edição 35
| junho de
2009
Uma
possível testemunha —
Veja só: até o povo que diz que tudo não passa de balela, quando tem de
varrer o décimo — primeiro se benze pra não sair cagado de medo. Eu mesmo
não acreditava muito, mas depois de uns tempo, ouvindo coisa, uns riscado
estranho, como de unha de cachorro raivoso no chão, uns gemido
atravessando porta e vento, uma risadagem a altas hora da madruga... Aí,
você, que tá de vigia junto com o povo da Patrimonial, fica pensando que é
tudo aluno de História ou Filosofia, que fica entocado no D.A. depois da
aula pra fumá maconha e fazê putaria. Todo mundo sabe esse povo acaba
fazendo mais zona do que estudo. Mas aí fica complicado de dizê "é isso",
porque a gente bota tudo pra fora sem mais lá pras dez da noite e depois
não fica mais ninguém. Aí a gente se pergunta "quem é o filho da puta que
conseguiu ficar?". Aí você vai vê, não é nada, ninguém. E começa a torá um
aço danado, porque já sabe que é malassombro. Porque pulam e as alma fica
agoniada, também perguntando por que. Aqui tem gente que jura que ouve o
vento gritar. Que os assovio da tarde é um chamativo do Cão pra gente de
alma perturbada fazer a viagem sem volta. O senhor nunca reparô que aqui
ninguém faz fita? Pula e pronto: tebêife. Cabou-se. Que Deus me perdoe,
mas acho que só presta assim, sem frescura. Quer morrer, morre. Pra quê
chamar atenção, né? Uma
tarde Um
sapo de borracha, tomado de um aluno, ri para mim. Acho até que, com um
pouco de fé, colocando o nome de algum desafeto dentro da boca dele,
serviria como uma bruxaria bem pregada: afinal, o que vale é o pensamento.
Rio dessas estapafurdices; calço os sapatos e saio, sem dizer tchau a
ninguém. Ninguém. Afinal, para mim, ninguém acaba sendo uma companhia
constante e presente, mesmo que o sapo de borracha me faça rir no meu
canto onde se amontoam livros e pensamentos. Pensamentos que correm à rua
procurando notícias dela, como uma bússola talvez procurasse um medo
peregrino, um plano de perturbações colado às paredes das ruas como um
cartaz de um show de música de mau gosto, que você olha e sente náuseas,
porque se sente superior e acha tudo aquilo uma babaquice medíocre e
desprezível. Percebo
em minhas mãos um tremor antes não encontrado nos mínimos gestos de
trancar o cadeado, de contar as moedas para pagar a passagem do ônibus, do
digitar as teclas do celular para falar com Beto e ver se ele abriu sua
barraca de café lá na Universidade, perguntar se eu poderia ir lá jogar
conversa fora (na verdade também maluco para ouvir rumores ou imaginar
porquês que eu nunca tinha imaginado porque eu preferia dizer "se fudeu, o
otário, ou a otária" àquela gente que sem titubear lançava-se aos ventos
de quinze andares) e até pensar em subir as escadas. Escadas que eu subia
preguiçosamente, de cabeça baixa, até que minha irritação ancestral fazer
com que eu mandasse tudo à merda e seguisse a minha vida em outro curso e
em outro centro. Eu
estava embriagado com o meu próprio cansaço e com o medo de que em algumas
horas aparecesse a notícia de uma desgraça. Medo filho de outros temores
pequenos, como o de chegar em casa e vê-la de cabelos cortados, e ela,
cruzando pernas e braços nas almofadas do meu chão mal varrido dizia
simplesmente foi a tesoura, tesoura do desejo. Desejo de
mudar. Merda. Sentir
essa tremedeira era como se sentir na beira de um parapeito e estivesse
prestes a pular. E ela riria da minha covardia. um
café Café
frio e doce. Beto sempre achava estranho eu deixar o copinho lá, agoniando
minhas agonias, enquanto eu jogava um monte de bravatas e risadas e
baforadas de um cigarro vagabundo (a grana tava curta e eu tinha de
economizar sem me desfazer da bosta do meu vício) e falava mal de mestres
e colegas. Outro vício. Cabuloso,
o Beto. Não sei quantos anos com aquela barraca ali, fazendo amizade com
professores e alunos, e os calouros querendo uma intimidade forçada com
ele, como se estivessem zanzando pelo campus a milhares de anos. E Beto,
com uma grosseria doce e divertida cortava o barato da pirralhada.
