edição 44 | outubro de
2013 o encontro (parte I) larissa marques Sig
aproximou-se sem pressa, sem me olhar, veio devagar, contemplando as
árvores rodeadas de flores e pedras do jardim da praça. Sentia-me
estranha, lembrava-me da primeira vez que o vira, sentado na confeitaria,
olhava-o como a um estrangeiro que acaba de chegar, tomada por um medo
íntimo e curiosidade incontrolável. Era invadida agora pelo mesmo
sentimento, queria sair correndo dali, sabia que se continuasse
desejando-o daquela maneira, o dissabor e o desencanto seriam inevitáveis.
A
sombrinha e o vento pareciam cientes disso e me puxavam para trás, minhas
anáguas estavam pesadas demais, nunca me sentira tão desconfortável e tão
feliz. Uma saciedade que me fez fincar os saltos no chão, segurar o fôlego
e ficar imóvel, até sermos apenas eu e ele em um olhar.
Quando
finalmente chegou ao meu lado, ofereceu-me o braço esquerdo e eu
entrelacei minhas mãos nele, sem nenhum cumprimento formal, começamos a
caminhar rumo à Igreja de Votivkirche, num dia agradável, a primavera
explodia em Viena, em todas as usas cores. Meu vestido, em harmonia com o
cenário colorido, parecia dançar a cada passo que dava. Os cabelos fugiam
da rede fina. Não sei bem explicar a sensação que tive, pela primeira vez,
tudo soprava a meu favor. Repleta de um afeto que, como o vento, tomava
meus pensamentos desalinhando meus cabelos e fazendo um sorriso
transbordar de minhas entranhas. Percebi
que uma mulher de meia idade nos observava, sentada em um banco,
alimentava os pombos, mas não olhava para eles e sim para nós dois,
balançando a cabeça, em um sinal negativo. De onde teria surgido aquela
mulher, só a percebi pelo seu gesto repreensivo. Antes
de comentar com ele sobre a tal mulher, Sig disse: —
Vamos pela sombra, querida, está muito calor! Concordei
silenciosa e seguimos, confessei sentir-me incomodada pela maneira que
aquela mulher me olhava. —
Não ligue, porque se incomoda com ela? Há tantas pessoas nos vendo, o
mundo nos vela, estamos felizes e apenas por esse motivo, estaremos sempre
sendo vigiados. Talvez por inveja, por curiosidade, todos querem o "elixir
da satisfação" e não se conformam de ver outros desfrutando dele,
despudoradamente como nós. Ri,
quase sem jeito, na tentativa de esconder o contentamento que aquela frase
me causara. —
Você é engraçado! Sendo assim, todos me incomodam, não quero ser
observada, nem tão pouco invejada! Aquilo
não era verdade, gostava de ser invejada, como era bom estar ali com ele,
e saber que tantos outros não tiveram o sabor da plenitude que eu sentia
agora. Sig
respondeu-me com aquele sorriso de canto de boca, que sempre dava, quando
parecia deduzir sobre meus pensamentos mais profundos.
—
Como queria ter seu discernimento, saber quando devo ser quem esperam que
eu seja ou apenas ser quem sou. Seria mais fácil viver. A vida parece-me
um simulacro, que cultivamos como se fosse real. Tantas conveniências e
regras de conduta. Sinto-me caminhando sobre o fio de uma navalha, não vou
me adaptar nunca! Faço tudo errado e todos os olhares me condenam. Posso
dizer-te que a transgressão me agrada, mas depois vem o vazio, talvez por
ter tão poucos pra compartilhar o que penso. Queria pode me isolar, a
coexistência me faz mal, muitas vezes me sinto tão violada, que me oculto
em mim para não explodir! —
Não vejo motivos para o isolamento total, nem para a adaptação
arbitrária... — disse. Mas
já estava presa a ele e à minha insegurança. Será que Sig me compreendia?
