edição 49 | dezembro de 2014
temas:  uma velha canção | o corpo | fim de ano

 

3 poemas
silvana guimarães 


clave de dó

 

 

o piano foi vendido

com duas teclas manchadas

costelas vertiginosas

cordas dissonantes

harmonia desesperada

a preço de ocasião

 

levou as tardes do conservatório

[varandas de azulejos folhagens bem-te-vis]

o primeiro o segundo o último concerto

o rock horror dos vizinhos

a cadência daquela lua azul

tchaikovsky chopin bach beatles e pixinguinha

 

while my soul gently weeps

 

levou suas fusas e semifusas

desatinos e desafinos

seu peso

sua pose

 

levou as minhas mãos

 

 

 

 

trapézio

 

 

a manhã nasce num gesto escuro

quando a espera se revela

inútil como um útero

que não sangra

 

o corpo incauto põe-se

de tocaia: aguarda outra deixa

para se jogar

e ignora o calafrio

 

esse arrepio entre o umbigo e os seios

essa dor terebrante no monte de vênus

 

anunciam

 

todo amor dilacera

 

 

 

 

herança

 

 

o ano passado não passa

o ano passado arrasta

a poeira dos dias

o ano passado pirraça

o ano passado rumina

as coisas mortas

o ano passado tortura

o ano passado conserva

o que não termina

o ano passado amontoa

fantasma farrapo traça

clarescura legião

 

o ano passado adormece

postiço

 

apático

o ano passado desperta e dura

 

©cristina arruda

 

3 poemas
sonia viana 


o amor

 

 

primeiro amor

fantástica emoção

invasão de satisfação

pura magia

explosão de criação

descoberta do prazer e dor

 

ao findar esse amor

uma velha canção

uma "Balada Triste"

faz memória no existir

 

 

 

 

alterações do tempo

 

 

céu azul esplendoroso

ondas calmas espocam suaves

corpos variados

alguns deslumbrantes como o azul do céu

penso na juventude

no apelido recebido:

o corpo

o  tempo tudo transforma

 

agora ouço:

muito bom pra sua idade

penso na juventude que me habita

retocada pelo tempo

 

 

 

 

vivendo poesia

 

 

num fim de ano

Drummond procurou

uma mala vazia

 

para o próximo ano

eu procuro

uma abarrotada de fatos vividos

outra plena de sonhos

 

 

poema
suzana bandeira 


corpo, curvatura do momento

mal-assombrado da vida.

 

o que mais dói é o tempo.

 

 

the new big bang theory
tati skor 


— Ó Zeus, em que pensas? — lá veio de novo Diab interromper a contemplação.

— Admiro a nossa completude aqui no Éter — Divin replicou, em êxtase.

Porém, logo mudou o tom:

— E pare com isso de me chamar de Zeus.

— Mas Deus soa muito sério... — Diab fez um muxoxo.

— Temos que respeitar a liturgia do cargo, Satan — devolveu Divin com autoridade.

— Fala de mim mas faz a mesmíssima coisa. Além de mudar meu nome a toda hora, fica aí pontificando sem perceber que isto aqui é o maior tédio! — Té-di-o! — Diab era um furor só.

— E o que você quer que eu faça, Boneca?

— Invente alguma coisa que me tire desta infinita pasmaceira, Senhor! – arrematou em tom irônico.

— Senhor até que me fica bem — anuiu Divin —, o ego satisfeito. Pois lhe farei a vontade, Diab!

— E o que vou ganhar? — a ansiedade não tinha limites.

— Um universo, é claro, não faço por menos! — exclamou, cioso de seus poderes.

— O que é isso? — desconfiou Diab.

— Para criar é necessário conhecimento e talento. — Divin não cabia em sí, regozijando-se pela brilhante ideia.

— Pare com esse auto marketing e me explique logo que diabo é isso de universo.

— Em síntese, é uma máquina imersa no espaço-tempo que espreme o Nada para extrair consciência! Lindo, não é?  — gabou-se, em tom professoral.

— Isso não me parece lá muito atraente, ahã... Criador — bajulou Diab, tentando obter mais detalhes.

— Se eu lhe disser que, ali, a energia condensada em matéria também formará corpos, entidades que você poderá manipular, fica melhor?

— Elas poderão transgredir?

— Sabe, Demo — Divin não perdeu a chance de espetar-lhe mais um apelido —, o seu talento parece dormente. No seu universo — sublinhou o "seu" com sarcasmo — é obvio que haverá transgressão. Haverá o tornar-se, o vir a ser, a evolução, a revolução e a involução. Neca de tédio, está bom assim?

Diab era só sorrisos:

— Acho que gostei da ideia. Mãos à obra, pois — rogou.

— Tudo bem — sorriu o Criador. — Vou promover uma sequência de eventos para tornar seu universo uma realidade...

— Vamos, vamos lá — Diab não conseguia se conter.

— Iniciando por fazer de você o Nada que preencherá o espaço-tempo.

Diab, entendendo, enfim, como a coisa funcionaria, tentou se esquivar, mas já era tarde.

Enquanto o universo era parido numa enorme explosão do Nada, Divin sorria e contemplava a nova completude do Éter.

 

[Para Di e Vi]

 

©cristina arruda

 

8 poemas
valéria tarelho 


cantiga para assobio negativo

 

 

no fim das quantas

o corpo

é velha trilha

que ninguém toca

 

sequer canta_

rola

 

 

 

 

não morreu

 

 

aquela proposta

permanece

de pélvis

 

it's now

or never

 

 

 

 

in other words...

 

 

é primavera, amor.

agora e novembro a fora: status de flora.

copa e cabana, um cantinho, uma viola, sampa e canção

:

serão nossa horta, jardim, pomar.

é primavera, meu bem. ali, além. aloha!

vamos unir as escovas, a sua rede, minha redoma, minha renda com sua barra, seu chope com meu shopping, sua ipanema e minhas tiras [que as havaianas dançaram no último arrastão].

é hora de, a sós, amar à sombra. de grafitar poemas no quadro do luar [particular] de meu ser tão. sermos a soma de meu sim com teu yes. trançar de línguas e idiomas. com fusão. [fly me to the moon] novembro ou não.

você verá, paixão — toldos verão —, o rio é de janeiro, mas será sempre fe[r]vereiro sob o avanço do redentor.

há mais calor, é feito estufa e feito estava. não é minha praia. minha onda é uma noite mais sinatra.

[Let me see what spring is like on Jupiter and Mars]

vem! novembro até que é fresco.

é efeito flor.

 

 

 

 

vai idade

 

 

do espelho

ao espólio

é um piscar

de olhos

 

 

 

 

ainda tenho meus [en]cantos

 

 

nem sereia

nem sarada

 

mas com a língua

afi[n]ada

 

 

 

 

identidade

 

 

prefiro correr o risco

a não mover um músculo

em meu rosto o

vasto currículo

:

córregos sofridos

sacrifícios em ondas

vincos de rios vazios

 

minha fronte move ruas

expressa vias

bifurca rumos

 

exibo na face nua

meu real registro

:

o rg das rugas

 

 

 

 

dezembro

 

 

dezembro

traz nos ombros

o peso

de onze meses

 

chumbo ou ouro

dezembro só quer

o de sempre

 

encerrar o expediente

com chuva

de estouros

 

 

 

 

filosofia de bolso

 

 

antes que chegue

o ano novo

traço o velho

até o osso

 

 

 

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