Cabuloso, o Beto. Podia perceber na minha blusa mais bem comportada a
curva dos meus peitos e a tatuagem na minha espádua direita. Elogiava o
anjo que eu tinha. Que mané anjo, Beto: é o Ícaro. Ele ria, ele sabia.
Embora parecesse ao populacho que ele era um fudidaço de marca maior, Beto
com certeza tinha mais tino e sapiência (como ele mesmo dizia) do que
muito doutorzinho fuleiro. Me fiava café e cigarro por camaradagem, mas
sempre fazia questão de alisar minha mão quando eu me despedia. Uma
canalhice suave, de galanteador prestes a se aposentar... Eu sorria, até
meio constrangida, mas também porque sabia que ele sabia, lendo minhas
olheiras, quando eu acordava lascada. Olhei
a barraca de longe, mas não quis ir lá pedir o café pra deixar esfriar.
Minha vontade era de pegar o copo e ir lá pra cima e olhar a paisagem, mas
a turma nos corredores andava um porre, como se de repente todo mundo
passasse a ser uma câmera de segurança. Eu
sempre detestei a sensação de vigilância, fosse qual fosse.
Principalmente
daquelas que parecem que põem algemas nos nossos
calcanhares. um salto Ali
não tão longe ainda ouvi o eco de uma queda. Baque feio, de fazer correr
os pombos e os pirralhos que vinham da pelada na quadra do colégio voarem
gritando para qualquer lugar longe do barulho. A
turma que comia tranquilamente também se debruçou por cima das mesas e das
grades, mastigando o medo e a curiosidade. A fumaça do cigarro balançava
por entre meus olhos, mas vi que umas pessoas correram para ver, socorrer,
sei lá. Alguém
gritou "que porra é essa?". Nunca
vi em tantos anos alguém gritar isso depois que do alto de quinze andares
um corpo desmantelado se aboletava no chão do estacionamento ou nos pés de
coração-de-negro que jogavam sombras no caminho até o Centro de Educação.
Já vi alguns alunos chegarem aqui e desfilarem o seu humor negro sobre
cada idiota que abria os braços e, sem gritos, respiravam os últimos
ventos de suas existências cretinas. Alguém
riu, com raiva e repetiu "que porra é essa?". Alguns curiosos olhavam e
perguntavam, "que merda é essa que tá acontecendo?". A multidão de urubus
humanos arrodeava o motivo de tanto burburinho e vinham gargalhadas e
olhares ao alto, onde, de um dos parapeitos (acho que do décimo-terceiro
andar) uns quatro caras, vestidos de palhaço riam sabe-deus-do-quê,
enquanto a turma no chão praguejava
sabe-o-diabo-do-quê. Ele
chegou e viu ainda alguém remexer naquilo que estava no chão. Pediu um
café e tremendo (nunca o vi desse jeito) perguntou "que porra era
aquilo". Nem
eu sabia que danado era aquilo. De
repente um dos pirralhos do colégio pegou aquilo e saiu correndo pela
alameda junto com outros moleques. "Aquilo"
era uma boneca inflável. depois
de uma conversa (ou antes) —
A idiotice parece ser uma coisa que se estampa na tua cara como uma
tatuagem mal feita. Deu
vontade de pegar a guimba do cigarro e enfiar no meio do olho dele. Talvez
com a mesma violência que ele usava pra enfiar em mim depois que a gente
fumava bagulho e ia pra cama, totalmente lombrados para depois curtir uma
larica mútua pela manhã, regada a leite e risos. Mas
a mania de usar a sua paranóia para me tornar paranóica já estava me
enchendo. Não gostava de sentir minhas mãos tremendo, de queimar minhas
unhas com o isqueiro ou de simplesmente soltar gritos juntamente com
fumaça e sair tossindo como quem vomita ansiedades. Gostava de sentir uma
doce liberdade, dessas que você sente quando está numa varanda e o vento
sopra a fumaça doce de um cigarro de bali por sobre os seus cabelos. Uma
liberdade que aceita uma carícia inesperada por trás, como quem faz um
convite repleto de malícia para doces
sem-vergonhices. De
repente foi como se tudo caísse. —
