edição 42 | setembro de
2010
deslembrança
Há dias que não deliro.
Tenho mãos e pés enrugados de tanta falta de sonho. Fecho os olhos e só
consigo enxergar o negrume de uma noite ruim. A memória resolveu falhar
onde eu mais a estimava: Perdi minha coleção de
saias. Quantas vezes voltei de um
dia que parecia o negrume de uma noite ruim e ao fechar os olhos pensava
que não fazia mal, daqui a alguns minutos encontraria minha queridas e
poderia passar uma noite ainda melhor que a anterior. Em meio àquelas pernas que
encontrava pelas calçadas, meus olhos sempre roubavam as saias de uma
moça, ou duas, ou três... que ficavam na cabeça, balançando ao vento das
horas que passavam. E ao deitar na cama, logo o negrume sumia para dar
espaço aos meus amores que enchiam a cama e balançavam ao vento da noite
que acontecia. E me sufocavam e criavam pernas que se esfregavam em minhas
pernas e coxas que roçavam em meu rosto e fundos que se escondiam e se
exibiam em meio às flores e infinitas cores que compunham seus
tecidos. Os dias passavam e tive que
dormir em uma cama maior, aquela já não cabia para tantas lembranças. Nos
últimos tempos não fazia mais nada que não fosse sentar em um banco e
procurar passantes que vestissem o requisito de minha felicidade. Não nego
que os dias também se tornaram agradáveis e que eu pensava até em
casamento. Imagine como seria bonito
(dessa vez não mais na cama, mas na praia): centenas de saias brancas ao
meu redor e todas elas com uma aliança dourada do dedo do pé. Saímos do
altar e corremos pela praia e seus pés ficam sujos de areia, mas os anéis
continuam brilhando em cada uma delas e pulamos todos no mar e não
voltamos nunca mais. Eu, as saias, a água e o infinito. Fiquei tão feliz
com a ideia, que durante o dia todo esqueci que buscar novos amores.
Imagino que devam ter-se zangado, pensando que ao invés de lembrar de
mais, havia esquecido delas. Como me arrependo! Agora, sempre que fecho os
olhos, não consigo lembrar de mais nenhuma de minhas amadas. Nenhuma
estampa, nenhuma cor. Só a noite e seu negrume. Não adianta mais olhar
passantes, sonhar acordado ou o que for. Elas se foram, pularam no mar sem
mim enquanto eu fingia viver mais um dia. Desde então, sonho apenas com o
infinito vazio que são meus olhos cerrados e vivo apenas o infinito vazio
que são meus olhos abertos. As mãos e pés enrugam, os olhos afundam, a
cama diminui e daqui a pouco eu não existo mais. Nem mar, nem saias, nem
infinito e nem mim. Fim.
2 poemas
ovo de
phoenix Desabei
desfiz em
cacos. Vaguei pelo inverso do
tempo retalhei em
farrapos. Fui onde o som não
chega ouvi o quanto
grita o
silêncio. Onde a luz não
alcança percebi a falta
que o brilho
faz. Vi-me abandonada
por quem realmente
importa. Pedi socorro
e pequei por
omissão. Dei voz a cada pedaço de
alma que
encontrei e contei a um por
um, minha história em
capítulos. Se pude ler-me por outras
línguas, sucumbi também ao peso
de cada palavra
dita. Desci,
finalmente, ao inferno que
esperei. Verdades,
mentiras, medos, virtudes
se
aglomeraram em caos
incandescente. Buraco
negro. Um universo está prestes a
surgir... o voo do
dragão À massa
incandescente condensada em
si uniu-se o
último "Sou sim, e
daí?" Senti vontade de
chorar. Não havia mais por
quê. Desenterrei-me
do
ego-avestruz Subi o mais que
pude. Ainda preso ao
todo. Defeito,
Virtude. Acima daquela
massa era todos, era
um. Pulsavam em mim
todos os
pulsos A história do
universo compreendi em um
segundo. Amei feito
louco a jornada até
ali. Desembainhei-me da
rocha. Era o Rei e
Excalibur. Uma explosão jamais
sonhada lançou-me de volta para
casa. Cheguei num rasto de
luz. Que levou até a mim um por
vez. Ao fim da noite, contou-se
três. Incenso, ouro e
mirra.
alfa, beta, gama Fulano fora fome, frio,
furor e furacão. Beltrano, benfazeja brisa, brilho borrado, breve bocejo.
Delicadas dores, doces delírios, desarrumados desejos. Marés, murmúrios,
mormaços. Gestos galantes, gemidos generosos. Ela, espoliada, elo
esquecido entre eles. Seria Sicrano, se sobrassem
sonhos...
o sino outro
pequenino na guirlanda natalina, e
numa delicada flor com formato parecido. Mas
o que mais ouvia badalar era
aquele oculto entre suas coxas.
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