Se não houvesse motivos para a adaptação, para que viver em sociedade e
por que nos conforta tanto estar em grupo? Não se tratava apenas de
conviver e sim de tolerar. Nós
dois já havíamos quebrado essa barreira, apetecia-nos mutuamente de nossa
companhia, tínhamos noção do encantamento que exercíamos um sobre o outro.
E ele tinha razão, o isolamento era algo impensável, inalcançável, depois
de ter estado com ele. Um
simples passeio, um encontro marcado era algo intocável, o nosso tempo era
diferente, andávamos serenos e calmos, enquanto a humanidade corria. O
vento ora ou outra queria levar-me a sombrinha, mas o sol já estava alto,
não poderia me dar ao luxo de fechá-la, as roupas eram pesadas, já não me
sentia tão bem. O desejo era ficar mais com ele, diminuía o passo na
esperança que o tempo seguisse meu ritmo. Uma
menina arrancava as flores do jardim, destruía todas as pétalas e ria,
orgulhosa de seu feito, cada rosa despedaçada causava-lhe uma gargalhada
plena. —
Encanta-me o "Toque de Midas" invertido que o ser humano tem, transforma
em dejeto, tudo o que toca. Vejo-me naquela menina, inocente, que
despedaça flores, devasta sonhos, acaba com a vida dos outros e sorri. E
seu sorriso compra tudo! —
Alguns acreditam no mito da Fênix, minha querida! Da devastação brota o
renascimento! —
É uma maneira de interpretar, mas apavoro-me com essa possibilidade,
reconstrução a partir da destruição. E parece servir-me como uma luva em
relação àquela mulher, que vimos há pouco, por vezes sou como ela.
Sinto-me opressora, quero reprimir, destruir a dicotomia e impor a
ditadura de minha anarquia pessoal. Sei que meus parâmetros são
equivocados, que minhas teorias são falhas, mas mesmo assim necessito de
aprovação e se não tenho quero fuzilar meu oponente.
—
Não há como estabelecer parâmetros perfeitos, por isso, tentamos seguir ou
transgredir algum modelo pré-estabelecido e sem esses modelos muitos se
sentem perdidos. —
Por isso, digo que a realidade é um simulacro, temos que seguir a ideia
estabelecida e não nossa intuição. É tão claro para mim, que o homem e a
natureza não andam assim de braços dados como nós dois! Como é evidente
que a relação entre o homem e a natureza seja a mesma dos amantes. Como o
homem busca a destruição de si e de tudo que o rodeia, a natureza tenta
sobreviver a ele. O amor também destrói, enquanto um busca a destruição de
tudo o que o rodeia, o outro tenta sobreviver ao amor que sente e ao ser
amado. —
A única certeza que tenho — dizia Sig — é que o amor é um estágio da
loucura. Rimos muito depois da afirmação,
mas logo o silêncio dedutivo me tocou. —
Se o amor é insanidade, meu querido, o ódio é uma sanidade? Seria mais
lúcido quem ama ou quem odeia? Sig
continuou calado, com os olhos presos no horizonte, parecia intrigado com
o cunho da pergunta, puxou o cordão preso em sua casaca e abriu o relógio
dizendo: —
Querida, já passa do meio-dia, tenho trabalho por fazer, amanhã nos
veremos aqui, no mesmo horário. Beijou-me a palma da mão,
puxando-me ao seu encontro, pensei num provável primeiro beijo, mas apenas
sussurrou-me ao ouvido: —
Odeie, não há insanidade no ódio, amar sim, é uma debilidade temporária.
Mesmo
desapontando-me com duras palavras, tocar seu rosto, a barba por fazer,
fez-me arder as vísceras e a face. Saiu
com o passo apressado, quase desesperado. Passarei
na confeitaria, será o álibi perfeito se minha mãe me perguntar sobre mais
uma manhã perdida, passarei também no armarinho, pois haveriam de ter
chegado novas linhas de seda, perfeitas para as aulas de bordado rococó
com Dona Milu. Pobre
Dona Milu, pobre mamãe! Vítimas de meu ódio íntimo. Tão inocentes!
