edição 44 | outubro de
2013 2 contos maria isabel de castro lima carlota
revisitada Há poucos
anos revi Carlota. Ela me pareceu envelhecida demais. Seus olhos cansados,
meio vazios, encararam-me desinteressados, e percebi seus cabelos
grisalhos nas raízes, descuidados; o corte, via-se, barato. Mas a pele, a
pele, como sempre, sedosa. Não se viam rugas. Estranho. O resto em ruínas.
Até as roupas. Fragmentos, cada peça de um guarda-roupa, de um outro
tempo, cada qual trazendo outros eus, outros cheiros, pensei em
Carlota: dividida. O rosto que eu conhecia, tão uniforme, o jeito leve e
interrogativo de virar a cabeça como um cão, o levantar suave das
sobrancelhas; a boca molhada e vermelha, tudo no passado.
Ainda a vejo
sentada à minha frente, segurando os talheres como se fossem de ouro, ela,
a rainha, eu me detinha a observar detalhes. Fugir do apelo daqueles olhos
maus, como? Não sucumbir aos delírios dos prazeres carnais diante daquela
pele, diante daqueles braços, como? A boca desenhada em fundo claro,
morango com creme, como negar beijos? Carlota à mesa, Carlota no banho, no
carro, na sala, no quarto, Carlota em todos os lugares e dentro de mim,
com seu trejeito canino e seus lábios carnudos. Acho que já
conheci Carlota nua. A invasão libidinosa de seu caráter me levou ao seu
leito e eu não recusei. Eu a tive uma duas três mil vezes. Nos devoramos.
E um dia,
quando os lençóis já haviam puído, os óleos já não tinham a mesma
fragrância e o tato já não sentia o prazer do corpo outro, nos vomitamos.
Carlota saiu de dentro de mim com o mesmo furor que entrou e como se fosse
agosto se foi.
Até que
naquela manhã a reencontrei. Esquecida, olhou-me estranhamente, sorriu sem
vontade, pura cortesia. Trocamos algumas palavras, perguntamos coisas que
morreram em nossas bocas. A dela seca. Senti pena, talvez. Nos despedimos
e, ao dar-lhe as costas, confesso que imediatamente a esqueci.
Hoje é doze
de junho. Soube que Carlota morreu há pouco. Trazia uma calça preta e
blusa amarela, sandálias baixas. Indigente, parece que. Ajudei a
providenciar um enterro decente. No necrotério a reconheci. Deram-me suas
roupas, queimei tudo. Dela não quero nem as
lembranças. 12 de junho
de 2003. a boca do
dragão Subitamente
um vulcão explodiu dentro dela, o mal estar, o suor em abundância surgindo
pela testa, pescoço, buço, as axilas molhadas e as faces em fogo, a
insuportável sensação de haver caído na boca do dragão, de estar expiando
os piores pecados, até as pequenas malícias da mais recôndita memória, nas
grelhas do próprio inferno, no garfo do próprio demônio. Aquele que se
aproximasse era o inimigo, trazendo em si mais chamas, nada que pudesse
acalmar a fornalha acesa a queimar aquele amontoado de carnes, prisão
indecifrável de estranhas dores. Pensamentos
confusos cruzavam seus sentidos, culpas, acusações, terrível desejo de
matar ou morrer depressa, depressa, para não mais ter que se enfrentar com
esse limite do desejo, tudo havia sido tão efêmero. Lágrimas de revolta
uma vez mais lhe escorreram pela face, pingaram na toalha de mesa. Bateu
várias vezes com as mãos espalmadas sobre a mesa, numa tentativa vã de
apagar o fogo, como se o abanar dos dedos e das palmas pudesse espantar os
tortuosos caminhos de seus delírios. Sentiu o ódio
dominá-la, passou os olhos pela fruteira e odiou o vermelho, pois paixão,
odiou o amarelo, pois fálico, odiou o verde, pois não-nato, odiou a toalha
de mesa porque era ela que, todos os dias, congregava aqueles seres
ruminantes, com seus dentes largos, suas piadas comuns, sua cansativa
vulgaridade doméstica, a comida dissolvida nas bocas que pediam,
reclamavam, exigiam, sugavam. O suor
dominava sua vontade, pano de toalha na mão esticou as pernas sob a mesa,
pôs a cabeça para trás, levantou o cabelo num gesto de impaciência,
enxugou o rosto e o pescoço e, com as costas da mão, fez um gesto de
