edição 6 | maio de 2006
liberdade

 

ave santa maria bueno!
jussara salazar

Ao Mestre

 

Ali eu não fico. Nunca. Nem morta.

 

Se for pra fincar as aspas no inferno, que seja bem longe dali.

 

Peço, portanto, perdão às couves de Fräulein G., que ali vivem. Lindas, um verdadeiro verde mimo! Plantadas, geometricamente alinhadas no pequeno jardim que orna o jazigo cor de prata.

 

Pois ao invés dos gladíolos e dos lírios, dos cravos ou das palmas de Santa Rita, Fräulein G., em vida, apreciou, eu diria quase amou, as couve-flores: ensopadinhas, na salada, com alho, ah com alho!... Estão lá, por trás das caprichosas grades estilo rococó, chamando a atenção dos passantes do Municipal. Distintos senhores com suas esposas em roupa de domingo, crianças com balões pinks, casais, e as viúvas discretas e solenes. Uma festa.

 

Fizeram um último desejo da saudosa Fräulein G, adornando e nutrindo a terra escura de sua última morada com a apreciada espécie vegetal - Botrytis cauliflora. Sabe-se lá se os famélicos desviventes não se alimentam de sua própria terra?

 

Esquecendo as mazelas, os que transitam pelo local, impossibilitados de se aproximarem da pequena, exuberante e inatingível horta, perplexos e sem culpa alguma, detêm-se do lado de fora das grades, e olhando o excêntrico jardim segredam entre si:

 

- Humm... que bela salada não dariam, heinn?!

 

Mas voltando, ali eu não fico.

 

Ainda se fosse pela companhia da Santa Maria Bueno, valeria o sacrifício. Escutar as romarias diárias, os votos, ex-votos, as centenas de velas flamejantes e ela, ela! Nossa Evita, não na Recoleta, mas ali salvando e olhando pelos descamisados, do alto impávido da cúpula da capelinha azul clara. Traje de noiva bordado, vestido sobre um impassível manequim de vitrine, guarda a cidade por cima do amarelo-monótono dos muros do campo santo.

 

Na capelinha, flores de plástico, regalitos, pedidos dobrados em papéis, segredos, e bem ao centro, no altar úmido e sombrio, ela, misericordiosa olha através do retrato desbotado.

 

A anã de avental, solene cuida de tudo, administra as visitações:

 

- Afasta, afasta! Esse ar está irrespirável, eu vou fechar a grade e aí ninguém entra mais! Olha a fila, eu vou fechar a grade! Escuta aqui, por que vocês não vão acender velas lá na Cruz das Almas? A anã sentinela, ameaça, cada vez que a pequena multidão comprime-se.

 

O povo se aperta e incensa o ar com a parafina das velas devotas, uma fumaça escura invade os corredores apertados.

 

Milagre, milagre! Alguém grita e a multidão se agita novamente, alguma beata puxa um terço. Ela, no alto da pequena cúpula em sua celeste expressão de manequim, aura e ilumina o céu cinzento das Mercês.

 

Já nem lembra mais daquela madrugada de 29 de janeiro em 1893. A cabeça degolada, separada do corpo, as muitas navalhadas encarnadas na pele pela sombra do ciúme do soldado da barbearia do oitavo regimento. E tudo isso, só porque desobedeceu e foi naquela noite ao bordel para encontrar as meninas. E tem quem atire pedra! Santa Maria Bueno! Eles nem sabem o que dizem.

 

Por ela, sim, eu até ficava, vendo a movimentação, aquele ofício diário, pensa que ser santo é fácil?

 

Mas quando lembro dos jambos, das carambolas e das mangas lá de Santo Amaro, quando lembro de Alfredinho ou da "Menina sem nome", do aroma do jasmim quando sopra a viração, eu desisto. Vou pra lá.

 

Outro dia aquele fantasma do Raskólnikov me matou.

 

Machadinha embaixo do sobretudo, tudo igualzinho à literatura e pasmem, bem numa esquina iluminada do centro, todo mundo passando e nem aí:

 

- Finge que não vê, finge que não vê, disfarça.

