, provavelmente, à constatação do caráter efêmero da
existência.
julia santini Púrpura
um sólido movimento no
fluxo aquoso do
tecido homens sem o peso da
deselegância encontram na
púrpura uma vida além do trabalho.
Vesper
Express
Quando eu sair pela porta do
vagão, portando flores novas em
botão, o vento dirá que não andei
nua: minha crina se inflamará na
rua, e meus olhos serenos de
certeza, e meu corpo brilhando à luz
do outono, se despedem agora de mim
mesma, à janela, e outra, como num sonho.
Pequena
Ode
Poderia te beijar, mas estou
triste; e você não compreende que
esteja triste porque diz que sou
bela, e
jovem. Mas o azul dos meu olhos
conspira, frio, apaga o fogo dos meus
cabelos num rio de lágrimas sem
motivo, e eu sofro. All Tomorrow's PartiesAnd what costume shall the poor girl wear To all tomorrow's parties.
Por que tão
poucas festas? E por que beber
tão pouco? Ah, sim, o vinho é
péssimo, e as pessoas, um
desgosto. A partir de
Meleagro
Cicala travada de
orvalho delira sua música
úmida:
vermelha canção escondida no
forro
de folhas altíssimas; esqueleto de
magras
pernículas reticuladas afina o
serrote, faíscam semínimas!
Julia Santini. Nascida em 1984, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Estuda grego na USP. Livro de cabeceira: Eros, Tecelão de Mitos. Poeta predileto: Hölderlin. Ainda inédita em livro.
9000-1128
- Não
tem nada a ver, Padu. - Como
não tem nada a ver? Você acha que pode dizer uma coisa dessas e ficar por
isso mesmo? Eu lá tenho cara de babaca? - Coisa
dessas o quê? Eu não tou te entendendo, sabia? O que eu disse
demais? - Deixa
eu pensar... Hmmm... Algo como começar a trepar com outros homens para
manter o bem-estar do nosso relacionamento! - Ah,
isso. Precisava ficar desse jeito? E nem é trepar,
trepar... - Era
pra ficar como, Maju? Era pra ficar como, pode me
dizer? - Eu,
hein... Sei lá, normal. Eu te amo, Paduzinho... - Ama é
o ca.... - Amo,
sim! E é por isso que preciso de um personal lover. Porque se não vou
acabar te largando. - Eu não
acredito que você tenha a desfaçatez de me dizer um negócio
desses. - Padu,
olha, você é ótimo, você é realmente um grande cara, o problema é o sexo,
gatinho... - Como,
o sexo? Eu te como ao menos 5 vezes por semana, Maju! E você goza todas as
vezes, ou quase! E você diz que eu tenho o melhor pau do
mundo! - É
verdade, é verdade... Nunca vi pau igual ao seu, Paduzinho. Sou realmente
louquinha no seu pau. - Porra,
então por quê? - Eu já
expliquei mil vezes! Preciso de um chupador de peitos que também saiba ser
um sussurrador de putarias e um afagador de cabelos! Você é fraco nas três
coisas, meu amor... - Fraco?
Fraco? Como assim, fraco? Oito anos depois você vem me dizer que eu sou
fraco? E com essa cara limpa? - Você
tá tão nervoso, Padu, acordou de mau-humor? - Porra,
Maju, não abusa... - Mas
meu querido... Não é que eu não goze, eu gozo. Não é que trepar com você
não seja gostoso, é. Mas sexo não é só gozar, sabia? Eu gosto, você sabe,
gosto de pegada forte, sou uma devassa. Mas é que precisava variar um
pouco, amor. E isso não é o seu forte. A-DO-RO que chupem meus peitos, por
exemplo. Você por acaso chupa? - Eu
chupo, sim, se você pede! - Ah!
