edição 40 | maio de 2010
temas:  um verso de Ana Cristina César | mesa de bar | jardineiro, flores, jardim
 

  


©audrey

 

 

9 poemas

líria porto

 

 

assis.to

 

na mesa do bar

a prosa (a)fiada tecida

tramada entre amigos

ao som dos risos e das piadas

de desopilar o fígado

 

 

 

 

crepúsculo

 

um sino corta a pracinha

hora do ângelus

 

naquela conversa mole

de céu de mar de azul

 

enquanto o sol extrapola

bebe cerveja no bar

 

a lua fica lá fora

a caminhar pela areia

 

com sua saia de roda

e sandália rasteira

 

 

 

 

levianas

 

não as vi chegar

ágeis mariposas

que poisam nos bares

nos becos nas bocas

 

o sol quando apaga

empurra das casas

uns seres sem rosto

derrama nas ruas

cheiro de suor

 

a gosma da lesma

deixada no pátio

parece esperma

e escorre

entre as pedras

 

 

 

 

vagos

 

sentei minha ausência

ao lado da tua ausência

 

ficamos assim

 

nós dois sem ninguém

num banco de jardim

 

 

 

 

atrelados

 

fui ao porto ao cais

de bar em bar

perguntei ao mar à areia

a todas as ondas

precisava reencontrar-te

destrocar as nossas sombras

ao partires a minha te seguiu

e teu vulto insistente

ainda me ronda

 

(não consigo des_lindar-me

das lembranças)

 

 

 

 

deserto

 

palavras me exaurem

quando penso morrer à míngua

brotam-me versos como margaridas

 

depois da chuva

mares de areia

viram jardim

 

 

 

 

palacete

 

nessa casa tem cachorro

ao redor tem passarinhos

tem criança a correr solta

na frente tem um jardim

 

nessa casa tem conforto

tem pai tem mãe nãos e sins

nessa casa tem amor

morador imprescindível

 

(nessa casa tem malu

carlos eugênio e regina

: rua joão maximiniano

sessenta e um)

 

 

 

 

ana c. me supre

 

"abri curiosa o céu"

"uma lâmpada queimada me contempla"

 

"muda feito uma coisa última"

"demito o verso como quem acena"

 

"é outra

a dor que dói"

 

 

 

 

de_floração

 

a terra molhada

exala um perfume

tão próprio das fêmeas

um cheiro de coito

e dentro em pouco

estará inundada

de verdes de brotos

de intumescências

 

 

 

 

 

meio-dia à mesa

lucélia majistral

 

 

A quarta cerveja e ainda não é meio-dia. Uns petiscos do tipo que, depois, fatalmente voltarão à luz ligeiramente modificados, semi-digeridos. Eu vejo o futuro e ela, sentada ali na minha frente com a cara mais desconfiada e ressacada do mundo, não está nele. De certa forma, nem eu. Uma péssima ideia, ou uma sequência aterradora de péssimas ideias: primeira, ligar; segunda, encontrar-se; terceira, beber durante o encontro; quarta, transar depois de beber durante o encontro; quinta, voltar a ligar no dia seguinte e convidar para rebater. Eu não tinha sido muito legal com ela no ano anterior. O que é uma maneira eufemística de dizer que eu tinha ferrado com tudo, agido calhordamente, procurado por ela e insistido e feito ela se apaixonar e depois detonado a coisa toda e, ao final, coroado aquela grandimensa merda com um dar-de-ombros dos mais cretinos. Não foi por maldade. Eu gostava dela e depois não gostava mais. Eu estava sob o efeito de medicamentos. Eu estava assim fodida e meia, no olho do cu de um buraco negro psíquico dos maiores. Achei que ela pudesse me salvar. Eu sempre acho isso das pessoas, coitadas. E depois quem fica precisando de um salvador são elas. Quando eu resolvi entrar em contato com ela a fim de me desculpar por ter sido tão canalha fiquei surpresa com a resposta ao e-mail enviado: "Não te vejo da forma horrível como você se coloca. Só guardei lembranças boas". Uma santa. Daí que, em vez de deixar tudo por isso mesmo e celebrar o fato de ela, pelo menos ela, não me achar "horrível" e coisa e tal, caí na besteira de responder ao e-mail dela com um básico "ok, que tal a gente se ver?". Deu no que deu. Agora, as duas ali ressacadas e um filme sendo projetado na testa dela sobre tudo o que aconteceu e tudo o que voltará a acontecer enquanto bebemos uma cerveja atrás da outra como se buscássemos lá atrás e não adiante o porre do dia anterior. "Olha", eu começo. E ela: "Não. Vamos beber. Só isso". Não é uma ideia inteiramente ruim. Ela fica com os dois cotovelos sobre a mesa olhando o movimento na calçada defronte. "Não seria legal se tivesse um mar logo ali do outro lado da rua?" Acho isso bacana. Eu também sinto vontade de ver o mar sempre que bebo e digo isso a ela. "Não", ela retruca. "Não estou com vontade de ver o mar. Só estou dizendo que seria legal ter o mar ali na frente, do outro lado da rua." Olho para o outro lado da rua e há uma calçada com ambulantes circulando e pessoas apressadas e um ou outro pedinte. "Um espaço a menos pra gente ocupar", ela diz. "Seria bom, não seria?".

