edição 43 | dezembro de
2010
3 poemas
shakti
A
deusa mãe
habita
os templos do corpo
ergue-se
flamejante
a
cada sussurro
de amor
ofegante.
E
fazendo sua corte
dança
tândavas
de
vida e morte,
fulgurações
de Shiva,
seu
amante.
vestes
Espinhos
de rosas
Sobre
meu corpo
Doces
aromas
Em
tecido carmim
Visto-me
da dor
Cosendo-me
por fora
Minhas
dobras
do
interior
Tinjo-me
rubra:
pétalas
e peles.
Falta-me
a flor.
na
superfície
O
olho aberto não vê
de
propósito
o
rosto marmóreo:
sopro
sem ar.
Habitava
o contrapelo
do
apego
Tinha
pedras na voz
E
quebrava vidraças
quando
esganiçava
Dentro
de seu sonho
as
amoras escorriam
sangue pelas calçadas.
Ângela Vieira Campos nasceu em Beagá. É professora e pesquisadora das áreas de literatura, cinema e outras artes. Autora dos e-books Canções dos Corpos (2009) e LONLYness (2010). Transita pelo CEFETMG-UFMG-UFJF e pelos demais espaços de ressonância da outra voz poética.
3 poemas alma
obscura
—
Saia daqui!
Ouço
uma voz dentro de mim.
E
ela é forte, máscula, dominante.
Abaixei
a cabeça resignada.
Mas
como sair de mim?
—
Não vê que está escuro?
E
só por isso não colocamos a placa de Não Perturbe na
Porta.
Queremos
ficar sós.
Se
vira: saia de si,
Grite,
enlouqueça,
Perca
a cabeça.
Só
não preste atenção
Em
seu interior.
E
era verdade.
Estava
frio, estava escuro.
Um black out em
mim.
Tomei
coragem e virei a primeira dose de tequila.
E
aos poucos fui saindo
De
fininho.
pôr-de-pássaros
Eu
fui e ela não estava.
Fiquei
inútil
Devido
ao estado da sua ausência.
Como
uma chave
Sem
fechadura,
Como
uma parede velha
Sem
ranhura,
Como
uma boa ideia
Numa
cabeça dura.
Incompleta,
instável.
Eu
estava e não estava,
Devido
à promecência toda
Que
ela fez quando marcamos de ir.
— Eu vou com os pássaros — me disse — No
primeiro pôr-do-sol.
Sem
falta.
Aconteceu
que os pássaros chegaram sem ela.
Eu
me sentei embaixo da grande arvore.
Estava
sozinha e ausente de mim.
Nada
existia ao redor.
Eu
sem volta.
O
sol se pôs de todo
Quando
eu percebi, enfim,
Que
ela, sim, tinha vindoindo com seu jeito mágico
E
que eu ainda estava confusa com sua passagem rápida.
Numa
catarse veio a verdade pra mim:
É
que morrer, era assim.
em
comparação
A
macumba dizia pra plantar feijões nos olhos do gato
Antes
de enterrá-lo no quintal.
Vingança
ou riqueza,
Amor
ou beleza,
Cresceriam
com os feijões fortalecidos com os miúdos do gato.
Olhei
o gato ronronante
Enquanto
minha mão deslizava por ele, relaxada.
Meus
desejos eram tantos,
Meu
gato era um, apesar das sete vidas.
Fiquei
pensante se enfiava a faca no pêlo macio
E
satisfazia meu egoísmo,
Trocando
minhas miudezas por seus miúdos.
Mas
o gato me mandou mensagem ao sorrir os olhos brilhando e verdes
miantes.
Decidi
que era demais trocar sete vidas por detalhe da minha
uma.
Guardei
a faca, botei o gato no sofá e peguei uma caneca de
café.
Por
via das dúvidas guardei o livro de macumba na
estante.
Vai que dia desses o gato pode não falar pra mim...
Claudia Gomes nasceu com os lábios arroxeados de asfixia. Quando sua mãe teve as primeiras contrações sua avó não deixou que ela fosse para o hospital dizendo que as dores de parto eram "virada de lua". Daí ela nasceu assim, acompanhada da morte. Os pais dela achavam que o mundo era muito perigoso e ela cresceu trancada em casa, tendo somente livros por companhia. Quando seus pais a libertaram da bolha (que era como ela se sentia trancada em casa), o mundo era completamente diferente do que ela tinha imaginado. Ela entrou em depressão, achou que essa hipocrisia toda não valia a pena ser vivida e tentou chamar a morte tomando um coquetel de remédios. Só conseguiu uma amnésia. A sua paixão pelos livros não a tornou uma bibliotecária porque tem alergia a poeira. Uma alergia horrível, com direito a espirros, inchaço, lágrimas e manchas vermelhas. Devido a impossibilidade de virar bibliotecária, resolveu virar escritora, a parte mais difícil, em se tratando de ficar perto dos livros. Hoje ela escreve, imagina muitas coisas e olha a vida passar pela janela. Gosta de crianças e árvores e sabe que a morte anda longe, só vai chegar na hora certa. Mais: http://poesiaaosgritos.blogspot.com.
alguns poemas
envolto
por cerca elétrica
Lâminas,
pontas, estrelas de abismo
Chão.
Guerreia
com a noite, suporta exausto
Aguenta
a nefasta solidão.
Espectador
de farpas, explosão.
Seccionado,
metade.
Pulsa
o necessário.
Não
chama por nomes.
Envolto
por cerca elétrica.
*
Minha
casa
fica
nua
muda
nos
dias do
adeus.
quebra
regras
impõe
desejos
desestrutura
as
vigas
de
mim.