(Idiossincrasia à parte, são coisas dessa cidade, e o escritor bem que avisou).

 

Assim, pra não morrer de novo, é que eu não fico. Vou pra lá.

 

Com o ar e o perfume da alma de alfazema de Maria Bueno.

 

Com seus cetins que me ofuscam, me encantam, e que eu levarei comigo, e lavarei nas águas doces de um rio cabralino, deslizando sobre o céu espelhado do sol. Sua rubra graça eu invocarei, rainha que é, a noiva da cidade.

 

Vou. E, finalmente livre, num último aceno, pedirei perdão à Fräulein G. e suas couve-flores.

 

 

 

Notas da autora:

 

. Maria Bueno nasceu no ano de 1864 em Curitiba. Foi brutalmente assassinada em 1893, aos 29 anos, pelo amante, o primeiro soldado e barbeiro do 8º Regimento de Cavalaria, Inácio José Diniz. Existem duas versões para o crime: a primeira, de que Diniz havia proibido que ela fosse ao bordel naquela noite. Ela foi e Diniz matou-a pela desobediência. Na segunda, Maria Bueno, que era lavadeira, ao entregar a roupa lavada, foi morta ao resistir à tentativa de Diniz estuprá-la. Maria Bueno teve uma vida sofrida e hoje está enterrada numa capela azul, no Cemitério Público de Curitiba. É venerada por muitos fiéis que, em romaria diária, acreditam que ela seja uma santa e que faça milagres;

 

. o jazigo com as couve-flores também existe, no mesmo cemitério.

 

 

 

o dragão entre as nuvens
marília kubota

You are the light in death itself, oh yes you are

You are the One

You are my love

You send the rain and bring the sun

You stand alone and speak the truth

You are the breath of life itself, oh yes you are

 

George Harrison, Life itself

 

 

Tudo era instável, nervoso. Os fios cristalizados da teia de aranha balançavam ao toque súbito da asa da mariposa. Grandes olhos interrogativos nas asas trêmulas. Mira olhava a caixa de papelão forrada com papel de presente. A caixa, agora vazia, dada por Ch'an, o filho cego do pasteleiro.

 

- DV. Deficiente Visual - corrigia Joana, a melhor amiga de Mira, usando a nomenclatura correta para o amigo escorreito.

 

Joana ditava com precisão o moralmente correto e não enquanto Mira escorregava na teia.

 

- Caída por Ch'an?, cutucava.

 

Era difícil dizer. A amizade com o chinesinho cego não era comum. Nada sabia do pavor que Ch'an e a família tinham da polícia descobri-los clandestinos. Viviam esgueirados de tudo e de todos, a pastelaria instalada num porão engordurado e abafado, freqüentada pelo submundo do centro da cidade.

 

- Como é que se conheceram?, perguntava Joana, malíciosa.

 

Imaginava um romance destes água-com-açúcar vendidos em banca de revista. Não sabia que  entre eles a paixão era cumplicidade e medo. Medo e cumplicidade. O medo que Ch'an e a família tinham de ser descobertos pelas autoridades Mira também sentia. Em toda a vida havia experimentado o sentimento de instabilidade, não confiava em nada.

 

- Um dia ele ligou pra casa. Meu pai estava brigando na pastelaria. Não queriam que a polícia fosse lá, a mãe dele pediu o telefone de casa.

 

- Ch'an que falou?

 

- Os pais não sabiam falar português.

 

- Sei como é obrigado em chinês, você sabe?

 

- Che che.

 

- Ele ensinou?

 

- Olá é Ni hal.

 

A vida é luxuosa e quebrada, pensava Mira, enquanto se concentrava em conversar com a amiga. Usava o expediente com freqüência - falava tergiversando, pensando nas  borboletas secas que guardou muito tempo na caixa, enquanto Joana espetava os chineses.

 

- A pastelaria dos pais dele é suja. Deviam levar ele numa escola especial. Hoje em dia os deficientes estudam, trabalham. Estes japas são toscos. Por que você não diz pra ele ir numa escola?