A idiotice parece ser uma coisa que se estampa na tua cara como uma
tatuagem mal feita. Rebater,
discutir? Para quê? Detesto
idiotices. Melhor ir embora, já não estava bem, tudo parado, tudo suspenso
como uma mão que segura um cigarro apagado, não há isqueiros ou fósforos e
os dedos sonolentos. —
Você acha? Então se foda! E
saí como quem pula pra longe de uma estrada errada, como quem pula de uma
janela cheia de espinhos. Espinhos que ficaram gritando atrás de mim, como
assim, não é assim, virar e dar o fora. —
Te fode, te fode, te fode. Minhas
mãos tremiam. Meus
olhos no ônibus se penduravam nas janelas andantes, como se cada um deles
pudesse saltar e levar minha alma junto com eles, para se espatifar junto
a um meio-fio sangrento e de pessoas urubuzentas que me olhassem com
piedade. subindo
escadas Passei
no bar e tomei uma garrafa, sozinho, destes vinhos vagabundos. Fazia tempo
que não vinha por aqui. Da última vez, uma menina grávida tinha se jogado,
caído de cabeça em cima da biblioteca que nem tinha sido inaugurada. Mas o
vigia com quem falei talvez se referisse a outro caso, mais recente. Caso
recente que embora visto por centenas de pessoas em pleno dia claro, foi
devidamente abafado. Como
sempre, aliás. Como
sempre, também, ouvia pelo combogós do prédio o assoviar da
ventania. Vem.
Vem. Vem. E
um enregelar de dedos, de pensamentos, de cabelos que sobem arrepiados,
como antenas que captassem a angústia dos gritos — ou o silêncio
angustiado — que ficaram impregnados nas paredes
externas. Medo. Queria
vê-la, para saber dos passos, das mãos trementes. Uma
menina passa ao meu lado e sorri. Parecia a mim, por alguns instantes que
tudo estava vazio, sem aulas, sem nada. VEM.
VEM. VEM. Precisei
parar e respirar. Subir escadas que antes eram tão fáceis de subir,
pareceu-me muito naquela hora. uma
visão Subi
até o alto com todas as palavras ecoando. Levadas pelo chamado desse vento
que tanto me agrada e me incomoda, batem nas paredes e espancam meus
ouvidos. Ao menos assim peço a ele que leve todas as tolices que ficaram
girando por volta da minha cabeça. Pior
que a vontade de estar ao lado é forte. Lancei
mão da minha intuição e fui subindo. Entretanto a voz dos meus próprios
ecos me fazia ir mais e mais. Ecos de uma transa feita às pressas. Ecos
dos meus próprios gemidos de satisfação. E de amor, apesar de
tudo. Olhei
o parapeito do décimo - primeiro. Tinha sido dali, achavam, que aquele
menino esculachado por todos — e que de repente passou a ser visto como
uma espécie de mártir desajeitado — tinha se
atirado. Eu
o conhecia. Vínhamos às vezes no mesmo ônibus compartilhando nossos
fascismos, rindo: inofensivos. Corrijo-me: talvez ele fosse mais
inofensivo do que eu. Meu veneno, atiçado por pequenos ódios e por
intolerâncias capazes de me fazer nem olhar a mim mesma no espelho eram
coisas nocivas, que feriam, machucavam. A mim e a quem estivesse próximo a
mim. Não
sei se por vergonha. Ou medo. O
fato é que eu vi uma sombra, mas não era a sombra de alguém que está
perdido no sonho de uma morte jogada aos céus. Era como se alguém fosse a
sombra de si mesma, como se todo um aparato de tristezas e lamúrias se
transformasse num lençol. Eu
gritei. É, eu gritei. Não
me senti, nem vi minhas mãos estendidas ao léu, numa atitude tola de
tentar segurar algo mole que se desmancha nos vãos do
vento. É,
eu gritei. E
não ouvi o eco do meu grito. um
grito Ela
gritou. Lembro que ela gritou. Eu sempre a mordia pela manhã. O braço, a
boca ou o mamilo. Ela gostava. Como também gostava de pegar o café que eu
deixava em cima do criado-mudo soprar o vapor e deixá-lo
esfriar. —
Tá doce? Se não, me traz o açúcar. Por favor. Ela
gritou. Eu mordia o seu pescoço nos momentos últimos das nossas transas.