*
Minha
música
é
minha manta
coberta
de estrelas vagas
calcanhar
tolo que anda
por
muitas e mais calçadas
Todos
andam à escuta
vesti-la
é mesmo que nada
*
é
que as horas
não
me são
suficientes.
elas
vêm
pintam
meus dedos
fecham
meus olhos
e
o sono
não
chega.
é
que as horas
trazem
de
volta
o
tempo
que
nem houve.
drag-queen
Teu
nome soa
ecoa
em
meu ventre.
Meu
corpo sabe
teu
reino
é
esse.
Dorme
que
o dia
começa
e
teus sonhos
enchem
a
noite.
0
(zero)
o
homem caminha
por
entre
nuvens
e
círculo
sabe
de sua rota
olha
o éter —
o
eterno retorno —
corre
o risco
de
seguir
o
caminho
desconhecido.
*
morte
melhor
para
que o corpo
permaneça
entreaberto
para
que a alma fique —
eternidade
—
nada
é entristecedor
meu
nirvana é o
caos
Julia Larré. Poeta, vive em Recife/PE.
conto-colar "suicídio", de adriana
versiani
3 contos canção
em trezenas
Dispa-me
no escuro. Em disparate do absurdo. Sangra em minha boca de amor e fé. No
escuro nada vejo, mas sinto em lampejos o que posso alcançar. Mapeio em
linhas transversais seu corpo que me quer. Corpo do homem cuja fera é tão
cega que a ausência de luz não faz corar. E eu me alegro tenra de temor
por não ver e por querer tão completamente sem razão sua mão sobre a minha
em toda escuridão. Roubaram-me a visão e o dia é escuro e é triste e quase
negro de pavor. Eu amo tanto e choro em pranto e tateio em busca da
criatura que me rodeia e me faz abrir a vida em flor. Que será dor? Que
será cura? Que será luz para a mulher que enfim enxerga o nocivo efeito de
um homem sem amor?
adormecidos
Engraçado
como tem gente que sente falta de si mesmo. Saudade vazia que nem mesmo o
espelho do banheiro consegue acalmar. É uma sensação de ausência. Essa
gente vive a procurar sinais que provem a existência, o violento
transformar da alegria em tristeza, o acordar do tempo e a natureza que se
faz assumida trem da vida e leva todos nós. É como se sentir anestesiado.
O corpo existe, mas falha a voz e a verdade não passa de um contratempo.
Como provar que ainda se está ali? Na sala de estar, no quarto do filho,
na casa de amigos? Como voltar a se sentir vivo? Tonalizar fios brancos,
enfeitar a casa para um bando e fazer digno o realçar das incertezas? Não
há nada mais triste do que a busca de si mesmo e ver que tudo se foi. Já
se partiu, corpo ausente e agora o ser que habita a gente não passa de uma
obra decadente que o tempo esqueceu de enterrar. Melhor viver logo o dia
de aniversário e se deixar envelhecer. A perda maior é o esquecer de si
mesmo. A gente se esquece no rosto de alguém, vivendo outra vida, lavando
calçadas ou apagando marcas, cauterizando outras dores enquanto há fome de
tanto e por tudo que se sente. A gente precisa viver. À tortura ou à plena
felicidade absurda. É bem melhor que se viva. Antes mesmo que o cenário
mude e a saudade se torne moribunda. Não há saudade maior do que essa que
a gente sente de si mesmo. A gente, de repente, se torna o produto com
prazo vencido.
do
chapéu à ninharia
Ao requebrar dos quadris de todo dia, carrego minhas quinquilharias. Coisas pequenas que só a mim dizem respeito. Uma foto dele, da família e o chapéu que compramos em nossa viagem. A única. Carrego também, por pura sorte, minha lucidez e zombaria. Dizem que nada se leva dessa vida. Então não acumulo. Vivo tudo. Até os pormenores. Entretanto, se existe algo que eu faço questão de guardar, são os restos que ele deixou para trás. As miudezas de um homem somente sua mulher é capaz de retesar. Não era meu marido. Nunca ousou me apresentar ao público. Mas era eu quem o tomava de conta. Tomava aos goles aquele homem que hoje morre. Mas não é de morte morrida, como dizem. Decidiu casar-se de novo. Deixou a mulher que há tanto o conduzia por esta vida, largou os filhos e foi morar com a outra. E que não sou eu. Eu era apenas uma parte avulsa de suas estripulias. Ele costumava dizer que me amava e sempre me presenteava com coisas tão simplórias. Pequeninas. Nada se equivaliam ao amor que eu sentia. Eram jóias falsas, porta-copos, aventais de cozinha. Que mulher pode se contentar com tal presente? Na época, em plena paixão, eu gostei. Trajei o avental em uma de nossas noites de loucura. E agora nada tenho. A não ser o sentimento de ser pequena com relação ao mundo que ele ostenta. Poderia me matar e escrever carta culpando o homem. Mas seria ridículo para mim por ter sido deixada pelo homem a quem devotei anos de minha juventude acreditando que, um dia, ele seria meu. Hoje sinto a vista embaçar só de pensar que ele esteve comigo, que eu me deixei ser deste homem diminuto, pequeno e avarento que hoje casa na Igreja de São Bento e leva ao altar outra ninharia fêmea em meu lugar. Sinto muito ao dizer que joguei minha vida fora e me tornei vulgar.
Letícia Palmeira é graduada em Letras com Licenciatura em Língua Inglesa e suas Literaturas pela Universidade Federal da Paraíba. Nasceu na cidade de São Paulo, onde passou boa parte de sua infância e agora reside em João Pessoa, cidade em que leciona Língua Inglesa na rede privada de ensino. Cronista e contista, trabalha com prosa poética. Escreve os blogues Afeto Literário e Lírica Subversiva. Publicou Artesã de Ilusórios (EDUFPB - 2009).
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