edição 5
| abril de 2006
pele negra
alma rubra
aquilo roxo
![]() vermelho Em
um dia normal, eu não me importaria com alguém olhando fixo para os meus
peitos. Pelo contrário, acho que eu até gostaria. Mas, hoje, o olhar
daquele cliente me irritou. Minha vontade era atirar um copo cheio de
café, bem quente, na cara dele.
Controlei os meus instintos e me dei por satisfeita ao chamá-lo de
tarado filho da puta. Resultado: fui convocada para uma conversa com a
chefe. Sorte minha ela ser mulher. Se fosse meu antigo patrão já teria me
mandado embora, por justa causa. Insanidade Mental. "Ficou louca?", diria
isso aos berros. Só de lembrar, sinto um arrepio. Mas Suzana tem muita
classe. Mesmo chateada, ela não levanta o tom de voz.
-
Não dá mais para agüentar. Todo mês é a mesma coisa. É melhor você tirar a
tarde de folga e ir procurar um médico. -
Médico? -
Pensando bem, deixa comigo. Vou ligar para o meu
ginecologista. -
Ginecologista? Só
avisa a outra secretária que você não volta mais hoje. Pelo
vidro da minha sala, vi Suzana ao telefone. Parecia estar se divertindo.
Ela desligou e veio na minha direção trazendo um papel.
-
Ficou marcado para as três horas. Aqui está o
endereço.
O
consultório ficava perto. Já era de se imaginar, pois Suzana adora o
bairro e faz tudo por aqui: almoça em restaurantes caros, compra jóias e
abre as pernas para o Doutor Maurício. Ele estava terminando uma consulta
e já ia me atender. Escutei o meu nome: -
Fabiana Luz. A
recepcionista me indicou a sala no final do corredor. Ele estava na porta
me esperando. -
Fabi? Nossa! Como você está bonita. -
Bolota? Não acredito! Você também está diferente. -
Vamos entrar. A
casa do Bolota ficava a uma quadra da nossa. Ele era o amigo chato do meu
irmão. Eles não perdiam a chance de implicar comigo. Quando seus pais
venderam a casa, nunca mais soubemos dele. Quem
diria! -
Eu nem lembrava que o teu nome era Maurício. -
Eu, quando li na ficha, Fabiana Luz, logo pensei em você. -
Na verdade, não sei bem o que eu tô fazendo aqui. -
A Suzana me falou, por cima, sobre o teu problema. -
Pois é, eu ando um pouco nervosa. -
O que você está sentindo? Dor de cabeça? Cansaço? -
Mais ou menos. -
Impaciência ou raiva de alguma coisa? -
Do mundo. -
Como está a sua vida? -
Tudo bem. Adoro o meu emprego. As pessoas. Mas tem dias que acordo com
vontade de morder alguém. Sabe, não é uma raiva que vai crescendo ou que
tenha um motivo sério. É uma raiva matinal, espontânea e incontrolável.
-
Pobre marido! -
Eu sou solteira.
-
Então, ainda bem. E o que mais você sente de diferente?
-
Não posso ver crianças ou velhos, que já me dá vontade de
chorar. -
E quando isso começou?
-
De uns dois anos para cá. Acho que foi depois dos trinta.
-
Com que idade você teve a sua primeira menstruação? -
O que isso tem a ver? -
Tudo. Eu
sabia. Ele estava só
esperando uma oportunidade para implicar comigo. Para me fazer lembrar
daquele dia. Na minha família, era comum celebrarmos, com uma festa e com
presentes, a chegada da primeira menstruação. Era uma ótima desculpa para
um encontro só de mulheres. Comigo, embora eu tenha relutado bastante, não
foi diferente. Estavam ali minhas primas, tias, avós e as amigas da minha
mãe tomando chá e comendo salgadinhos. Os presentes variavam de bolsinha
para colocar os absorventes, calcinhas e pijamas até conselhos sobre como
se portar em sociedade e com os meninos. Eu não gostava desses assuntos.
Enquanto a maioria das minhas amigas já tinha beijado, eu era BV, boca
virgem. É aí que entra o Bolota na história. Meu irmão o convidou para
jogar videogame depois da aula. Abro a porta e dou de cara com os dois e
com a tia Elisa segurando um pacote de presente. O Bolota ficou logo
animado. -
Eba, festa. Que sorte! Foi
a minha tia que cortou a sua empolgação. -
É uma festa só para meninas. Olha, Fabi, eu trouxe uma lembrancinha.
Espero que você goste. O
Bolota olhou para o meu irmão.