 

 

 


©audrey

 

 

1 miniconto, 1 poema

márcia maia

 

um solo de trompete

 

madrugada quase amanhecer bar pouco recomendado um tanto kitsch cachorro de porcelana no balcão sofá de brocado grená gasto e manco peixe empalhado boca aberta sobre a porta do banheiro quadro de são jorge iemanjá de louça barata como vim parar aqui por que sempre perco-me aqui  é no que dá sair sem rumo noite adentro  com amigos nem tão amigos assim ou noite afora uísque barato batom borrado gosto de sal grosso amargo na boca e esta coisa no peito apertando aqui terminamos sempre  sós e sem rumo todas as noites perderam o prumo tanto tempo faz salva-se a música blues sopro trompete só o blues caberia nestas noites azul-escuras obscuras por que retorno por que finjo não doer e rio e bebo fumar não fumo um baseado às vezes com joão joão toca violoncelo perdeu-se na solidão das noites como eu  ah essa dor esse cheiro esse incômodo esse tão imenso cansaço e volto sempre sei porque volto finjo não saber não querer mas enquanto houver este solo de trompete volto pelo beijo apaixonado do trompetista ao final da noite de cada noite tão certo neste bar como o cachorro de porcelana e o sofá grená

 

 

 

 

manhãzinha

 

nem dália nem mangueira

(rosa tampouco)

 

só um canteiro de marias-

sem-vergonha

 

vermelhando a areia

 

  

 

conversa de bar
marilena soares

Não gostava de companhia. Tirante alguns poucos amigos, que selecionava a dedo, passava os dias sozinho, abancado a uma mesa de bar, a entornar copos de cerveja. Um atrás do outro. Não sei onde comia. Nem se comia. Nunca o vi pondo outra coisa na boca a não ser bebida e cigarro. Eu era um dos tais "selecionados a dedo". Ou a "bêbado", diria melhor. Porque só permitia sentar quem quer que fosse, depois da quinta garrafa. Jogava conversa fora entre um gole e outro. Na verdade, não jogava nada fora. Principalmente conversa. Que era a única mercadoria valiosa que possuía. Ele a trocava pelo pagamento da conta.

 

Ouvi-lo falar uma hora, equivalia a ler certos filósofos, durante um mês. Quase não permitia ser interrompido. Exceto quando a intervenção fosse curta e viesse bem a propósito. Ou para esclarecer melhor certos detalhes obscuros do raciocínio da sua embriagada consciência.

 

Não era raro acontecer de esquecermos compromissos. Tão fascinantes eram as suas palavras. "O que é a vida, se não a morte a esperar, impaciente, para devolver ao caos aquela ínfima porção de matéria, temporariamente organizada? Estar vivo é um acidente da natureza que ela se empenha em corrigir o mais depressa possível".Disse, numa certa ocasião em que já ia me retirando. Voltei a sentar. "Ninguém "É". No máximo, "Estamos". Não passa de presunção narcisista, portanto, dizer: "Eu sou fulano". O mais sensato seria dizer como aquele ministro: "Eu estou beltrano. Por enquanto...".

 

"Viver dói. E é dor que não se sente. Ou melhor, sente-se, sim. Mas não no momento em que devia doer. É como dilacerar os lábios, anestesiados, com os dentes. Por isso, a lesão pode ser maior do que a própria dor. Caminhamos todos para o vazio primordial. A matéria só tem lógica enquanto há vida. Ainda assim há quem diga que ela não tem sentido. A vida não é eterna. Mas sentido, tem sim. Muito mais do que poderia esperar alguém que a contemplasse do lado de fora. O único sistema lógico no universo é a matéria viva. É incrível a existência dessa ordem. É quase perfeita, em contraposição à desordem cósmica infinita. E, aparentemente, só existe no planeta Terra. Por esta razão, há muito tempo deixei de me preocupar com crises existenciais do tipo origem, finalidade e destino de quem vive. Entre a curiosidade e o privilégio, escolhi o segundo".