Isso... Se eu peço, você até tenta mas, meu amor, desculpe a franqueza,
mas você não é um bom chupador de peitos, nunca foi. E depois, já estamos
casados há 8 anos, não acredito mais que você vai aprender, você trepa do
mesmo jeitinho desde a tenra primeira vez! - Eu vou
te matar, Maju! - Você
me ama, bebezinho... - Amo é
o... - Ama,
sim! Por isso vai entender que eu preciso também de um sussurrador de
putarias. - Isso
está ficando surreal... -
Surreal é trepar com um mudo! Você não fala, Padu! Eu te peço e peço e
peço, o máximo que consegui tirar de você foi um grunf
atravessado! - Grunf
atravessado? É como você me sonoriza, Maju? Você me sonoriza? Meu deus,
isso tá ficando humilhante... - Meu
bem, mas eu adoro o grunf que você faz, é tão fofo! E foi uma baita
evolução, você era tão mudinho nos primeiros dois anos e
meio... - E
mesmo assim você era uma sinfonia que me envergonhava com os
vizinhos... - Ah, eu
gritava mesmo. Gosto de berrar, amorzinho. Parei por sua causa,
sabia? - Por
minha causa? - Sim,
por-su-a-cau-sa! Ou você acha que tapar a minha boca na hora que eu estava
gozando não me empatava? Não era legal, sabia? - E você
diz isso agora? - É que
eu não queria te magoar, meu amor... - Ah,
muito obrigado pela consideração. - Pois
é, viu? - Vi o
quê, Maju? - Como
eu tenho consideração com você. Porque te amo, Padu. Mas não dá pra viver
mais sem a figura do afagador de cabelos. - Que
porra é essa de afagador de cabelos, Maria Júlia? Que porra é essa? Ah,
porra, eu já nem sei se quero saber do que se trata. - É pra
depois do sexo, amorzinho, enquanto você fica com o cosmo. Sinto falta de
alguém afagando os meus cabelos e me fazendo sentir especial.
- Maria
Júlia, você enlouqueceu! - Não
engrossa, não! Não vem chamando de Maria Júlia. - É o
seu nome... - É, mas
você nunca me chama assim. - Tá,
tá... - Padu,
sinceramente, não estou te entendendo. - Não tá
me entendendo? Tu não tá me entendendo? Porra, Maria Júlia, quem não tá
entendendo nada aqui sou eu! - Você
está dificultando de propósito, como sempre faz. Ah, você é tão difícil,
Padu, se eu não te amasse tanto... - Ama é
o c... - Amo,
sim! Por isso estou tentando salvar este casamento! - Belo
jeito. Trepando com outro cara... Você deve me achar um
otário. - Claro
que não! E não quero trepar com outro cara, não se faça de
desentendido! -
Desentendido? Desentendido??? Maria Júlia, eu tou é
puto! - Você
não devia ficar assim, Paulo Eduardo. - Agora
eu virei Paulo Eduardo... - Ué, eu
não virei Maria Júlia? Engrossou, eu devolvo. Na
lata! - Na
lata é onde eu vou te dar uma bifa, Maju, com essa história
ridícula. -
Ridícula, não. Moderna. Padu, pelamordedeus, você precisa ser menos
centralizador. Seu chefe mesmo vive lhe dizendo
isso. -
Centralizador? É como se chama o cara que quer comer a própria mulher com exclusividade?
E não misture isso com profissão, Maju, que não se
aplica. - Se
aplica, sim. Você não delega, Padu, tou cansada de saber. Vive estressado
por causa disso. Você não pode fazer tudo, meu amor. Ninguém é bom em tudo
ao mesmo tempo. - Como
assim, Maria Júlia? O que isso tem a ver com o chupador de peitos,
sussurrador de putarias e afagador de cabelos, essa porra de personal
lover que você está inventando? - Ele
vai ser seu assistente, meu bem, seu assistente... Trepar, mesmo, é com
você. - Ah,
assistente! Puxa, por que você não falou antes, agora acho tão razoável a
sua idéia... - Eu não
te disse, Paduzinho? É simples. Ele faz a parte dele, você faz a
sua. -
Simples o cacete, Maria Júlia! Não vê que estou sendo
irônico? - Ah,
Padu, nesses oito anos eu nunca sei quando você tá falando sério. Você
precisa melhorar isso também, sabia? - Isso
também?! - É,
Padu. Aliás, você precisa melhorar muitas coisas. Suas roupas, por
exemplo, fala sério, ninguém se veste desse jeito. -
Maju! - Tá,
tá, não falo mais nisso. Mas você topa o personal? -
Não. -
Mas... Padu, vai ser bom pra
gente! -
Não. - Mas
vai te livrar da pressão, pensa só, você só tem que ficar comigo na parte
de me comer mesmo. O cara vem, me chupa, você me come, ele sussurra, você
goza e dorme, ele volta. Entendeu a mecânica? Antes e depois quem cuida é
o personal. Te dá mais tempo de dormir, amorzinho, e você gosta
tanto. - Você
não pode estar falando sério... - Estou,
sim! É isso ou acabamos esse casamento. - Você
não pode estar falando sério... - Estou.
