edição 38 | dezembro de 2009
temas:  um estranho que me quer | instrumento musical | reconhece a queda

lenora e el diablo

roberta silva

 

Tivera outras daquelas discussões inúteis e intermináveis com Dona Vera sobre sua condição de ateu. Compreendia que a insistência de sua colega de trabalho devia-se mais ao amor que sentia por ele do que qualquer outra coisa. Era uma senhora doce, ex-freira, não poderia admitir que um colega de trabalho, tão querido, não tivesse a alma recuperada. Não, estando ele tão próximo. Roqueiro por opção, não abria mão dos longos cabelos, tatuagens, emblemas satânicos, chamavam-no El Diablo. Sendo o melhor advogado do escritório isso não lhe causava maiores inconvenientes.

Era noite de estreia, o palco não lhe causava mais o pânico do início. Tocava em outras cinco bandas e, apesar da curtição, não esperava muito daquela noite. Como baixista, nunca havia sido chamado no final do show para um solo. Dizia, para justificar sua pequena mágoa, que era apenas o tocador de baixo. Houve algo diferente naquele dia, entregou-se como nunca à música. Não sentia os dedos nas cordas, mas ouvia cada batida de seu coração em harmonia com o som que inundava seus ouvidos. Ele era a sua música.

Ao ouvir seu nome para a apresentação do solo abriu os olhos pela primeira vez desde que subiu ao palco. Foi sugado de seu transe e pôde ver, então, a plateia, calorosa, em êxtase. Direcionavam-lhe sinais demoníacos e isqueiros piscantes. Um terror subiu por seu corpo, suas pernas bambearam, caiu de joelhos, trêmulo. Não sabia o que fazer, os dedos não o obedeciam, gritavam seu nome. Olhou para eles e foi tomado por um calafrio, fechou os olhos e entregou-se, era pequeno, minúsculo e o tempo, uma eternidade.

Ao abrir os olhos, identificou uma mulher no meio da multidão. Lenora vinha de branco, elegantemente vestida, deslizava, abrindo caminho, suavemente, entre o mar de gente à sua frente. Parou em frente ao palco, posicionou a câmera que trazia pendurada ao pescoço e fotografou-o.  Não tocou uma nota, mas ainda gritavam seu nome, como se ele já tivesse feito tudo o que podia. Era o guerreiro em morte gloriosa ao fim da batalha, o lutador que, exausto, não consegue subir ao pódio para receber sua medalha.

Mais tarde no bar, apesar da euforia dos outros da banda, não reconhecia-se mais como parte daquele mundo. Estavam todos felizes, cumprimentavam-no a todo tempo, faziam-lhe reverências, que respondia com leve aceno de cabeça. Não compreendia o que havia lhe acontecido. Avistou no balcão a mesma mulher do show. Sem se importar em atender à euforia da banda, levantou-se e foi até ela.

— Alex, muito prazer.

— Lenora.

— Pago uma bebida?!...

— Água.

— Duas, por favor.

Soube que era fotógrafa amadora, viajava pelo mundo na captura de momentos como aquele e que tinha sorte de estar sempre na hora e no local exato. Destacava-se dos frequentadores dali mais pelo olhar do que pelo figurino nostálgico, clássico, inapropriado para a ocasião. Tinha de ficar, pela banda, mas não se conteve.  Seguiu-a quando pagou a conta e saiu sem dizer adeus.

Definitivamente, morava na cidade ou vinha com frequência, era um apartamento bem montado, grandes posteres fotográficos autorais decoravam o ambiente. Momentos sublimes, homens e mulheres em entrega total, músicos, atletas, pessoas comuns, fotografadas de maneira única. Subiu as escadas atrás dela e mesmo estando a poucos passos atrás, ao entrar em seu quarto encontrou-a só de lingerie, roupas caídas a seus pés. Desde o show, perdera a noção do tempo, as coisas aconteciam como em saltos temporais, como se o irrelevante fosse deletado de sua memória e, apesar de não compreender o que se passava, sentia-se confortável.