mulher fatal, passando-a de leve sobre os olhos semicerrados, boca um
pouco aberta como a pedir um beijo. Com o peito
arfando em compasso com o relógio da copa, puxou o decote para baixo com
volúpia de amante, destapando os seios. Passou as mãos sobre eles, tocando
os mamilos escuros com a pontinha dos dedos. Arrepiou-se ao pensar na
sensação das bocas que alimentou ali. Sentiu dor, asco, amor, sentiu-se
violada. Os olhos embaciados, não mais sabia se de suor ou das lágrimas,
sentiu culpa. Dentro de si desejava que suas filhas nunca dessem seus
seios às criaturas. Sentiu que
aqueles seres ao redor da mesa lhe deviam a juventude que se ia,
deviam-lhe o corpo flácido, os seios vazios, amaldiçoava os calores
terríveis que sofria sozinha. Deviam-lhe, todos eles, o tempo em que a
mera visão de uma borboleta a fazia tremer de emoção e prazer e seu corpo
jovem tinha odor de flores do campo. Quis creditar as lágrimas derramadas
nos panos brancos dos travesseiros — aos poucos amarelecidos pelo contato
das peles e das salivas — todos os quantos sonhos afogados nesses
confidentes discretos, parceiros incontestes de furtivas
ilusões. Com um suspiro de cansaço e pavor, o rosto em brasa, percebeu que chegava a hora do almoço. Cheia de culpa e medo levantou-se ligeira, arrumou a blusa, enxugou o rosto, os olhos, olhou-se no espelho e ajeitou os cabelos. Sem levantar os pés arrastou-se até a cozinha e pegou o frango sobre a pia.
Maria Isabel de Castro Lima [apelido Bau]. Professora e tradutora de inglês e espanhol, mora em Florianópolis, e é apaixonada pela praia, pela vida e pela literatura.
![]()
3 poemas myrian naves poeminha-enredo (poeminha-de-um-leitor-só) Anoitece, sai dessa
Rede. Meu corpo te
espera. Vem, meu corpo
está quente. Fiz a rede à
mineira, mentirosa! Comprei disco
novo —
Rendez-vous, Sadao
Watanabe. Vê: sou
clara. Eu te quero
aqui e
agora. Que trem! Sai
dessa Rede. Vem pra
cá, vem pra
cama. morro de são
paulo Recado da
ilha: "Se tu vê, tu manga". Na linha
plena do olhar o nativo
mergulha da linha
azul-céu no fluído
azul-mar.
Tinge
aquarela mistura rede
e mãos recolhe
amarelos brilhos de
prata tecida a embaralhar
o azul insular. Coloridas as
linhas tingem
azul-céu fluem além
mar. lua
cheia — 'bora
brincar de bola de gude com os meninos na varanda. Rápido! Fecha
a porta, coloca a bacia com água rumo da luz. Benhé, pega o
café, eu abro o note,
busco a rede e o
cobertor. Violão tá'li.
Myrian
Naves. Nasceu em Belo Horizonte, onde vive. Graduou-se
em Letras/Português
pela PUC-Minas na década de oitenta. Poeta. Premiada pela UBE
com o Adolfo Aizen, Infantojuvenil, para inéditos, 2002, com Papos
de Anjo.
Integra a Coletânea de Ouro do Museu da Poesia.
MUNAP/ANOME, 2012. Faz
parte dos poetas publicados no Suplemento Literário da Germina, Revista de
Literatura
& Arte. Prepara a publicação de Própria Lavra,
coletânea de poesia.
![]() ©mercedes
lorenzo 1 conto, 1 poema neusa doretto taxa de
embarque Não ia
perdoar, não. Também não era pecado pra ser perdoado. Foi sacanagem. Isso
ninguém esquece. Ela me sacaneou, puxou meu tapete. Queria num dia, noutro
não queria mais. Exatamente assim: surtava, desmanchava tudo, nem aí com o
próximo. O próximo estava distante. O celular
tocou às onze e meia da noite. Eu acertando o relógio. Eu com a mochila
pronta. Eu com o tesão na alma. Eu no voo 4054 para os braços
dela. —
Oi? — Oi...
então, olha, temos um probleminha. Fui num show ontem à noite, conheci um
menino e a gente transou. Ele está em casa. Então, não fica legal você
vir. Foi assim. O
chão abriu e o coração ficou roxo. Um garotão na parada. Dor da porra,
indignação e mala desfeita. Assim, tudo foi para o inferno: as palavras e
qualquer sentimento que tive um dia por ela. Mais
nada. A dor da
rejeição não durou mais que 24 horas. Uma mulher apaixonou-se por mim no
jogo de bilhar: 42 anos, simpática e cheia de querer cozinhar em casa.
