edição 46 | março de 2014
temas:  frida kahlo | nudez | saudade

 

qualquer coisa que brilhe
adélia prado
 
 
São eternos esta oficina mecânica,
estes carros, a luz branca do sol.
Neste momento, especialmente neste,
a morte não ameaça, tudo é parado e vive,
num mundo bom onde se come errado,
delícia de marmitas de carboidrato e torresmos.
Como gosto disso, meu deus!
Que lugar perfeito!
Ainda que volta e meia alguém morra, tudo é muito eterno,
só choramos por sermos condizentes.
Necessito pouco de tudo,
já é plena a vida,
tanto mais que descubro:
Deus espera de mim o pior de mim,
num cálice de ouro o chorume do lixo
que sempre trouxe às costas
desde que abri meus olhos,
bebi meu primeiro leite
no peito envergonhado de minha mãe.
Ofereço cantando, estou nua,
os braços erguidos de contentamento.
Sou deste lugar,
com tesoura cega cortei aqui o meu cabelo,
sedenta de ouro esburaquei o chão
atrás do que brilhasse.
Pois o encontro agora escuro e fosco
no dia radioso é único e não cintila.
Veio de vós. A vida. Do opaco. Do profundo de Vós.
Abba! Abba! Aceita o que me enoja,
gosma que me ocultou Teu rosto.
Vivo do que não é meu.
Toma pois minha vida
e não me prives mais
desta nova inocência que me infundes.
 
 
Adélia Prado (Divinópolis/MG, 1935). Uma das grandes vozes da literatura brasileira. Publicou os livros de poesia Bagagem (Imago, 1976), O coração disparado (Nova Fronteira, 1978), Terra de Santa Cruz (Nova Fronteira, 1981), O pelicano (Guanabara, 1987), A faca no peito (Rocco, 1988), Oráculos de maio (Siciliano, 1999), A duração do dia (Record, 2010) e Miserere (Record, 2014). Em prosa, Solte os cachorros (Nova Fronteira, 1979), Cacos para um vitral (Nova Fronteira, 1980), Os componentes da banda (Nova Fronteira, 1984), O homem da mão seca (Siciliano, 1994), Manuscritos de Felipa (Siciliano, 1999), Filandras (Record,  2001), Quero minha mãe (Record, 2005), Quando eu era pequena (Record, 2006) e Carmela vai à Escola (Galerinha Record, 2011). Participou de várias antologias, escreveu para o teatro e foi traduzida para o inglês e o espanhol. Vive em Divinópolis. Para ver Adélia Prado no programa Roda Viva [entrevista, 24 de março de 2014] clique aqui.
 
 
 
 
 
frida kahlo: extrato de ectoplasma
alzira gomes loyola 


trocou tequila por pulque

numa espelunca de Ciudade Juárez,

a cada gole

anotações sobre feminicídio,

raízes sobre corpos violados,

maldição de Montezuma,

sonhos Zapata

 

esperava desde às dez,

de pernas abertas em Coyoacán

aos mimos de duas chicanas,

o fantasma de Bolaño

atravessar a parede

com Amalfitano

 

entrou em choque

ao ver José Juan Tablada

escrever este haiku

no espelho

de Trotski:

"Tierno saúz

casi oro, casi ámbar,

casi luz..."

 

pior ainda:

não poder trocar

o pincel de Diego Rivera

pelo fuzil do comandante Marcos,

as pernas para sempre presas

à angústia colorida das telas.

 

 

Alzira Gomes Loyola (Copacabana, 1990). Vendedora de cosméticos durante o dia e stripper à noite. Abandonou a faculdade de nanotecnologia por falta de grana. Apaixonada por filosofia, monas, MOMA e lutadores de MMA. Três livros de poesia publicados: Bandeira a meio-pau, homenagem ao poeta do porquinho da índia, livro traduzido para o finlandês, o sueco e o turco; Pau de biba, poemas eróticos; Pau pau pedra pedra, dedicado a João Cabral de Melo Neto, lançado em Portugal, Malásia, Sri Lanka e Butão.
 