Embora
tivesse certeza que eu era a minha vítima maior. Pobre
de mim, que amo Sig e sei que a letra "S" jamais será bordada nos
monogramas de meu enxoval.
![]() o medo cor-de-rosa lia beltrão Nunca tinha pensado na morte. Achava-se eterna, do alto dos seus dezessete anos. Dos mais próximos, apenas seu avô paterno havia morrido. Mas morava longe, raramente aparecia. Já nem lembrava mais do rosto dele. Uma amiga da sua mãe suicidou-se, mas isso era diferente de morrer. Morte é uma coisa que acontece sem a gente querer. O cachorro da casa morreu atropelado, mas morte de bicho não vale. A gente sofre um pouco e logo, logo, arranja outro. Já tinha visto muita gente morrer na televisão e no cinema. Mas eram mortes estudadas, bem posadas, em que as pessoas falam muito antes de morrer. Aí arriam a cabeça assim de lado e pronto. Estão mortas. Nunca tinha pensado na morte, até aquela manhã de outubro em que viu, da janela do ônibus, um outdoor cor-de-rosa pedindo para ela se prevenir contra o câncer de mama. Discretamente, passou a mão pelos seios sob a camiseta. Invejados pelas amigas, desejados pelos namorados, estavam ali, firmes, fonte e promessa de prazeres, uns já conhecidos, outros inimagináveis. Costumava chamá-los geralmente de peitos, algumas vezes de seios, mas nunca tinha pensado neles como mamas. Mama é coisa de quem tem filho pra dar de mamar. Um dia, certamente, seus peitos iam virar mamas. Mas agora, não. Agora, eram só peitos. Raramente, seios. Chegou
em casa e foi direto para o banheiro. E o espelho mostrou o que já sabia
de cor. Dois peitos firmes, na medida de uma mão em concha. Na parte de
cima, queimados de sol. No hemisfério sul, um claro cor-de-rosa. Fez então
o que viu muitas vezes na televisão: levantou o braço esquerdo e apalpou o
seio com a mão direita. Começou, então a sentir medo. E se encontrasse um
nódulo ali? E se o câncer já estivesse em um estágio avançado, sem nenhuma
esperança de cura? Quanto tempo lhe restaria antes de morrer? Terminou de
apalpar o seio direito e se deitou de bruços na cama. Queria sentir a
pressão dos seios no colchão. Queria senti-los vivos, saudáveis. Mas o
medo já havia feito seus estragos. O rosa do outdoor passou a parecer uma
mistura de leite e sangue. E desse outubro em diante, a morte foi uma
presença constante num lugar qualquer do corpo, do lado de dentro dos seus
belos seios.
![]() ©mercedes
lorenzo 10 poemas líria porto marinada a
rede — que blefe — não prendeu moscas suficientes e
deixou dona aranha uma arara (uma
pomba na salmoura) sem
demasias ou delongas a
catar qual passarinho (não
preciso latifúndio) um canto
pra minha rede um
amor pra minha sede um
pouso imã teus
olhos me puxam eu vou de roldão sem
chão e sem prumo eu voo outros
vãos viúva
negra tece
a teia — rede de intrigas mata
culpados inocentes e
come suas tripas arrastão teus
olhos são rede eu
— peixe enfaro comeu-a
a de a a z e tanto se
satisfez que
cuspiu no prato roldão meias
arrastão levaram-me ao cais marinheiros
atracaram-se às minhas coxas quando
o navio zarpou voltei para casa (frouxa) librianos ah
esse polvo de outubro com
tantos braços abraça-nos a
alma vai no regaço — difícil faz-se escapar ah
essa gente tão rubra ah
essa gente de rosa não
é próprio o equilíbrio porém
é gente amorosa (quem
morre de amor não
morre de câncer) malagradecido cuspiu
n'eu na
prata que comeu pensão antes
chegava sem jeito pedia
licença sentava-se só
depois de algum tempo ficava
nu agora
já vem sem roupa come
o que vê pela frente (cru
e cozido) não
agradece nem paga
![]()
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