edição 4
| dezembro de 2006
caleidoscópio Acaso
eu tinha alternativa, moço? Tinha,
não, o senhor me desculpe e escreva aí: foi-por-fal-ta-de-al-ter-na-ti-va.
Isso, bote assim e risque embaixo, pra que todo mundo compreenda. Eu era
inocente, moço, acreditei naquele um, empenhei palavra, coração e
dinheiro, o senhor, por favor, me entenda. Não vê o que me
restou? Muito
pouco, muito pouco, que até a dignidade foi-se. Tenho vergonha quando me
olho, não posso voltar pra casa. O senhor não acredita porque sou
sofisticada, o senhor me acha educada, meio madame, inteligente, mas essas
coisas de amor tiram a inteligência da gente moço. O senhor nunca se viu
numa situação igual? Nunca padeceu desse mal de ter-se enganado, depois de
ter feito tudo errado, olhar para trás e ver que não tem volta? Que não se
apagam aquelas bobagens que a gente disse na cama, como não se apagam os
cheques que a gente deu em confiança? Moço, eu parecia criança perto
daquele um, eu nem era eu, ria feito maluca, de tão feliz que eu ficava! O
senhor pensa que eu achava que era tudo de mentira? Que era uma grande
arapuca o que ele me preparava? Se imaginasse isso, moço, eu me benzia,
dava um jeito de proteger minha vida. A alma estava perdida, que ao menos
me sobrasse o chão! Mas não, até isso me tirou. O que o senhor faria, me
diga?, se uma rapariga qualquer lhe enganasse desse
tanto? Depois
de esgotar o pranto e remoer humilhação? Moço,
do dinheiro eu nem faço conta, não. Perdoava. O que machuca e não se apaga
é ter entregado o coração com tanta sinceridade a um filhodaputa que fazia
mentira parecer verdade só para tirar proveito. Eu tenho um defeito, moço,
eu lhe confesso: acredito na humanidade. Sou grande e meio madame, mas não
me chama de meu amor que eu fico feito banana, abro a guarda, vou pra
cama, acredito em qualquer tolice, entrego alma e coração numa bandeja de
prata. O que foi que o senhor disse? O senhor ta enganado, não é disso que
se trata. Sou grande e pareço forte, mas preciso ser amada, se homem for
convincente, até fortaleza dança. Sou grande moço, mas sou criança. No
coração sou uma menina, não ponho maldade em nada. Ele era bom, carinhoso,
dengoso que nem um gato, não desgrudava de mim, me rodeava e prendia,
telefonava meloso ao menos seis vezes por dia... Ninguém diria, moço,
ninguém diria. Se não
tivesse ouvido eu mesma aquela conversa, também não acreditava. Doeu,
moço, eu lhe digo, tanto que fiquei maluca. Anote aí: fi-cou-lou-ca, foi
isso que aconteceu. Louca, moço, sabe o que é isso? Perder o viço e o
tino, tudo numa só porrada? Sobrou
nada, fiquei cega, joguei longe o telefone, e gritava, como eu gritava, e
sabe o que ele fazia? ria de mim, ele ria, moço!, enquanto eu me
desconstruía, enquanto eu me desesperava, enquanto se esvaía de mim
qualquer sanidade possível. Avancei, varei, mordi, arranquei pêlo,
chutei-lhe com força os ovos enquanto ele me puxava os cabelos, rindo
ainda, moço, e me chamando de otária. O senhor entende, moço, o senhor
sente o que eu sentia? A minha vida era ele, moço, e era de mim que ele
ria. Fazia tudo por ele morria por ele vivia. O
senhor já viu caleidoscópio, moço? Era desse jeito que eu via aquela cena,
aquela vida tudo colorido mudando de lugar girando, moço, virando outra
coisa, eu era feliz depois não era mais agora tudo azul tem amarelo no
meio e verde, moço, era tão bonito, mas agora não tinha sentido esse
mosaico que eu via ele ria ele girando mudando levando a minha alegria,
moço, vermelho vermelho vermelho ta tudo vermelho não muda não ria! tudo
vermelho vermelho vermelho alguém me acuda não era essa cor que eu queria!