 
 
2 poemas
clara albuquerque 


*

 

quando ficava nua

na cama

não ficava nua

não dormia nua

quando os homens na rua a despiam com os olhos

o olhar dos homens

eram anáguas de morte

no espelho

não ficava nua

e mesmo quando erguia uma das bandas

da bunda

para a mulher da depilação

não se sabia nua

nunca tinha ficado tão nua

que não sabia como de fato

fosse uma mulher nua

 

 

 

 

 

*

 

la vida viva

aquelas eram

verdadeiras melancias

os meus pulsos

todo o meu corpo

feito de pulsos

suco sulcos pulso

inteira

melancias caindo

de edifícios

melancias

debaixo do chuveiro quente

melancias com gelo

em liquidificadores

num dia escaldante de verão

— me ansias!...

pulso e passo

a falta que sinto de ti

dia após dia

quando te vejo

por acaso:

melancia

no bico de um pássaro

 

 

Clara Albuquerque. Filha de fazendeiros do interior de Minas, princesinha antenada e tarada. Já viajou mundo, pirou de morar fora e atualmente penduleia entre a vida pacata da casa dos pais e a São Paulo metrópole cultural. Perde-se na poesia. Adora blogues, mas nunca teve um. Não mente a idade, mas também não conta.

 

 

2 poemas
cris barbosa 


despertar na casa das chuvas

 

 

Há silêncio.

Na alvorada úmida

tilintes nos telhados

farfalhar dolentes

uma ternura que se derrama

exsuda.

 

Há saudades que vem das águas

que vem com águas

que são feitas de águas

lânguidas penetram.

Há uma que é âmago

forjada no hálito do convívio

crescida de parecenças

ninhos ancestrais.

Impregnada renasce nos cheiros

nos desvarios dos sentidos.

Nela passeiam os encantados

os de amor ainda maiores.

 

Há outras incandescentes

que são o esquecimento de Deus

somente um ai.

 

Nas águas das minhas saudades

navegam saveiros antigos

grandes velas brancas

entregues às marés

odisseias no Paraguaçu.

No silêncio

as vagas em marulhada distante

meu olhar apenas perscruta.

 

"A saudade é liquida!".

 

 

 

 

 

dormente

 

 

Naquela saudade

a triste agonia.

Olhos esquecidos

sobre a soleira da porta.

Nenhuma calçada, caminho

um domingo interior.

Silêncio

de rua deserta.

 

 

Cris Barbosa. De Cruz das Almas, Bahia. Agrônoma, pesquisadora, artista da trupe da Casa da Cultura Galeno D'Avelírio. Publica desde 1991 na Revista Reflexos do Universo e em 2007 teve o poema "De cotidianas coisas" premiado pela Academia de Letras do Recôncavo da Bahia. Andarilha, viveu as montanhas do Sul de Minas, o azul de Maceió, as terras roxas de Londrina e o inebriante azahar da Espanha. Há quatro anos mora em Salvador e cultiva uma flor Marina.

 

 

3 poemas
ehre 


árvore da esperança, mantenha-se firme!

 

 

Este não é um poema sobre trigo

 

Este não é um poema sobre um útero transpassado

não é um poema sobre fraturas

nem sobre a dor que desenha cores impossíveis

 

Este não é um poema sobre Frida Kahlo

Este não é um poema até o enterrarmos

até cada um dos nãos, sementes mortas, germinar um pássaro

 

Este é um poema sobre pão

 

 

 

 

 

ensaio sobre a cegueira segundo a cardiologia

 

 

no amor, os olhos se fecham

nos sonhos, os olhos se fecham

assim como no beijo quando o coração é claro

 

a nudez da carne sobre os ossos é rasa

sem luz, extingue-se

 

no amor e nos sonhos, os cegos veem

e há que se perguntar ao paciente:

quem consegue te ver de olhos fechados?

 

 

 

 

 

paisagem incompleta

 

 

tenho os jardins em que guardei as chuvas

que tuas mãos começaram

 

leio as entrelinhas que você decifrava

quando as ausências roubavam os sentidos

 

ouço o vento que você traduzia

quando as janelas ainda estavam fechadas

 

e mesmo assim, a língua saliva o que falta

saudade é uma palavra com vocação para infinito

 

 

Ehre. Espécie do gênero homo sem ser sapiens — poemas resultam de ignorãças. Há tempo começou a escrever um tanto deles. O tanto que não sabe, o tempo que a consome. Quando nasceu ainda se usava lápis, papel e gentileza. Espera não morrer antes que sejam ressuscitados. "As coisas que não existem são mais bonitas". Mais: ehreditario.tumblr.com  |  cadernodenomeseparticipios.tumblr.com.