 

"E é nisso que consiste o grande mistério da natureza. A perfeição cósmica a que alguns chamam Deus. Lamentar e temer a morte é tão ou mais absurdo quanto ignorar e desvalorizar a vida...".

 

De repente, calou. Já sabíamos o que significava. Que havia chegado ao fim. Que a partir daquele instante não diria mais nada. Que teríamos de pagar a conta. E um de nós seria escalado para levá-lo pra casa. Ofereci-me como voluntário. Estarei prestando benefício a um homem inteligente, racionalizei. Na verdade, esperava obter alguma idéia original para o meu próximo livro. Não pronunciou uma só palavra. Nem agradeceu quando o ajudei a sair do automóvel e o deixei cair num catre imundo. Morava entre quatro paredes apertadas. Sem reboco. Piso morto. Sequer instalações sanitárias, dignas desse nome.

 

No dia seguinte, quando cheguei, já ia na oitava garrafa. "Escrever é o melhor remédio para suportar a dor de existir. Encadear palavras, formando idéias originais, é um prazer igual a poucos. É como edificar monumentos de granito a partir de argila. Palavras não passam de porções de argila. Quando não suficientemente depuradas e trabalhadas, são como torrões de barro que se desintegram sob a chuva inútil dos pensamentos banais."

 

Então, por que não escreve? Perguntei.

 

Ele se riu. "Não escrevo porque tudo o que tenho para dizer já está escrito dentro de mim. Melhor seria se tivesse perguntado: "Por que não divulga as suas idéias?". Mas é justo o que estou fazendo agora. O que é esta fala se não uma escrita dirigida a quem, de fato, quer me conhecer? Prefiro compartilhar os meus pensamentos com cinco pessoas que valham a pena, a ter uma vasta conversa escrita para milhões... De traças. Ademais, estou sendo remunerado. A única coisa material a que almejo na vida é essa cerveja que vocês pagam".

 

“Se escrevesse, o que ganharia? Sei que alguns de vocês irão escrever muitas das minhas idéias como se fossem próprias. Que mal há nisso? O conhecimento jamais deveria ser propriedade privada ou monopólio. Idéias não se vendem como se fossem mercadorias. Pelo simples motivo de que elas também não foram compradas. Cobrar por algumas delas seria como receber dinheiro em troca de ar. Pois, do mesmo modo que o oxigênio entra pulmão adentro, elas se insinuam no nosso cérebro. Aliás, o esforço é menor. Para o ar entrar nos pulmões precisamos inspirar. Fazer força. O que não acontece com as idéias".

 

Um dia não o encontramos. No outro, também não. Preocupou-nos. Fomos procurá-lo no tugúrio. Estava só e mal podia falar. Sentia dores e falta de ar. Não respondeu aos nossos cumprimentos. Achávamos que era pelo cansaço. Insistimos em levá-lo a um hospital. Não disse que sim nem que não. Mesmo muito cansado, começou a falar. "Vejam! Aprendam! Estão diante de uma cena rara. A morte de um homem. Não estou dizendo que é rara a morte de um homem. O que não é comum é as pessoas quererem assistir. Porque isso lhes faz lembrar a própria morte. Lembrem o que disse. Estou morrendo. Porém enquanto vivo tudo valeu a pena. Sou uma fração insignificante de matéria. Mesmo assim, uma porção muito especial porque enquanto vivi, esta porção, mesmo insignificante, fez muito sentido. Na verdade, fui uma das raríssimas lógicas do universo. Um homem que diz que sua vida não faz sentido não é digno de viver".

 

O cansaço era cada vez maior. "Aprendam a morrer para aprenderem a viver. Pois uma coisa depende da outra. Só vive bem, quem sabe que vai morrer bem. Olhem para mim. Vejam que sinto dores e estou sem fôlego. Acaso percebem o menor sinal de angústia no meu semblante? E repetia: "Sou um privilegiado. O resultado de um acaso feliz e quase impossível. Como se tivesse tirado o prêmio maior da loteria do infinito. Quantos átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio existem no universo? Impossível sequer conceber. Pois os átomos e moléculas que formaram o meu corpo são o resultado desse sorteio... Agora volto para lá. Retorno para a desordem sem fim. Mas valeu a pena ter ganhado e gastado este prêmio...". E expirou.

 

  

 

 

 

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