—
Filho de uma puta gostoso! E
depois dizia, enxugando o suor da testa: —
Vá na farmácia e me compra um Sabiá, seu merda... Eu
olhava a mancha, orgulhoso. Beto
me disse que a tinha visto perambulando por uns dias. Que tomou café frio.
Que conversou pouco. Que depois a tinha visto ao longe, que não passou pra
tomar café, nem pra conversar. Apenas um sorriso perdido, um aceno
largo. —
Os olhos dela estavam tristes... — e tomava café — Isso, de longe, dava
pra sacar. Eu
ouvi o grito no vento. Era
o grito dela. Diferente, mas era o dela. Corri
e a vi: ela e outra pessoa. Talvez nem fosse outra pessoa, fosse a alma
dela indo para o céu, enquanto o corpo dela ia para o
chão. A
culpa gritou junto com o vento. VEM
VEM VEM VEM O
vento tem voz? outras
possíveis testemunhas —
Que merda. Desta vez não foi protesto, nem boneca inflável.
—
E foi o quê? Coletivo? —
Como um ônibus que capota. —
Puta que pariu. —
É. Mais café? —
E cigarro, por favor. o
silêncio VEM...
VEM... VEM...
Abigail Simmons nasceu em Viena, mas mora no Recife (PE) desde os 12 anos. É bacharel em Filosofia pela UFPE e trabalha em casa, fazendo traduções de filósofos alemães do século 19, (Novalis, entre outros). Gosta de literatura fantástica e pretende voltar à Áustria para visitar Salzburg e dançar o Danúbio Azul.
Vinha
pela ladeira. Vinha alado. Amava. Tudo era diverso, todos tinham um verbo
na ponta da fala, no berço da língua senhora. Sorria. A cor azul, a
lembrança, a andança. Amarelo-Peixe. Verde-Cana. Josué não me engana, ama.
Pluritotalmente abraça e beija: o cego, a desvalida, o comandante, a muié,
o roxo piá. O que mais vier, porque ele é vasto. Se mais fossem vastos,
amavam sem menos. Assim é. Que conhecer é o custo, mas às vezes tem que se
pôr gosto. Que só assim Josué descansa na ladeira. E tanto. E
quanto. No
vira mundo do pensá Josué tornou criadô. Uma lei foi o que ele deu. E
mandô pro povo. "Dizê o quê, minha fulô, o povo num vê que todos que têm
aí é pra viver tumém". E bem. Um véio, uma negra. Um gordo, um sem-pé...
Tudo mesmo o que tinha botou lá na mão da lei para que tudinho amassem e
tanto e quanto pudessem amados fossem. Pronto.
Tudo mundo agora é gente. Pode ser. Agora na terra de Josué, tudo era
alado. Que voavam. Que sonhavam. Que livres e rosas todos eram. Preto bom,
moça faceira. Menino e o namorado; um sorvete com tom. Essas coisas de
gente. Livre gente. Uma lei precisô. Só ficava triste Josué assim.
Pensando lei é forçosa por demais. Gostoso e bom fosse o costume da gente.
Gente com gente fica tudo azul. Passarinho berra
afinado. Foi-se o ano feito pudim de pêsco. Acabou logo. Lei num guentô. Que o povo inda segurou as mudanças e as diversas cores. E as nuanças. Vinha pela ladeira. Ainda amava. Josué não me engana, trama. "Lei num adiantô, costume atrasô, vou ser quem sô". Ele foi quem sabia. Que assim mostrou a ladeira pequena: cabia mais gentes. Que tinha zóio virado pra ele. Atentando e desenhando e pensamentando: "quero ser Josué quando que eu engrandecê".
Adriana Possan (1988). Estudante de Jornalismo da Unicentro – Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná, em Guarapuava. Mantém o blogue Cacto Lacto.
©eliége jachini
É!