Agora é com você, Padu. Não vou mais abrir mão da minha completude
enquanto mulher, estamos no século 21, o mundo é grande e cheio de
possibilidades, não posso ficar estagnada em função de um homem, isso é
tão antigo! - Está
bem, você venceu. - Eba!
Ah, Paduzinho, eu sabia que você ia concordar... - Sim,
mas com uma condição. - É?
Qual? - Me
arrume também uma personal sucker - e bem gostosa. - O
quê? - Acho
que tenho direito a uma boqueteira de qualidade, Maju, já que você vai ter
o seu personal... -
Boqueteira de qualidade? Acaso o meu boquete não é o máximo? Você sempre disse
que... - Você
morde, Maju... -
Mas... - Cala a boca e liga.
Nálu Nogueira. Brasilioca, escorpiana, idade variando entre os desejáveis 28 anos e os inadmissíveis 43, é PHD em produção de filhos bonitos e terceiro dan em culinária, que pratica pouco por falta de tempo. Começou a colecionar maridos aos 19, mas parou no segundo, porque era preciso malas muito grandes para guardá-los, a coleção não chegava a compensar. Adora carros importados e antigüidades - uniu as duas paixões comprando um Fiat Tipo 95, no qual desfila, quase deslizando. Escreve, pensa doentiamente, sofre de angústia crônica e otimismo incurável, alternadamente. Não bastasse, canta. E se acha linda.
3 poemas Esfinge Decifra meu
enigma e toda a
verdade, toda a
essência Por trás do
verso. Segue pela trilha do meu
corpo e revela a paisagem
escondida. Repousa sem tédio no meu
abraço. Implora pelo princípio e
fim de cada
ato. Descobre o segredo que
habita onde me
esquivo, onde a pergunta é só
disfarce, reverso.
Se me
escondo, é para devorar
melhor. Pandora Nunca me disseram
que Eva comeu a
maçã proibida. Nunca me disseram que
era proibido abrir a
caixa. Como
escrito no plano dos
deuses, abri para o
mundo o Mal como
equilíbrio. A escolha
entre o Bem e o
Mal é do
Homem. Autofagia
Engulo
palavras mundo
afora. Da língua ao
ventre, diluem-se
pedaços de
dúvidas. Perco-me aos
poucos na saliva das
quimeras digeridas. Leio em voz
alta um poema do
avesso; trago eloqüentes
cantos da minha
coleção de idéias
possíveis. Cuspo os
sonhos sem
nexo em pilhas
públicas. Mas escondo os versos
finais para
nomear meus caminhos.
3 poemas
* o mundo lá
fora e eu presa dentro do
espelho o sol lá
fora enquanto chove aqui
dentro o mundo lá
fora eu guardada nessas
palavras a vida lá
fora e eu contando fios de
cabelo o mundo lá
fora eu enrolando brigadeiro de
lama os cães lá
fora eu lambendo ração com
leite o mundo lá
fora eu atravessando noites e
dias os trilhos lá
fora eu parada na estação de
trem o mundo lá
fora eu folheando um Atlas
empoeirado a vida lá
fora e eu esperando ela
voltar pra me
levar pra
passear * tudo vermelho
hoje a noite
vermelha minha conta no
vermelho minha calcinha
vermelha hoje não verei as
estrelas atrás das
sirenes dos semáforos
vermelhos das luzes de
freio nem irei a lugar
algum - tenho contas a pagar
- tampouco farei um
filho tudo vermelho
hoje até mesmo o
céu o sangue e as
maçãs * então a mulherzinha
acordou rasgou seus poemas de
amor saiu sem sutiã, xingou o
porteiro punheteiro que lhe olhava
com olhos de ontem te comi no banheiro
então a mulherzinha disse
não e mais uma vez não e cuspiu na cara
do patrão perdeu a compostura
resolveu ler e dar a cara pra bater
e bateu em muitas caras
então a mulherzinha jantou seu
arroz com feijão lavou a cara
regou seu cacto e dormiu mulher
Tatiana Fraga é poeta e
jornalista.
|