O senhor já viu caleidoscópio, moço, que bonito? Me
leve, que admito: eu machuquei o bandido, foi sangue pra todo lado. E
terminava o serviço se alguém não tivesse chegado e me tirado de cima. Não
era pra ser minha sina, que fui moça bem criada, defendo os direitos
humanos. Eu mesma já fui humana, cheia de ideologia. Mas hoje acabou-se tudo, virei bicho, sou nociva. O que se cria na gente, quando acontece algo assim, não tem meio nem tem fim, é pra sempre, noite e dia. Não posso voltar para casa, não sei como voltar para mim. O que mais dói não é ele ter sido o cafajeste que foi, não é ter roubado, enganado, em tudo me destruído. O que me dói, moço, me faz para sempre perdida: é saber que eu perdoava se ele não tivesse rido.
Nálu Nogueira. Brasilioca, escorpiana, idade variando entre os desejáveis 28 anos e os inadmissíveis 43, é PHD em produção de filhos bonitos e terceiro dan em culinária, que pratica pouco por falta de tempo. Começou a colecionar maridos aos 19, mas parou no segundo, porque era preciso malas muito grandes para guardá-los, a coleção não chegava a compensar. Adora carros importados e antigüidades - uniu as duas paixões comprando um Fiat Tipo 95, no qual desfila, quase deslizando. Escreve, pensa doentiamente, sofre de angústia crônica e otimismo incurável, alternadamente. Não bastasse, canta. E se acha linda.
silvia chueire vi os teus olhos manchados
de vergonha, as pernas indecisas a marcharem na direção oposta a mim
enquanto o meu corpo caía secamente. só, inapelavelmente
só. a arma abandonada, a poça de
sangue, as tuas costas trôpegas. cumpriras a tua
promessa: nunca te deixarei, até a
morte. mesmo a traição tem que ter
uma ética, pensei.
Silvia Chueire, brasileira, carioca, a maior parte da vida morou no Rio de Janeiro, onde está até hoje. Psiquiatra, mãe de três filhos. Começou a escrever poemas tardiamente. Publicou Por favor, um blues, em Portugal, em 2005, pela Editora Cosmorama. Desde 2003, edita o blogue Eugenia In The Meadow.
sebos & traças
Eu
perdoaria tudo. Perdoaria se o tivesse encontrado nos braços da amiga.
Se as mãos estivessem grudadas na ninfeta. Se as costas acariciadas
fossem as da vizinha ou se os lábios roçassem a nuca, a face, a boca
da estrangeira. Perdoaria se a língua estivesse entre as pernas da
ex, se o sexo gritasse pela carne flácida da empregada ou se os dedos
fossem enfiados na traseira da prima. Tudo menos isso... Cena infame,
traição sem nome, como pôde? Como pôde fazer? As
lembranças passam embaralhadas na minha cabeça. Estamos os dois, entre as
prateleiras das tragédias gregas. Publicações antigas, bolorentas e de
páginas amareladas. Cheiro de mofo, umidade que gruda nos dedos e me faz
espirrar. Puf! Foi o barulho abafado que o livro fez ao cair no chão.
Risos nervosos. Minhas mãos suavam frio e os óculos dele estavam tortos.
Quis lhe dizer, mas estava tomada de vergonha. Daí veio o beijo, tímido
como as primeiras leituras. A parede no final do corredor, o gosto da
língua geográfica nas lambidas dos Cânticos. A mesma fúria que mais tarde,
num descuido da bibliotecária, nos fez limpar o chão da sala dos clássicos
universais. Agora
subimos ladeiras à procura de um lugar. Paredes altas, que caibam a
história que carregamos nas malas: capas duras, edições de bolso,
enciclopédias, coleções. Casar amor é fácil. Idéias e livros, não.
Entramos no sobrado, uma casinha de fachada amarela, duas janelas e porta
na frente. Corredor estreito, pátio interno separando a cozinha, cheia de
baratas. A torneira do banheiro que não saía água e as goteiras no quarto.
