edição 37 | outubro de 2009
temas:  os quatro elementos (água, fogo, terra, ar) ou os signos | pés | aquele beijo que te dei

 

5 minicontos

angela schnoor

 

 

 

aquele beijo que te dei

 

Aquele beijo, você o guardou na gaveta, lembra? Acho que nem sabe mais dele, talvez tenha se estragado porque misturado a depósitos bancários e moedas fora de uso. Agora que envelheci, talvez volte a ter alguma validade. Quem sabe depois de minha morte você consiga um bom lance em leilão de objetos não usados!

 

 

 

 

pés

 

O menino tinha fixação em pegadas, caminhos marcados por passos, marcas de solas sobre qualquer superfície. Não conseguia definir a desorientação interior, sentia-se perdido longe de casa. Descendia de João e Maria.

 

 

 

 

desejo extremo

 

Seu conceito de beleza incluía, principalmente, pés magros, estreitos e ossudos. Quando engordava um pouco ficava desolada, não importando se o resto da aparência agradava à maioria. Naquele momento sentia-se gloriosa. Que prazer estar em silêncio, deitada naquele ângulo, enxergando perfeitamente os artelhos brancos, rígidos, belíssimos, expostos acima da mortalha. Ainda bem que respeitaram seu desejo de estar descalça.

 

 

 

 

ciclo elementar

 

Os signos de fogo impregnavam nossa vida. Nossos parceiros, aéreos, insuflaram com sua racionalidade e distanciamento a paixão que nos brotou em meio a tanta festa. Com o beijo que te roubei, entre azulejos, copos e panelas, incendiamos o tempo e explodimos de prazer, mas você se foi na primeira oferta de matéria enquanto as lágrimas me fizeram apagada e fria.

 

 

 

 

o essencial

 

Sua identidade era tão sutil que não conseguia defini-la. Oscilava entre amor e ódio, docilidade e rebeldia, homens e mulheres eram-lhe igualmente atrativos. Até seu nascimento havia sido em lua cheia, nos opostos signos de Touro e Escorpião. E, fosse o que fosse, símbolo de casa, mãe ou útero, estivesse de saia ou calça, só se sentia em segurança carregando uma bolsa junto ao corpo. E dentro dela levava apenas o essencial: batom e revólver.

 

 

 

Angela Schnoor (Rio de Janeiro/RJ). Psicóloga, publicou os primeiros minitextos em 2001, nos "300 toques" do fanzine Falaê. Colabora com Minguante e Veredas, revistas eletrônicas, dedicadas à minificção e edita o blogue Microargumentos, uma publicação exclusiva de seus minicontos, também editados na Espanha, Argentina, e Itália. Participou das coletâneas Contos de algibeira, da editora Casa Verde-RS, e Entrelinhas, organizada pela Editora Andross-SP. Tem contos publicados na Letrário Editora — consultoria em língua Portuguesa; o e-book Na barca de Caronte, publicado por pela revista Minguante e Anima — contos femininos, publicado no site Calaméo. Em junho de 2008, pelo Espaço SESC, promoveu e organizou o primeiro evento sobre minicontos do Rio de Janeiro, "Minicontos e muito menos", com a participação de Laís Chaffe e Marcelo Spalding, escritores gaúchos. Edita o blogue Ideália, dedicado a contos e poemas.

 

 

 

 

1 poema

daniela dias

 

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Na rua os sapatos batucam a marcha.

 

Humanos soldadinhos de papel machê.

 

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Daniela Dias (São Paulo, 1982). Jornalista, estuda teatro e mantém o blogue Quimerópolis — exercícios de olhar e percepção, onde publica seus avessos, reversos e pirlimpsiquices.

 

 


©cristina carriconde

 

 

 

o caso de solange scarpa | 6 sonetos

solange scarpa

 

 

o caso de solange scarpa (I)

 

Familia como a minha não existe,

embora sejam varios nossos ramos.

Mas fodam-se os parentes, digo, e vamos

àquillo que interessa e me põe triste:

 

Meus pés não são bonitos! Dedo em riste,

me apontam como linda, e não são amos

que tentam se achegar, porem: queiramos

ou não, a escravidão inda persiste.

 

Exacto: elles se humilham ante mim,

aquelles machos todos, mas ninguem

jamais me descalçou dum escarpim!

 

Si querem me servir, não será sem

sapatos que estarei na scena e sim

usando minhas botas! Faço bem?

 

 

 

 

o caso de solange scarpa (II)

 

Sou rica, independente, tenho gosto

e estylo ao me vestir: sempre que posso,

prefiro tudo em couro, pois no nosso

mundinho de clichês esse é meu rosto.

