edição 40 | maio de
2010
assis.to na
mesa do bar a
prosa (a)fiada tecida tramada
entre amigos ao
som dos risos e das piadas de
desopilar o fígado
crepúsculo
um
sino corta a pracinha hora
do ângelus naquela
conversa mole de
céu de mar de azul enquanto
o sol extrapola bebe
cerveja no bar a
lua fica lá fora a
caminhar pela areia com
sua saia de roda e
sandália rasteira
levianas não
as vi chegar ágeis
mariposas que
poisam nos bares nos
becos nas bocas o
sol quando apaga empurra
das casas uns
seres sem rosto derrama
nas ruas cheiro
de suor a
gosma da lesma deixada
no pátio parece
esperma e
escorre entre
as pedras
vagos sentei
minha ausência ao
lado da tua ausência ficamos
assim nós
dois sem ninguém num
banco de jardim
atrelados fui
ao porto ao cais de
bar em bar perguntei
ao mar à areia a
todas as ondas precisava
reencontrar-te destrocar
as nossas sombras ao
partires a minha te seguiu e
teu vulto insistente ainda
me ronda (não
consigo des_lindar-me das
lembranças)
deserto palavras
me exaurem quando
penso morrer à míngua brotam-me
versos como margaridas depois
da chuva mares
de areia viram
jardim
palacete nessa
casa tem cachorro ao
redor tem passarinhos tem
criança a correr solta na
frente tem um jardim nessa
casa tem conforto tem
pai tem mãe nãos e sins nessa
casa tem amor morador
imprescindível (nessa
casa tem malu carlos
eugênio e regina :
rua joão maximiniano sessenta
e um)
ana
c. me supre "abri
curiosa o céu" "uma
lâmpada queimada me contempla" "muda
feito uma coisa última" "demito
o verso como quem acena" "é
outra a
dor que dói"
de_floração
a
terra molhada exala
um perfume tão
próprio das fêmeas um
cheiro de coito e
dentro em pouco estará
inundada de
verdes de brotos de
intumescências
A quarta cerveja e ainda não é meio-dia. Uns petiscos do tipo que, depois, fatalmente voltarão à luz ligeiramente modificados, semi-digeridos. Eu vejo o futuro e ela, sentada ali na minha frente com a cara mais desconfiada e ressacada do mundo, não está nele. De certa forma, nem eu. Uma péssima ideia, ou uma sequência aterradora de péssimas ideias: primeira, ligar; segunda, encontrar-se; terceira, beber durante o encontro; quarta, transar depois de beber durante o encontro; quinta, voltar a ligar no dia seguinte e convidar para rebater. Eu não tinha sido muito legal com ela no ano anterior. O que é uma maneira eufemística de dizer que eu tinha ferrado com tudo, agido calhordamente, procurado por ela e insistido e feito ela se apaixonar e depois detonado a coisa toda e, ao final, coroado aquela grandimensa merda com um dar-de-ombros dos mais cretinos. Não foi por maldade. Eu gostava dela e depois não gostava mais. Eu estava sob o efeito de medicamentos. Eu estava assim fodida e meia, no olho do cu de um buraco negro psíquico dos maiores. Achei que ela pudesse me salvar. Eu sempre acho isso das pessoas, coitadas. E depois quem fica precisando de um salvador são elas. Quando eu resolvi entrar em contato com ela a fim de me desculpar por ter sido tão canalha fiquei surpresa com a resposta ao e-mail enviado: "Não te vejo da forma horrível como você se coloca. Só guardei lembranças boas". Uma santa. Daí que, em vez de deixar tudo por isso mesmo e celebrar o fato de ela, pelo menos ela, não me achar "horrível" e coisa e tal, caí na besteira de responder ao e-mail dela com um básico "ok, que tal a gente se ver?". Deu no que deu. Agora, as duas ali ressacadas e um filme sendo projetado na testa dela sobre tudo o que aconteceu e tudo o que voltará a acontecer enquanto bebemos uma cerveja atrás da outra como se buscássemos lá atrás e não adiante o porre do dia anterior. "Olha", eu começo. E ela: "Não. Vamos beber. Só isso". Não é uma ideia inteiramente ruim. Ela fica com os dois cotovelos sobre a mesa olhando o movimento na calçada defronte. "Não seria legal se tivesse um mar logo ali do outro lado da rua?" Acho isso bacana. Eu também sinto vontade de ver o mar sempre que bebo e digo isso a ela. "Não", ela retruca. "Não estou com vontade de ver o mar. Só estou dizendo que seria legal ter o mar ali na frente, do outro lado da rua." Olho para o outro lado da rua e há uma calçada com ambulantes circulando e pessoas apressadas e um ou outro pedinte. "Um espaço a menos pra gente ocupar", ela diz. "Seria bom, não seria?".