Penduramos na entrada um provérbio chinês e escalamos escadas para
empilhar nas prateleiras, os livros. Centenas deles. A empregada faltou,
mas nos deixou com as últimas aquisições do sebo limpas. Ele abre a página
de Otelo, eu me debruço sobre as de Beauvoir. Mulheres, homens, estradas,
fazendas, montanhas, desertos, traições. Veio
a imagem da camisa de seda manchada de batom. Meu ódio, a lavanderia. E o
maldito telefonema. Não virá para o sarau. Reunião de última hora na
empresa. Meus dedos passeiam nas páginas, aflitos. Duas horas depois, novo
telefonema. Acidente na estrada, pista interditada, carros em fila
indiana, lentidão digna de Kundera, ele diz. Três horas da manhã. Os relógios
da casa anunciam abismo, escuridão. Histórias de realismo fantástico
atrapalham minha leitura, fecho a Odisséia, jogo o casaco por cima da
camisola, apanho as chaves, bato a porta, subo no carro e pego a estrada.
Asfalto fresco e pista vazia. Nenhum movimento. Refaço o trajeto
percorrido por ele, do trabalho ao sobrado. Paro em bares, botecos e
inferninhos que encontro no caminho. Recebo cantadas grosseiras, enfrento
o mau cheiro dos banheiros, a fumaça suspensa em meio às luzes noturnas, o
bafo quente das bebidas baratas. Vou desistir. Mas
justo na hora, adivinho a traseira do carro dele no estacionamento. Dou
ré, paro ao lado e desço. Um homenzinho surge do nada e informa que não há
vagas. Todos os quartos estão ocupados, moça. Abro a bolsa, tiro o pacote
branco com o dinheiro do aluguel e condomínio, estendo a mão ao homem,
minto. Minto bem, pego a chave e peço que me diga em qual deles está o
dono carro. Com
o estômago embrulhado, tiro os sapatos, piso no chão, paro em frente ao
lugar, deixo cair a bolsa de tiras longas, enfio o metal na fechadura e
empurro a porta. No meio do quarto, a cama redonda. Lanternas vermelhas,
teto envidraçado, piso xadrez, frigobar, taças. No espelho em frente, a
imagem do homem nu, com as pernas estendidas e as mãos ocupadas.
Sem
pensar duas vezes, tiro da bolsa o canivete que usava para separar folhas
grudadas, caminho até ele, e antes que possa reagir ou dizer qualquer
coisa, toro-lhe os dedos. Viro as costas e penso nas mil e uma noites que
rolamos no tapete embalados pelos artifícios de Sherazade, nas estantes da
biblioteca, no chão dos clássicos, no último sebo, nos
saraus... Como disse, perdoaria tudo. Tudo menos encontrá-lo ali, naquele motel, àquelas horas da madrugada, sozinho. Com um livro nas mãos.
Vássia
Silveira é jornalista e editora
do site Ana e Suas Mulheres. Escreve o blogue Gavetas e Janelas e assina
uma coluna semanal de crônicas no Nariz de Cera.
1 poema não
há palavra que cante imagem
que explique lágrima
que traduza viola
que chore filósofo
que entenda não
há flor que aflore droga
que expanda perfume
que seduza beijo
que amorne não
há sono que repare água
que permeie sôpro que
perdure meu
sonho seu
medo meu
desejo seu
destino meu
amor seu
silêncio
Zoe de Camaris escreve por osmose. Tem manias de poeta ou mania de poetas. Sonha no Parnaso, ao lado de Glauco Flores de Sá Brito, Murilo Mendes e Marcos Prado (embora este último negue que está lá). Mora em Curitiba, onde morre de tédio - portanto, é suicida. Não gosta dos seus poemas e acha que é tarde para se iniciar nas Artes Plásticas. Deixou de ser feminista, é bonita e anacronicamente romântica. Faz análise, mas continua acreditando na rosa azul. Escreve o blogue Palavra de Pantera e joga Tarot.
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