Não adianta me olhar e procurar aqui os vestígios dos melhores tempos de
sua vida. Sinto, mas esses não foram os melhores momentos de sua parca
existência. Não se engane, beibe, olhe à sua volta; esse sorriso largo de
seu companheiro, a balbúrdia que esses anjinhos fizeram pela casa e esse
cachorrinho lindo, que aprendeu com os meninos que lugar de bicho é aqui
mesmo no centro da sala. Não
fique assim, angustiada. Eu aqui sou apenas o período da ilusão, da
vaidade. O que vale mesmo são as noites sem dormir, a correria para o
hospital quando há febre e tudo isso conjugado, claro, ao seu cotidiano
profissional. Sei que com essa coisa de férias escolares, ficarás tentada
a achar o contrário, mas, bem... Sem
dúvida, sei que te encanto por todas as descobertas e alegrias que
represento. Afinal, são as três primeiras décadas, são os amigos, as
poucas mas fortes paixões, os amores e as perdas daquelas pessoas
importantes. Sim, sei. As perdas — como as derrotas — também nos completam
e nos tornam vencedores, nos enchem. Oquei,
era a vida que começava a ser vivida. Mas lhe digo que, assim como esse
texto nasceu desse velho retrato que sou e que ainda desperta sensações, a
existência também se faz e se refaz, mesmo quando pensamos que já estamos
muito velhos para existir. É como o sorriso que brota no canto da boca
quando estamos diante de um palhaço, é nascente corredeira. Nasce tímida,
mas torna-se caudalosa e
límpida com o passar do tempo, ao perceber as pequenas coisas, as palavras
simples, os sons populares, os toques delicados, os olhares e os
encontros.
Constança Serena. Nascida na década de 1970, é casada e tem como ocupação cuidar de seus rebentos. Prefere os sorrisos, os dias nublados e a poesia. Não tem pretensões literárias, apenas libertárias. É do signo de Leão.
Dizem
que a divindade costuma utilizar linhas tortas para escrever. O acaso,
então, nos indica o caminho correto utilizando mapas errados ou trocando
as placas de sinalização. Será que podemos chamar esse caminho de destino?
Existe alguma diferença, e qual, entre destino e
caminho? Acho
que isso daria uma boa crônica. Caminho, destino, acaso e divindade. Penso
em alguma coisa que coloque em xeque esses conceitos. Defender a tese que
são apenas quatro nomes para a mesma "coisa" me parece uma idéia
atraente. Antes
que a ideia vá embora, paro o carro e escrevo. Nunca se sabe o que vamos
encontrar na próxima esquina. Por via das dúvidas, é bom deixar
registrado. Depois
de 45 dias de férias, o caminho para o trabalho parece que ficou muito
mais curto. Assim que chego na redação, quatro colegas me perguntam como
foi a viagem; três, se consegui descansar; dois, me desejam boas vindas.
Ainda bem que tomei nota da minha ideia/insight, depois de repetir oito
vezes o mesmo texto às 7 horas da manhã de uma quarta-feira, qualquer
inspiração teria ido embora. Ligo
meu computador, vejo as tarefas para o dia. Para me aquecer, retomo o que
estava pendente antes das férias. Pouca coisa. Aproveito e transcrevo a
anotação metafísica do caderno de notas para meu arquivo. Amasso o papel
e, quando vou jogar no lixo, percebo que há uma caixa de papel no lugar do
cesto de lixo. O jornal deve ter iniciado uma campanha de reutilização de
materiais. Tenho o cuidado de picar o papel com a minha letra apressada
antes de jogá-lo no que suponho ser o novo cesto de lixo e percebo que
contém envelopes abertos e algumas folhas
manuscritas. Mal
coloco a caixa sobre minha mesa e Seu Antônio já na frente da minha
mesa: --
Achei que o senhor só voltasse ao trabalho amanhã. Ainda bem que cheguei
antes que mandasse jogar no lixo, pensando que fosse apenas papel velho.