Aquilo veio na hora certa, salvou-me por um mês, dois meses, quatro meses.
A vida corria solta nas minhas veias, eu feliz na minha rotina. Tanta
coisa boa rolando. Amigos. Festas. Colesterol controlado. Rim e fígado
filtrando tudo. Que bom. Já nem pensava nessa história. Mas lembrava de
vez em quando, um foco embaçado. Ontem abri
meu e-mail: susto e calafrio. Aquele nome na minha caixa de entrada:
"preciso conversar com você". Vadia,
vagaba, não venha zonear minha paz de novo, quer falar comigo, o quê? O
que, meu Deus?! Será que pegou alguma doença e vai se matar? Vai ver que
foi isso. Daí lembrou das boas trepadas que tivemos e veio pedir perdão.
Mas ia me contar isso pra quê? Pra aliviar. Ela é cheia de culpa mesmo,
culpa porque trepa, culpa porque não trepa. Tão ruinzinha da
cabeça. "Preciso
conversar com você, estou corroída de remorso". Corroída de
remorso o caralho. O garotão não comia direito e ela queria recaída
comigo. Veio comer na minha mão. E me chupou
com toda a culpa desse mundo. Funcionava no remorso. — Pronto,
agora vou te levar pra rodoviária. Tá perdoada. out OUTambém: OUTuabres OUTuvens OUTuficas OUTravez
Neusa Doretto. Atriz e dramaturga (EAD/USP). No teatro, trabalhou com Renata Palottini, Fausto Fuser, Neide Archanjo, Guarnieri, Lourdes de Moraes e Teresa Aguiar. Paralelamente, mantém atividade literária em jornais como Diário de Sorocaba, Diário do Povo de Campinas, Revista Vivere e Boletim de Artes Plásticas. Como orientadora cultural, trabalha com projetos ligados ao teatro e de incentivo à leitura, apoiados pela Secretaria de Cultura de Campinas, desde 1991. Dirige o "Teatro Falado", de incentivo à leitura dramática, desde julho de 2007, trabalhando textos e poemas da literatura contemporânea. Escreve os blogues Poesia Rápida, Sinceridade Brutal e Poema Curta-Metragem, que edita.
![]()
é cor de rosa choque Tomou banho, comprou pão, presunto, vinho. Alimentou seu gato, ligou pra amiga, chorou por conta do namorado, regou as plantas. Mas não apalpou o seio? A vida é curta. O câncer é uma ameaça que não escolhe tempo. Apalpar-se tem que virar rotina, senão logo, logo, a vida fecha a cortina. Tomou banho, apalpou os seios, comprou pão, presunto...
Rosa Pena (Rio de Janeiro/RJ). Escritora, professora e administradora de empresas. Publicou PreTextos (Rio de Janeiro: All Print, 2004), Ui! (Rio de Janeiro: Bagatelas!, 2007) e Tarja Branca (Rio de Janeiro: All Print, 2010). Mais aqui.
» Imagens
Mercedes Lorenzo. Fotógrafa
paulistana. Atua comercialmente há três anos, tendo
em seu currículo trabalhos
como books, ensaios fotográficos, still para publicidade e trabalhos
autorais. Teve suas fotos publicadas nas seguintes
revistas digitais e portais
culturais (online): Germina —Revista de Literatura &
Arte (2011), Revista Diversos
Afins (2012), Revista Ellenismos (2012) e Revista
Kalango (2013). Em 2013,
publicou livro de fotos e textos seus: Impressões
Digitais para um
Olhar Analógico, pela editora PerSe (que disponibiliza espaço
para novos autores com
impressão sob demanda). Alguns trabalhos, bem como
o link para o livro, podem
ser vistos em seu website: www.mercedeslorenzo.com. E
fotos recentes em seu flickr: www.flickr.com/photos/95945316@N02.
![]()
|