-
Eu não sabia que ela tava de aniversário. Meu
irmão começou a rir. Eu não consegui dizer nada. -
Não é aniversário. Ela ficou mocinha. Nunca
vou esquecer da cara debochada do Bolota.
-
Parabéns.
Disse
isso e seguiu meu irmão até a sala de TV. Minha festa acabou. Do jeito que
o Bolota era fofoqueiro, em pouco tempo todo o colégio, a rua, a cidade,
estariam rindo de mim. Chamei-o em um canto e pedi
segredo. -
Não sei não. O que eu vou ganhar com isso? -
Quer um pedaço de bolo? -
Quero. Refrigerante e salgadinho também. -
Mais alguma coisa? -
Um beijo. -
O quê? -
Na boca. -
Nem pensar. -
Então, vou contar pra todo mundo. -
Tá bom. Sem
alternativa, dei um selinho na boca dele. -
Tem que ser de língua. A
cara que eu fiz deve ter me entregado. Ele percebeu que eu nunca tinha
beijado e aproveitou a
situação. Chegou mais perto e foi dando as ordens. -
Abre a boca, depois põe a língua. Não
gostei. Se isso era beijar, eu poderia viver sem. Agora estou ali, outra
vez, em suas mãos. Podem chamá-lo de Doutor Mauricio, mas para mim ele
sempre será o Bolota. Vou embora antes que ele me mande tirar a roupa.
-
Está tudo bem? Você ficou quieta de repente. Precisamos tratar essa TPM.
-
Não preciso tratar nada. Não quero médico nenhum. Ainda mais um charlatão.
Um cafajeste como você. -
Ficou louca? -
É isso mesmo. Posso perder o emprego. Você pode falar o que quiser. Mas
pelada eu não fico. Antes que ele pudesse argumentar, sai correndo dali. No elevador, senti o ódio escorrer entre as minhas pernas.
laurinha jorge Deu piti do
helicóptero, os casadinhos tinham que ser de tâmaras turcas. O esmalte
areia perdeu uma lasca enquanto gerenciava pelo celular.
A
cauda do vestido era o extenso tecido do pára-quedas. A mochila matelassê
gelo guardava a cauda dobrada. Ao sinal dos balões prateados, soltos pelos
empregados da fazenda, Laurinha Jorge Couto atirou-se do helicóptero.
Com
braços abertos, o vento borrando a maquiagem ainda fresca, Laura Jorge via
crescer seus convidados a cada segundo. Puxou a cordinha e nada. Prometeu
pulseiras douradas pra cigana da umbanda. Tentou de novo. Abriu.
Um
balão branco a puxou pelos ombros, as pernas soltas, sem raízes no chão.
Laurinha caiu, vestida de noiva, de unha lascada, no gramado. Foi
arrastando a cauda do vestido, o pára-quedas: pesado, foi descosturando as
pences das costas. As
daminhas vestiam roupa de seres de jardim. Uma era joaninha, outra
borboleta, as duas sobrinhas do jardineiro. Os convidados, estacados, bem
vestidos. Roupas alugadas por Laurinha. Os
convidados eram pessoas a trabalho, assim como o padre, onde puseram
peruca grisalha num jovem de porte Dior. Todos pagos pra atuarem. O noivo,
o noivo era o motorista, instruído para
que depois dos brindes com os figurantes, a levasse no colo até o quarto.
Laurinha
Jorge, casada, ia ter filhos pra morrer antes que ela. Pra ter dor digna
de grandes velórios, idosa e forte para os fotógrafos. O cozinheiro
sugeriu, ela acatou. Filhos de vela artesanal. Em formato de bebê, pavio
ereto no alto da moleira. Dando o tempo certo, acenderia o pavio e o
botaria em altar com outros filhos. Uma escadinha de onze, filhos de um a
treze anos. A
dor bonita, lenço bordado, o enxoval dos filhos intacto. Laurinha pensa na
velhice, nos pés que gosta de molhar em geléias de amora pra amaciar a
sola. Laurinha
é Jorge. Jorginho
Laura, travesti premiado na Loteca Figas, casa de jogos na comarca de São
José do Rio Pardo. Os empregados são parentes que ele trouxe.
O noivo é antigo taxista, antigo amor, tem vitiligo. Alegria de Jorginho é o marido deixar passar pó-de-arroz no vitiligo. O taxista deixa, passeia com tez uniforme, mãos dadas com a boneca.
lirismo de terça Ensino aos meninos os nomes das flores,
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