um
solo de trompete madrugada quase amanhecer
bar pouco recomendado um tanto kitsch cachorro de porcelana no balcão sofá
de brocado grená gasto e manco peixe empalhado boca aberta sobre a porta
do banheiro quadro de são jorge iemanjá de louça barata como vim parar
aqui por que sempre perco-me aqui é no que dá sair sem rumo noite
adentro com amigos nem tão amigos assim ou noite afora uísque barato
batom borrado gosto de sal grosso amargo na boca e esta coisa no peito
apertando aqui terminamos sempre sós e sem rumo todas as noites
perderam o prumo tanto tempo faz salva-se a música blues sopro trompete só
o blues caberia nestas noites azul-escuras obscuras por que retorno por
que finjo não doer e rio e bebo fumar não fumo um baseado às vezes com
joão joão toca violoncelo perdeu-se na solidão das noites como eu ah
essa dor esse cheiro esse incômodo esse tão imenso cansaço e volto sempre
sei porque volto finjo não saber não querer mas enquanto houver este solo
de trompete volto pelo beijo apaixonado do trompetista ao final da noite
de cada noite tão certo neste bar como o cachorro de porcelana e o sofá
grená manhãzinha
nem
dália nem mangueira (rosa
tampouco) só
um canteiro de marias- sem-vergonha
vermelhando
a areia
conversa de bar Não
gostava de companhia. Tirante alguns poucos amigos, que selecionava a
dedo, passava os dias sozinho, abancado a uma mesa de bar, a entornar
copos de cerveja. Um atrás do outro. Não sei onde comia. Nem se comia.
Nunca o vi pondo outra coisa na boca a não ser bebida e cigarro. Eu era um
dos tais "selecionados a dedo". Ou a "bêbado", diria melhor. Porque só
permitia sentar quem quer que fosse, depois da quinta garrafa. Jogava
conversa fora entre um gole e outro. Na verdade, não jogava nada fora.
Principalmente conversa. Que era a única mercadoria valiosa que possuía.
Ele a trocava pelo pagamento da conta. Ouvi-lo
falar uma hora, equivalia a ler certos filósofos, durante um mês. Quase
não permitia ser interrompido. Exceto quando a intervenção fosse curta e
viesse bem a propósito. Ou para esclarecer melhor certos detalhes obscuros
do raciocínio da sua embriagada consciência. Não
era raro acontecer de esquecermos compromissos. Tão fascinantes eram as
suas palavras. "O que é a vida, se não a morte a esperar, impaciente, para
devolver ao caos aquela ínfima porção de matéria, temporariamente
organizada? Estar vivo é um acidente da natureza que ela se empenha em
corrigir o mais depressa possível".Disse, numa certa ocasião em que já ia
me retirando. Voltei a sentar. "Ninguém "É". No máximo, "Estamos". Não
passa de presunção narcisista, portanto, dizer: "Eu
sou fulano". O mais sensato seria dizer como aquele ministro: "Eu estou
beltrano. Por enquanto...". "Viver
dói. E é dor que não se sente. Ou melhor, sente-se, sim. Mas não no
momento em que devia doer. É como dilacerar os lábios, anestesiados, com
os dentes. Por isso, a lesão pode ser maior do que a própria dor.
Caminhamos todos para o vazio primordial. A matéria só tem lógica enquanto
há vida. Ainda assim há quem diga que ela não tem sentido. A vida não é
eterna. Mas sentido, tem sim. Muito mais do que poderia esperar alguém que
a contemplasse do lado de fora. O único sistema lógico no universo é a
matéria viva. É incrível a existência dessa ordem. É quase perfeita, em
contraposição à desordem cósmica infinita. E, aparentemente, só existe no
planeta Terra. Por esta razão, há muito tempo deixei de me preocupar com
crises existenciais do tipo origem, finalidade e destino de quem vive.
Entre a curiosidade e o privilégio, escolhi o segundo".
