edição 43 | dezembro de
2010
Ela fazia aquela coisa com o isqueiro. Riscava, esperava um pouco, fechava. Era um pouco mais assustador no escuro em que nos encontrávamos. Acho isso meio irritante, eu disse. Você nem fuma e anda com essa porcaria o tempo todo. A resposta dela foi riscar, esperar um pouco, a chama como que borrando o espaço ao redor, e depois fechar. Eu esperei você aqui a noite inteira. Você demorou demais. O que foi aquela conversa mais cedo? Aquelas coisas que você disse e tal? Pressenti que ela ia fazer de novo. O braço direito se erguendo no escuro. Adivinhei onde estava e tomei o isqueiro dela. Não esboçou reação. Chega dessa merda. Ela, então, virou as costas para mim. Como se estivesse pronta para dormir. Estiquei o braço esquerdo até o interruptor do abajur. As costas dela. Acho isso meio irritante, repeti. O que você queria? Você não fuma. Por que anda por aí com esse troço? Choveu a noite inteira. O dia amanheceu fechado. Precisei acender a luz do quarto para achar minhas peças de roupa espalhadas pelo lugar. Você não vai tomar banho?, foi a primeira coisa que ouvi ela dizer em quase vinte e quatro horas. Eu já tinha vestido a calcinha e o sutiã. Fiquei olhando para ela naquela semiescuridão, mal a enxergava deitada ali na cama, inteiramente descoberta. Que horas são?, perguntou. É muito cedo? Não, respondi. É quase meio-dia. Tirei a calcinha e o sutiã. Ela se levantou e foi até a janela. As persianas já estavam abertas. Ficou olhando a rodovia, o movimento no posto mais abaixo. Eu nem sei onde a gente está. Sorri: E como é que você chegou até aqui? Você vai me devolver o isqueiro? Não sei. Quando a gente for embora, acho. Estiver se despedindo. Por quê? Ela se virou, olhou para mim. Eu me sentei na beira da cama. Porque ele não é meu. Mas sempre que a gente se vê você está com ele. Eu sei. Mas ele não é meu. Ela atravessou o quarto, entrou no banheiro. Ouvi quando ela levantou o assento do vaso. Tenho que voltar antes de anoitecer, ela disse. Não quero que ele desconfie. Não quero que ele fique me enchendo como da outra vez. Levantei-me, fui até a porta do banheiro. Ela estava sentada. Entra logo e fecha essa porta, pediu. Eu entrei e fechei.
virando a vida
passei tanto tempo colecionando suas ausências que acabei juntando seus pontos, vírgulas e reticências ao meu enorme acervo de solidão.
quando, porém, minha caixa de preciosidades ficou insuportavelmente cheia, joguei tudo fora: ele, minha dor e seus silêncios.
resolvida a questão, recomecei do zero:
outro personagem. uma nova coleção.
antítese
o barulho da gataria que se amontoa no telhado da minha casa é proporcionalmente inverso à ocorrência de som entre as quatro paredes do meu quarto: sempre vazio.
4 poemas
demmens
ii-
você
me pegava as mãos quando eu menos esperava. e eu
nunca
via mais que um dostoiévski em teus
lábios.
teus e não seus.
o
que diziam nossas veredas bifurcadas? uma senda
entre
teus nimbos-nimbos e meus cirros. branco, breu.
caminhávamos,
ladoalado caminhávamos e ria
que
eu poda cair. e eu ria que podia
me
segurar. e ríamos de quem
nos
chorava o medo.
eu
podia te ver chegar. você dizia
uma
saudade e seus braços cruzados
outra
coisa, que eu não podia
entender.
seus lábios, seus e não
teus,
são cerrados pra o que não
é
contradição.
eu
chorava. eu acordava com a media
luz
e chorava a sua sinceridade, não querer
e
querer é sempre a mesma coisa. eu chorava
o
seu gozo em minha língua, os desenhos das tuas mãos
que
tanto falavam de mim, um brinco
perdido,
meus cabelos emaranhados no edredon.
aí
você queria me ver nas esquinas dos mais largos
bulevares,
que seria um perigo eu me perder
em
teu buraco negro.
e
tomamos caldo. você verde
eu
de cebola. torradas. e eu não podia
me
embriagar do chileno e seco
vinho
que você fazia questão de me pagar. eu não
me
embriagava e te via partir no metrô, ônibus,
vontade.
nossos lábios lábios se tocavam quase
-sem-querer.
nossas mãos não queriam se
desgrudar,
mas não eram nossos os nossos
corpos
que não se queriam e eu te via
partir
e você não me via ficar.
e
quando eu parti você me mandou
girassóis
mortos preu me contentar e eu
mijei
sobre eles, pensando em tua namoradinha
inglesa.
e eu sou mediterrânea — africana.
depois,
faminta da tua ausência e miséria, comi, tua
lembrança,
intratável.
miudezas
glória,
desde
que seu nome virou sinônimo de saudades
deixei
de jogar boliche.
nunca
mais fui à cozinha.
nem
comi laranjas.
em
lugar de carta
choro
meus dedos, que cheiram os teus.
de
saber tuas unhas de cor, salteadas.
fecho
os olhos de insônia, ânsia, escuro.
que
passar as noites ao teu lado,
saiba,
foi perene verdade.
em
lugar de poesia
então
eu cruzo as pernas com essa cara falsificada de foda-se.
chiarescuro.
entenda.
aquela
ribanceira ficou toda assoreada e era tão escuro e tanto vento e tamanha
solidão, que montanha despenquei forte escorregada, esses malditos sapatos
de plástico roxo. nãnã de lama.
e
você não estava lá pra me estender o braço esquerdo como bem-casadinho
numa igreja de santa clara.
entendo.
suas
pernas lazarentas e essa cara falsificada de te venero.
chiarescuro.
e
não estou numa igreja de são francisco pra te cuidar.
amor,
ateu amor.
|
|