edição 47 | julho de
2014
"falada"
ela tem uma
safadeza contida
uma frase
miúda
deve ser
dessas que
se contorcem
de prazer
mas se
cala
vê-se isso
pelos olhos
que convidam
o tempo todo
enquanto ela
fala
ela é uma
variedade
bom mesmo é
viver
de uma
aventura para outra
desta para
aquela
mudar da água
para o vinho
e se um
grande amor se acaba
ela vai fazer igualzinho
aula de
economia
Depois que a
patroa saía, ela recolhia as moedas deixadas na mesa.
— Pro seu
almoço, aqui não tem janta. Acaba o serviço, depois você almoça. Trabalhar
de barriga cheia faz mal. Mas que tanto você vai nesse alçapão? Que tanto
limpa lá em cima?
E passava o
dia todo lustrando aquelas moedas. Um dia seriam sua liberdade. E ela
nunca mais seria empregada de ninguém, nem lavaria privadas, nem arrumaria
lixo com absorvente usado ou merda.
Seus ossos
largos davam cabo de tudo. De limpar a casa toda e sonhar no alçapão,
junto à bolsinha surrada de napa, no meio das teias. Depois comia
avidamente a sobra de ontem. Viver a vida tinha que ser sem despesa.
Quando endinheirasse, comeria uma pêra dágua ou uma torta de
maçã.
Juntava,
juntava. Os dias passavam, a conversa igual e a meia comida.
...
— Menina,
você não foi embora ainda? Sai daí de cima, vai
descansar!
Silêncio absoluto. A patroa, com muito esforço, conseguiu mexer os pés gordos em direção ao alçapão. Encontrou-a caída, cor-de-nada, junto às suas economias. Que foram usadas no velório.
Neusa Doretto.
Atriz e dramaturga (EAD/USP). No teatro, trabalhou com Renata Palottini,
Fausto Fuser, Neide Archanjo, Guarnieri, Lourdes de Moraes e Teresa
Aguiar. Paralelamente, mantém atividade literária em jornais como Diário
de Sorocaba, Diário do Povo de Campinas, Revista Vivere e Boletim de Artes
Plásticas. Como orientadora cultural, trabalha com projetos ligados ao
teatro e de incentivo à leitura, apoiados pela Secretaria de Cultura de
Campinas, desde 1991. Dirige o "Teatro Falado", de incentivo à leitura
dramática, desde julho de 2007, trabalhando textos e poemas da literatura
contemporânea. Escreve os blogues Poesia Rápida, Sinceridade Brutal e Poema
Curta-Metragem,
que edita.
3 poemas norma de souza lopes a pele é o
palimpsesto do amor
pela terceira
vez amou
(se contasse
a paixão pelo
professor de
matemática
aos doze
seria a quarta)
tatuou do
lado esquerdo
do ombro bem
abaixo
do esterno,
em gótico
o nome do
amor
amou pela
quarta vez
(ou seria
quinta?)
tatuou um
gato preto
sobre o nome
do amor
com gatos o
lance é outro
amor eterno é para cães
19 de
dezembro de 1687
Robson
Crusoé
considero sua
partida
imperdoável
nenhum
continente
vale a solidão de uma ilha
mudança
Agora que
moro nesta casa
de dois pisos
e poucas janelas
e talvez por
a casa ser meio torta
ando falando
em selar alçapões
fechar portas
e prender tramelas
Depois da dor
de arrancar
de mim e das
antigas paredes
tantos
parafusos
prendi
novamente os móveis
acabei de ler O Muro do Sartre
e agora sinto
tudo firmente preso
Posso dizer
que sair do lugar
e mudar já
não dói tanto
mas a mania
que os lugares tem
de se
esvaziarem das memórias
e das pessoas está me impressionando
» Imagens
Neuza Ladeira (Belo Horizonte/MG, 1950). Poeta e artista plástica, passou a infância na zona da mata, interior de Minas Gerais. Adolescente, voltou a Belo Horizonte, onde começou a militar nos movimentos politicos. Entrou para a clandestinidade, andando pelo mundo de São Paulo e do Rio de Janeiro, pasárgada de origem de sua tortura como prisioneira politica na ditadura militar. Sua experiência de vida acaba por revelar uma pessoa em busca de uma liberdade somente encontrada na poesia e na pintura. Publicou, entre outros, Opúsculos (Belo Horizonte: Anome Livros, 2003), 212 páginas grafadas de imagens e letras. Fez capas para muitos livros de poesia e de ficção, além de exposições nos mais diferentes lugares. Alguns deles: Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Prefeitura de Belo Horizonte e Teatro da Cidade (Belo Horizonte). Mais informações: www.neuzaladeira.com.br | neuzaladeirapinturas.blogspot.com.br.
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