Ao acordar não a viu no quarto, não lembrava o que tinham feito, mas conhecia bem aquela sensação. A noite fora intensa. Vestiu um roupão deixado ali, pegou a caneca de café fumegante à cabeceira e desceu. Parou em frente à parede no fim da escada e deparou-se com um imenso poster. Era ele, no show, suado, tocando, um dos joelhos ao chão.

— Parece uma oração.

— Pensava a mesma coisa. Como você...

— Sou rápida.

— Não sou mais o mesmo. Não posso continuar...

— Eu sei, por isso eu vim.

As próximas noites foram de tormenta. Não comia, nem bebia, acordava no meio da noite aos berros, banhado em suor. Passado mais de um mês ele não reagia, ela levou-o a um mosteiro e deixou-o lá.  Foi recebido com piedade pelo monge mais velho do lugar que o conduziu até uma cela. Olhou o aposento e viu que tinha ali tudo o que precisava, jogou-se na cama dura e apagou.

Com o tempo, foi melhorando, os pesadelos onde tocava em transe por horas, até a exaustão foram diminuindo e não mais acordava a todos, no meio da noite, com seus gritos desesperados. Foram meses, até conseguir circular tranquilamente pelo pátio, sereno. Havia sido a conversão mais demorada, admitia o velho.

Não voltou a ver Lenora, mas era ela, todas as noites, que aparecia em seus pesadelos, para tirar-lhe do transe e trazê-lo de volta da tormenta.  Sua conversão foi sincera, mas seu olhar permaneceu triste e distante. No seu íntimo, sabia que a música o seduzia, que queria intimamente voltar àquele lugar. Apesar de saber-se puro em seu corpo, sofria pela alma que teimava em ficar. Foram alguns anos até sentir-se confiante em ministrar sua primeira missa. Foi um dia memorável, sentiu mais uma vez a paz que há muito o abandonara. Quase foi feliz naquele dia.

Em pouco tempo era o mais conhecido da região. Suas missas lotavam, seus sermões calavam cada vez mais pessoas. E assim, seguiu por muitos anos. Suas palavras operavam milagres, salvavam famílias, traziam de volta filhos desgarrados, que vinham até ele, agradecidos, tocar-lhe as mãos. Nos últimos dias, pouco antes de ser levado, teve aquele antigo pesadelo. O frenesi daquelas visões, o palco, o público, o êxtase da música exigiu demais de seu velho coração, mas Lenora apareceu a tempo.

Enfraquecido, sabia que teria de rezar aquela missa, pois seria a última. Apesar da tristeza que o acompanhava, pois ainda reconhecia sua alma como perdida, sabia que tinha feito o possível e que isso seria levado em conta ao final. Na hora do sermão todos silenciaram. Ele deveria saber o que dizer, mas como naquele show, sua voz não o obedecia. Era como se tivessem-no deixado por sua própria conta. Teria de improvisar, mas não soube o que dizer.

Olhavam-no de maneira estranha ao perceber seu silêncio prolongado, começaram os cochichos, os risinhos, alguns olhares preocupados, o pavor tomou-lhe e sua roupa não conseguia absorver todo o seu suor. Trêmulo, depois de um grande esforço conseguiu falar:

— Nunca. É verdade. Nunca consegui domar minha alma, mas O servi mesmo assim... Por que me abandonas agora no final? — Disse, caindo de joelhos.

Levantou os olhos e na fileira da frente reconheceu Lenora e o monge que o acolhera aquela primeira noite. Ficou confuso. Ela estava jovem e bela, como no dia em que a conhecera. Levantou-se e foi ao seu encontro. Ela estendeu-lhe a mão e aproximou-se de seu ouvido:

— Ele nunca lhe abandonou, insistiu contigo por anos, noite após noite, mas eu sou muito, muito boa no que faço.

 

 

a longa história
da mulher mais solitária do mundo
 
Prometeu que se casaria

com o primeiro que batesse à porta.

Foi com o entregador de pizza.

 

 


©juca filho

 

canção de amor em ré
simone santana

Os dedos nas cordas, a música desfolha. Eu viola.

 

 

 

1 poema
suzana bandeira

1. violão é uma cunha e uma serpente.

2. no bandolim ocorre um choro desterrado.

3. trumpete, sopro puro de aguardente.

4. o violino se estanca no passado.

 

(quarteto em sopro e cordas)

 

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