edição 40 | maio de 2010
temas:  um verso de Ana Cristina César | mesa de bar | jardineiro, flores, jardim

 


©audrey

 

 

 

dancing queen

lílian maial

 

 

Da mesa de bar, enquanto espero, sinto o faro dos homens, os tolos, os solitários lobos desdentados, leões grisalhos, matilha de infelizes.

 

Não há ponteiros no relógio. Vítima e vitrine, sou o tempo e todos os dias que ainda não fui.

 

Mais um gole. Conversas e espreitas. Nada do que entendo é real. Fagulha de existência, num imenso universo de mim. Tempo de me perceber e a outros rostos. Vejo um desfile de agonias, abafadas pela música alta, disfarçadas pelos níveis de álcool no sangue, dribladas por torpes galanteios sem intenção de afeto.

 

Sangue! Eu quero o sangue! Quero o vermelho da paixão, a ingenuidade dos olhares plenos, a delicadeza dos toques preocupados, a singeleza de pedir por carícias sem palavras.

 

Carne! Sim, também quero a carne! Mas não essa carne de liquidação, de ponta de estoque, mais barata por pequenos defeitos de fábrica. Quero a carne fresca, tenra, rosada. A carne regada a vinho, o vinho que vem da sede de entrega e cumplicidade.

 

Alma! Uma alma limpa. Uma alma desse mundo. Uma alma que me tomasse pela mão e me fizesse esquecer o tempo.

 

Aqui, nessa mesa de bar, enquanto espero, sinto a solidão de purgatório, a que os homens se impõem. Uma pena, um autoflagelo, uma confusão desnecessária. Bebe-se muito, come-se muito, dança-se muito, fuma-se, cheira-se, pica-se muito, faz-se muito sexo, faz-se muita ironia, muito desdém. Mas faz-se pouco, doa-se pouco, fala-se pouco, ouve-se pouco.

 

Não há folhinhas em meu calendário. Os dias passam de trás para frente, de frente para trás, ao som de rock, blues, techno. Boleros, tangos, minuetos. Minha vida seria um soneto, um terceto, uma trova. Por ora, um verso inverso, uma prosa, uma drusa.

 

Já me sinto confusa, talvez do vinho que não fui bebida. Talvez da espera ao longo da vida.

 

Vida... Longo...

 

Não! É curta e passa, está passando, estou passando.

É quando o homem — de terno branco e pele negra — me sorri pérolas e me oferece a mão rochosa. Nele, o tempo é verso e prosa.

 

Levanto-me canção e bailo descalça, imersa em saudade. Danço a música que me orquestra. Deslizo em tapetes de metas, planos e vontades. Decido doar o relógio e o calendário. Ouço as notas que ninguém percebe. Ali, num segundo, eu sou eterna.

 

 

 

Lílian Maial (Rio de Janeiro-RJ). Médica, escritora e poeta. Publicou Enfim, renasci, seu primeiro livro de poemas, em 2000, e tem participação em dezenas de antologias desde 1999. Integrante ativa do MIP - Movimento Internacional Poetrix. Filiada à REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras e à APPERJ - Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. Consulesa do Rio de Janeiro para o movimento Poetas Del Mundo. Tem seus trabalhos divulgados em inúmeros sítios nacionais e internacionais, e é colaboradora de revistas eletrônicas brasileiras, portuguesas e espanholas. Mais em Lílian Maial, Poetrix, Sonetos e Poética Digital.

 

 

 

 

 


©audrey

 

 

 

 

um homem murcho

maria josé silveira

 

 

Parece que ignorância agora virou virtude. O cara chega e diz "Desculpa minha ignorância" e acha que fica tudo resolvido. Não fica não. Do meu ponto de vista não fica não. Ele vai ter que fazer mais do que isso. Vai ter que consertar as coisas. Afofar a terra. Adubar. Comprar mudas novas. Sim, senhor, mudas novas. Do jeito que está, a casa desvalorizou. Não tem nada mais feio que um jardim sem flor. É que nem um morto na sua porta. Se ele deixou a roseira morrer, que a ressuscite. Não sabia que o jardim faz parte da casa? Que faz parte do contrato cuidar do jardim tanto quanto da pintura? A desculpa que ele deu é que a mulher é que sabia dessas coisas e foi embora. Que ele ficou sem saber o que fazer. Se não sabia que perguntasse. Que se informasse. Não tem nada mais feio que um homem caído assim que nem um trapo. Todo mole. Como se o mundo também tivesse caído junto com ele. Que é isso? O cara tem que seguir sua vida. Arrumar outra mulher. Ou viver sozinho mesmo, qual o problema? O que não pode é ficar assim. Ver a roseira secando e não regar. Só porque foi chifrado? Ora, dê-se ao respeito! Que que as pobres das rosas tinham com isso? E viu só a cara dele quando falou que era das roseiras que a mulher mais gostava! Claro. Eu me lembro do dia que mostrei a casa pra eles. Casal do tipo nem jovem nem velho. Ela bonitona, sacudida. Ele, desse jeito mesmo, um pouco melhor, mas não muito. Vi logo que era bicho-preguiça, isso, a bem dizer, parece que a gente vê no corpo. No jeito de se carregar. Porque se você tem preguiça de carregar seu próprio corpo, do que não vai ter? Mas ela foi abrindo o portãozinho e logo dizendo: Que beleza essas rosas! Foi quando eu soube que podia deixar a casa por conta dela. Que ela ia cuidar de tudo muito bem. Mal sabia eu que ia durar tão pouco tempo. Também, um homem desses, quem aguenta? Viu como ele estava? Barba por fazer, camisa sem passar, olhar pidão de cachorro sem dono, todo amarelado. Murcho. Pior do que um jardim sem flor é homem sem brio. Ter a coragem de me dizer com aquela voz caída: "Ela gostava mais das roseiras do que de mim". Claro. Como não ia gostar? Minhas roseiras davam mais felicidade a ela do que ele. Que eu sei bem como é esse tipo de homem que chega, bota o pijama, senta no sofá da televisão, liga no futebol, pede cerveja gelada, e reclama do jantar. Como se a mulher não tivesse acabado de chegar de um dia inteiro de trabalho que nem ele. Tive um marido desses, sei como são. E sabe o que vou fazer? Despejá-lo. O senhor é corretor das minhas casinhas pra cuidar dessas coisas. Pode esquecer das mudas. Não quero esse tipo de inquilino. Se do meu marido eu demorei, mas me livrei, por que não vou me livrar desse traste? Ele que vá curtir sua ignorância e frouxidão noutro lugar. Um homem desses não merece morar numa casa com rosas no jardim.

 

 

 

Maria José Silveira. Escritora e tradutora, é autora de vários romances, entre eles A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (com o qual recebeu o prêmio APCA de 2002 como Revelação), O Fantasma de Luís Buñuel, Guerra no Coração do Cerrado e Eleanor Marx, filha de Karl, história de uma suicida. É também autora de livros infantojuvenis. Goiana de Jaraguá, vive em São Paulo. No segundo semestre de 2010, publica seu quinto romance, Com esse ódio e esse amor, pela Editora Global.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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