 

- Não são japoneses, são chineses.

 

- Tudo igual. Qual a diferença? Joana ficava irada por ser contrariada.

 

 

Não valia a pena discutir com Joana, era da superfície. Não como Ch'an. Ele caçava asas no escuro. Dizem que os chineses comem de tudo - escorpiões, cobras, cachorro. Quem sabe borboletas e mariposas. Mas ele as trazia para ela, religiosamente todos os fins de tarde.

 

Mira calava enquanto Ch'an tagarelava.

 

 

- Imagina como vai ser quando a gente ficar seco como elas? Os monges chineses fazem borboletas de papel de seda recortado. Tem também pandorgas feitas de borboletas. Borboleta é símbolo de eternidade.

 

 

Ch'an quem levou o pai para a casa no dia do porre na pastelaria.

  

- O menino é cego! - assustou-se a mãe.

 

- O menino é cego mas é cem por cento - gemeu o pai, caindo nos braços dela.

 

- Como é que você trouxe ele, não usa bengala?

 

- O menino é excepcional  - repetiu o homem, desmaiando.

 

Mira viu os olhos brancos de Ch'an.

 

- Eu conheço de cor as ruas do centro da cidade, disse o menino. E voltando-se para Mira. Você tem voz de asa de borboleta.

 

Mira ficou desconcertada. Nunca tinha ouvido alguém falar assim a não ser em tom de piada. Mas ele falou sério. Tinha um ar compenetrado de menino adulto.

 

- Tenho uma coleção. Posso trazer pra você ver?

 

Ele trouxe a caixa e lhe deu de presente. Então todas as tardes vinha trazer mais borboletas e mariposas mortas.

 

 

- Japonês e chinês é tudo igual, tem olho puxado, é amarelo, dizia Joana. Fazia cócegas na amiga. Confessa, você gosta dele? 

 

Mira se desviava.

 

 

Ele passou de leve a mão na face dela para acordá-la.

  

- Agora vou mostrar porque dei as borboletas, ele disse, alisando a asa de uma panapaná.

 

Em transe ela olhou os olhos vazios, com medo. 

 

- Não precisa ficar com medo. A beleza da vida foge como uma borboleta de nossas mãos. Ele sacudiu a panapaná, ela estremeceu e voou. Tocou as borboletas e mariposas uma a uma na caixa e uma a uma e elas voaram.

 

Mira ficou abismada.

 

- Você é mágico?

 

- Magia não, ele disse, movendo a cabeça em direção às borboletas, como se as visse. Não magia. Acordaram de novo porque nós entramos no sonho delas. Nós é que morremos um pouco, ver elas a última vez.

 

Mira engoliu em seco. Se tinha medo de alguma coisa na vida era não existir.

 

- Não fica com medo. Voltamos logo.

 

O bando de borboletas fez evoluções. Depois de minutos de balé, dispersaram-se, dissolvendo a nuvem de asas.

 

- Ah! Disse Ch'an.

 

- Você não vê nada, comentou Mira, com cautela.

 

- Sim. Vejo nada. Vejo nada e o que você vê - a beleza da vida, ilusão.

 

Lágrimas nos olhos de Mira.

 

- Morremos de repente sem perceber? O que aconteceu?

 

- Não, não morremos. Dormimos pra você saber - a beleza da vida, ilusão. Agora volte.

 

 

- Eu sei que você gosta dele. Mas os chineses são sujos. Toma cuidado.

 

Mira pensava no bando de borboletas disperso no ar.

 

- Tua mãe chamando. Telefone.

  

Joana a viu levar ajeitar os cabelos para colocar o fone na orelha. Arregalar os olhos e gritar.

  

 

Por sobre o gramado,

as borboletas em bando,

Um caixão chegando

 

Masuda Goga

 

 

finais   
mariza lourenço

processo 364/...

Despediram-se ali mesmo, no meio da rua, com um aperto de mão. Ele, impassível em seu terno cinza-escuro. Ela, implorando a todos os santos que a ajudassem a suportar os próximos minutos sem ele.