 

Casada? Sou, mas elle está disposto

a ser corno em triangulos, um troço

gostoso que só vendo! Si eu almoço

ou janto, os dois que rachem conta e imposto!

 

Si imponho que elles sirvam-me na mesa,

na cama o meu leitor logo imagina

a scena, escancarada, à luz accesa...

 

São ambos meus cãezinhos; feminina,

porem, será a postura do que empresa

dirige e inaugurou minha vagina...

 

 

 

 

o caso de solange scarpa (III)

 

Nem sempre foi assim, pois, no começo,

o cara era machão. Mas, muito experta

que sou, flagrei-o, a porta entreaberta,

provando minhas roupas! Fiz meu preço:

 

"Agora eu que commando! Pelo avesso

que vire o casamento! Ou minha offerta

você topa, ou babáo, e a gente acerta

as contas!" E elle, humilde: "Eu obedeço..."

 

Naquella mesma noite, eu fiz estréa!

Chamei o zelador do nosso predio,

com quem eu ja privava, e dei a idéa:

 

"Você me enraba e o corno assiste o assedio!

Depois, eu fico olhando e, então, quem é a

mulher? Elle, que chupa e seu cu cede-o!"

 

 

 

 

o caso de solange scarpa (IV)

 

Zé Ciço, o zelador, ficou surpreso

ao ver o "doutor" Hercules, do oitavo

andar, tido no predio como bravo

e serio, num papel tão indefeso:

 

Calcinha em vez da sunga, sob o peso

damnoso do vexame e com o aggravo

de usar meu sutiã, sacava o escravo

que não ia sahir daquillo illeso.

 

Sarrista, olhou Zé Ciço para mim,

que estava toda em preto e, obvio, calçava

as botas que ao tesão dão estopim.

 

"Que tal, Zé Ciço, eu sendo sua escrava

na frente desse otario?" "Ah, dona, eu vim

aqui p'ra que? Meu fogo ninguem trava!"

 

 

 

 

o caso de solange scarpa (V)

 

No couro, uma janella atraz permitte

que eu seja uma cadella engatinhante

emquanto o Zé me enraba e, a todo instante,

me chama de "cachorra", a meu convite.

 

Mas Zé nem se perturba caso eu grite

ao Hercules que fique em pé, durante

o tempo todo, bambo, num pisante

de salto, e feminino se acredite.

 

Por traz o Zé me come feito um potro

selvagem! Meu marido se equilibra,

tremendo, na sandalia, attento ao outro.

 

E eu digo: "O Zé que é macho! O Zé tem fibra!"

E o Zé: "Não sou do typo corno escroto!"

Porem sei que, por dentro, Hercules vibra.

 

 

 

 

o caso de solange scarpa (VI)

 

Notei que os dois olhavam para a bota

que eu uso, mas meu pé nem meu marido

eu deixo ver descalço, pois duvido

que ao vel-o alguem não faça uma chacota.

 

Calçado, elle é bem grande. Não se nota,

comtudo, o seu formato contorcido.

É claro que eu jamais me suicido

por isso! Quem pensava era idiota!

 

Transformo no meu trunfo o meu problema,

pois quem sabe viver não se constrange!

Em couro, qual mulher ha que algo tema?

 

Por isso minha bota echoa e range:

amantes ou escravos dão mais thema

que o pé! Não me chamassem de Solange!

 

 

 

Solange Scarpa é figura controvertida na noite paulistana. Tem sido vista ora em restaurantes caros, acompanhada do marido, um próspero empresário, ora em suspeitas casas noturnas, acompanhada de tipos diversos. Também frequentadora de elegantes saraus, descobriu-se imitando alguns sonetistas em voga e resolveu compartilhar seus experimentos com o público internauta. Não sabe se continuará escrevendo, ou, como ela mesma diz, não sabe nem se acordará amanhã nesta galáxia...

 

 

 


©cristina carriconde

 

 

» Imagens

 

Cristina Carriconde é gaúcha, de Pelotas/RS. Vive no Rio de Janeiro. Formada em Comunicação  Social com especialização em Jornalismo. Na faculdade, foi sequestrada pela Publicidade e Propaganda, onde atuou durante muito tempo. Um dia comprou uma máquina digital para fazer fotos dos seus bichos e entrou para uma comunidade virtual. Muita gente veio ver. Logo, percebeu que precisaria estender o olhar. A fotografia, em sua vida, é mais uma forma de expressão e a mais recente. Para saber mais sobre Cristina Carriconde, clique aqui, aqui, aqui e aqui.

 

 

 

 

 

 

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