"E
é nisso que consiste o grande mistério da natureza. A perfeição cósmica a
que alguns chamam Deus. Lamentar e temer a morte é tão ou mais absurdo
quanto ignorar e desvalorizar a vida...". De
repente, calou. Já sabíamos o que significava. Que havia chegado ao fim.
Que a partir daquele instante não diria mais nada. Que teríamos de pagar a
conta. E um de nós seria escalado para levá-lo pra casa. Ofereci-me como
voluntário. Estarei prestando benefício a um homem inteligente,
racionalizei. Na verdade, esperava obter alguma idéia original para o meu
próximo livro. Não pronunciou uma só palavra. Nem agradeceu quando o
ajudei a sair do automóvel e o deixei cair num catre imundo. Morava entre
quatro paredes apertadas. Sem reboco. Piso morto. Sequer instalações
sanitárias, dignas desse nome. No
dia seguinte, quando cheguei, já ia na oitava garrafa. "Escrever é o
melhor remédio para suportar a dor de existir. Encadear palavras, formando
idéias originais, é um prazer igual a poucos. É como edificar monumentos
de granito a partir de argila. Palavras não passam de porções de argila.
Quando não suficientemente depuradas e trabalhadas, são como torrões de
barro que se desintegram sob a chuva inútil dos pensamentos
banais." —
Então, por que não escreve? Perguntei. Ele
se riu. "Não escrevo porque tudo o que tenho para dizer já está escrito
dentro de mim. Melhor seria se tivesse perguntado: "Por
que não divulga as suas idéias?". Mas é justo o que
estou fazendo agora. O que é esta fala se não uma escrita dirigida a quem,
de fato, quer me conhecer? Prefiro compartilhar os meus pensamentos com
cinco pessoas que valham a pena, a ter uma vasta conversa escrita para
milhões... De traças. Ademais, estou sendo remunerado. A única coisa
material a que almejo na vida é essa cerveja que vocês
pagam". “Se
escrevesse, o que ganharia? Sei que alguns de vocês irão escrever muitas
das minhas idéias como se fossem próprias. Que mal há nisso? O
conhecimento jamais deveria
ser propriedade privada ou monopólio. Idéias não se vendem como se fossem
mercadorias. Pelo simples motivo de que elas também não foram compradas.
Cobrar por algumas delas seria como receber dinheiro em troca de ar. Pois,
do mesmo modo que o oxigênio entra pulmão adentro, elas se insinuam no
nosso cérebro. Aliás, o esforço é menor. Para o ar entrar nos pulmões
precisamos inspirar. Fazer força. O que não acontece com as
idéias". Um
dia não o encontramos. No outro, também não. Preocupou-nos. Fomos
procurá-lo no tugúrio. Estava só e mal podia falar. Sentia dores e falta
de ar. Não respondeu aos nossos cumprimentos. Achávamos que era pelo
cansaço. Insistimos em levá-lo a um hospital. Não disse que sim nem que
não. Mesmo muito cansado, começou a falar. "Vejam! Aprendam! Estão diante
de uma cena rara. A morte de um homem. Não estou dizendo que é rara a
morte de um homem. O que não é comum é as pessoas quererem assistir.
Porque isso lhes faz lembrar a própria morte. Lembrem o que disse. Estou
morrendo. Porém enquanto vivo tudo valeu a pena. Sou uma fração
insignificante de matéria. Mesmo assim, uma porção muito especial porque
enquanto vivi, esta porção, mesmo insignificante, fez muito sentido. Na
verdade, fui uma das raríssimas lógicas do universo. Um homem que diz que
sua vida não faz sentido não é digno de viver". O cansaço era cada vez maior. "Aprendam a morrer para aprenderem a viver. Pois uma coisa depende da outra. Só vive bem, quem sabe que vai morrer bem. Olhem para mim. Vejam que sinto dores e estou sem fôlego. Acaso percebem o menor sinal de angústia no meu semblante? E repetia: "Sou um privilegiado. O resultado de um acaso feliz e quase impossível. Como se tivesse tirado o prêmio maior da loteria do infinito. Quantos átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio existem no universo? Impossível sequer conceber. Pois os átomos e moléculas que formaram o meu corpo são o resultado desse sorteio... Agora volto para lá. Retorno para a desordem sem fim. Mas valeu a pena ter ganhado e gastado este prêmio...". E expirou.
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