Enquanto os olhos - dela - teimavam em buscar direção oposta, uma cartorária arquivava de qualquer jeito, entre as estantes da Primeira Vara, oito anos de risos, cicatrizes e ais.

 

 

o grão e a estrela 
roberta silva

O trinta e oito trazia em seu tambor todas as balas que podia. Caso apertasse o gatilho bem onde faltasse alguma, estaria morto. Vestindo a farda de gala de seu grupo de cangaço, Capitão-do-Mato seguiu para a sua última peleja.

 

Chegaria e não diria palavra, palavra. Olharia o suficiente para mirar seu peito, descarregar a arma, certificar sua morte, dar as costas e estaria livre.

 

O barraco todo tremeu quando esmurrou a porta. Sabia quem era e que seria a última vez pelo tom da batida. Abriu e encontrou-o com os dentes cerrados, para que não lhe escapasse a valentia. Ela mordeu os lábios, tentando conter o sorriso, pressentindo a gravidade do momento e a coragem dele fugiu.

 

Pegou suas mãos e o trouxe para dentro. Obrigou-o a olhá-la nos olhos. Não era maldade, nem feitiço, seus olhos verdes, cheios desse jeito de águas trêmulas, pareciam o mar que devia ser assim quando revolto. Sentiu-se fisgado. Por mais que cerrasse os dentes, as lágrimas não cessavam. Enquanto pôde, manteve-se de pé. Cair de joelhos era inevitável, era. Implorou para que o libertasse, que o deixasse ir, estava a ponto de cometer uma loucura.

 

Vendo-o daquela forma ela disse calmamente para que chorasse até o fim, que se deixasse cair. Ele não acreditou que pudesse amar tanto uma mulher tão sem coração. Mas não teve escolha, caiu vertiginosamente.

 

Ela pousou a mão em sua cabeça, que encolheu feito passarinho em seu ombro. Desceram juntos, ele chorando e ela cantando baixo uma canção adocicada que contava a história de um grão de areia que se apaixonara por uma estrela pensando que eram iguais.

 

Quando finalmente parou de cair não havia mais lágrimas, nem chão. Ela podia viver sem enlouquecê-lo e ele estava liberto.

 

 

 

 

 

queria ser rita
ro druhens

No meio da escada a Rita sentiu que alguma coisa melada lhe escorria entre as pernas. Há mais de dez anos não menstruava. E, mesmo assim. E, no entanto. Parou, encostada à parede. E alguma coisa, melada, lhe escorria entre as pernas. Sentiu que as pernas se abriam, alheias a todos os pudores. Lentamente, num movimento imperceptível como se abre uma flor.

 

No alto da escada o Francisco sentiu que alguma coisa dura lhe crescia entre as pernas. Há mais de dez anos não gozava. E, no entanto. E, mesmo assim. Parou, encostado à parede. E alguma coisa, dura, lhe crescia entre as pernas. Sentiu que os braços se abriam, alheios a todos os pudores. Bruscamente, num movimento ágil como se abrem as asas dos falcões.

 

Às pernas, meladas e abertas, foi fácil atravessar o espaço de todos os degraus.

 

Aos braços, rijos e abertos, foi difícil negar o espaço de todos os abraços.

 

E, no meio da escada, o encontro.

 

O bico do falcão sugou o pólen como se tivesse a sede de todas as abelhas. As asas do falcão cobriram a flor e a fizeram exalar perfumes de exóticas essências. E, desafiando o improvável, o falcão pousou naquela fragilidade como se fosse um beija-flor. E a flor o recebeu como se fosse um beijo do orvalho...

 

Foi assim, mas não foi bem assim.

 

Rita, a faxineira, já sentia tesão por Francisco, o porteiro, desde há muito tempo. Ela vinha da feira e o encontrou na escada de serviço. E foderam, como fodem os bichos e os apaixonados.

 

E disseram com seus corpos negros todos os versos brancos que a minha alma cinza jamais viveu.

 

 

 

 

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