 

 

conto
julia dornfelder 


Querido desafeto [1]

 

Volto de Coyoacán presa à imagem da fragata de Kahlo. Não a que sobrevoa a história do lugar, mas a que fica sobre os olhos dela, com as asas abertas e misteriosas de uma ave cheia de pelos escuros. Frida quase levantou voo quando falei de como você me ignora. De novo: com os olhos. Leva nas sobrancelhas e nos lábios, pintados como o caldo dos seus dias diante das telas, a iminência do nosso futuro, se é que ainda temos algum. [Não juntos, pelo menos.]

 

Mas não me estendo mais: ela ergueu sua fragata, pediu que eu aguardasse o tempo que ainda restava na ampulheta de areia azul — porque gosta de pensar em silêncio, enquanto a vida escorre. Eu, como já não tenho mais vida, não escorri: permaneci sentada na poltrona verde, observando a dureza daquele silêncio. Apenas quando deixei a cidade pensei nos coiotes de pedra e na fonte com suas águas cheias de sol, como jatos de citrino líquido: era isso: meu coração tinha virado um bicho de pedra, com os dentes à mostra. No entanto, como acontece aos santos e ao sangue que brota dos seus olhos de prata, eu podia também vazar, não sangue, nem das glândulas que já secaram, mas saudade aquosa, direto do cristalino. Saudade cristalizada. Se eu pisco com força, transbordando esse mundo no qual você também nada, é certo o homicídio. Se deixo na superfície gelatinosa da espera a minha meditação paciente, o suicídio. (A propósito, vi muitos remédios ao lado da cama, qualquer dia desses não teremos mais Kahlo: nem nas mãos nem na arte.)

 

Não sei o que teve mais força para macular minha serenidade: o silêncio trevoso de Frida (que não parecia disposta a me ajudar), o seu silêncio gelado (que não parecia uma possibilidade nas primeiras semanas), e finalmente o silêncio cavo, com cheiro de parto e carne vaginal, daquele óleo "Mi nacimiento" (que não parecia feito com as mãos, mas com passos urgentes, sujos de medo — imagine só!, uma pintura feita com os passos de alguém apavorado, alguém trêmulo como dez mil chamas dobradas pelo vento; alguém quente e mole como dez mil velas lambidas pelo fogo das duas da tarde, pingando seus últimos fragmentos de lucidez). [Às vezes sou eu essa vela pingando a instável cera da lucidez.]

 

Quando ela finalmente ergueu o queixo (não a fragata, agora mais quieta do que toda a casa iluminada e todo o pó que subia dos tapetes, girando borras de previsões absurdas e mágicas), quando ela finalmente pensou em ofender você, porque sabia que alguém tinha de fazê-lo, sorriu. Sorriu, abriu os braços na fatia de sol que manchava sua saia e disse que não há castigo maior que ser negado pela natureza & que os fins de tarde não merecem sua contemplação, esse engodo vazio como um olho de vidro voltado para dentro.

 

 

Julia Dornfelder nasceu em julho de 1975, num dos invernos mais rigorosos de  Curitiba. Embora escreva, não se considera uma escritora; embora tenha tentado suicídio aos 14 anos, prefere deixar a morte para depois e a etiqueta de suicida como algo puramente estético. Vive com uma lhasa apso cor de neve, que atende pelo nome de Lys. Trabalha essencialmente com a compilação de cartas e aquarelas deixadas pelo pai, Erich Dornfelder, além de aventurar-se pela pintura, pela gravura e às vezes pela tortura: do próprio coração e das folhas de coentro que torce com carinho. Ama escrever cartas, passar tardes inteiras ouvindo as composições de Niccolo Paganini e comer cenoura crua com homus.

 

 

 

 

» Imagens

 

Larissa Marques. Editora, escritora, artista plástica, nasceu em 1974, na cidade de Itumbiara, interior de Goiás. Reside em Sobradinho, Distrito Federal. Autora dos livros Entre o negro e o nada, Infernos íntimos, O oco e o homem, Sob um olhar, Ensaio sobre o desespero, Ponto zero, Inconstante martírio, Fragmentos do ciclo dos símios e Uma lembrança para Godot. É uma das Escritoras Suicidas. Mais:  larissamarquespoeta.blogspot.com.br | lagrimasdedali.blogspot.com.br.

 

 

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