Na verdade, muitas folhas estavam já amareladas, outras nem tanto. Em tom
de galhofa, comento com Seu Antônio que pensei em vender em alguma loja de
antiguidades. Ele retruca, dizendo que a proveniência daquele material era
exatamente duas lojas de antiguidades. Uma das lojas havia comprado os
móveis que pertenceram a um padre recém-falecido. O dono da loja logo
percebeu que duas gavetas continham esboços de sermões, poesias, estudos
para catequese e correspondência ativa e passiva. Quando soube que eu
havia editado dois livros com textos cujos únicos leitores até então
tinham sido as gavetas trancadas de seus autores, enviou-me aqueles textos
para eu apreciar e quem sabe, publicar um terceiro volume de textos
póstumos. Dias depois, outra loja de móveis usados havia enviado outra
caixa. O conteúdo: material encontrado nas gavetas de um jornal da região
que havia falido há algum tempo. Um dia, um dos boys da redação, precisou
de uma caixa para uma entrega de última hora e, percebendo que as caixas
não estavam cheias, reuniu o conteúdo das duas em uma
só. Tudo
bem, foi o que pensei e falei a Seu Antônio. Será fácil separar materiais
de origem tão diversa. Basta a leitura de umas poucas linhas e já se
descobre em qual caixa estava. Além do mais, havia muito material
manuscrito, o que facilitaria a tarefa. Ledo
engano. Semana
que vem começa a nova coluna do jornal, uma espécie de coluna do leitor,
mas que instiga o cidadão à ação. O leitor escreve seu protesto, sugestão
ou história, um ou mais especialistas comentam e sugerem possíveis
atitudes a serem tomadas. Ainda bem que a proposta de utilizar "cidadania"
no título nem chegou a ser cogitada. Enfim, não vai ser mais um espaço que
pega carona em uma palavra da moda. Sincronismo.
Coloco o telefone no gancho e ele começa a tocar. Era a Adélia, o celular
dela estava ocupado, estava
ligando para a redação. Ela ainda está no clima das férias, largada, sem
projeto. Ao invés de avisá-la que iria chegar tarde, convido-a para vir ao
jornal e ajudar a separar o espólio daquela caixa. A
Adélia está animada com a tarefa e começa a fazer a separação dos papéis,
uma espécie de sistema de classificação que vai se definindo à medida que
é colocado em prática. Um método apriorístico de trás para frente. Logo de
início identifica um grande envelope deteriorado cheio de cartas
endereçadas ao Padre Stanislaw. Curiosamente, nenhuma das cartas foi
aberta. O arco de tempo compreendido nessa correspondência passiva (se é
que podemos considerar uma carta não lida com recebida) é de 15 anos, os
remetentes são apenas dois, um homem e uma mulher, e, pelo visto, mudavam
constantemente de cidade. Pego
as duas pilhas de envelopes, passo dois elásticos ao redor de cada uma
para separá-las e coloco-as na última gaveta: cinco por cento já está
separado e classificado. *** Depois
de três horas de tentativas e reinícios, percebemos que está complicada a
separação daqueles dois acervos. O máximo que conseguimos foi a elaboração
de uma hipótese que a Adélia batizou de Teoria da Delimitação dos
Conjuntos. Uma das características da teoria é admitir a existência de um
conjunto que é ao mesmo tempo incoerente e ilimitável. Que era o caso
daquela papelada espalhada sobre a minha mesa, que a essa hora estava com
as duas gavetas superiores de cabeça para baixo para produzir mais espaço.
Nenhum tipo de delimitação era possível. Sempre que tínhamos a impressão
que tínhamos encontrado um bom começo, bastava tirar a próxima folha da
caixa e nossos critérios classificatórios eram colocados em xeque e se
mostravam inadequados. Surpreendente
era a constatação de que todo aquele conteúdo constituía um grande
conjunto. Aleatório e incoerente, mas impossível de ser dividido em dois.
Ou melhor de ser reagrupado em dois. Quem sabe a metáfora dos conjuntos
não fosse a mais apropriada. Talvez deveríamos, bem ao gosto do século
XIX, tentar alguma analogia das ciências biológicas. *** Quando
voltamos do café, mais uma tentativa, que também se mostra ineficiente.
Quase desistindo por aquela noite, listamos os métodos tentados até então:
tipos de caligrafia, timbre do papel utilizado, leitura das primeiras duas
linhas. A separação por autor se mostrou a mais improdutiva, mas ajudou a
evidenciar que aqueles textos não tinham qualquer tipo de identificação ou
anotação que pudesse sugerir autoria. Por outro lado, essa metodologia
desencadeou hipóteses criativas mas sem sustentação: que o padre havia
enviado textos para o jornal, ao mesmo tempo trabalhava no jornal e
enviava respostas a si mesmo. Em certo momento, para sustentar essa tese,
precisaríamos admitir que ele era ambidestro. Mais um pouco e percebemos
que a condição de validade daquela hipótese era que ele escrevia com cinco
diferentes tipos de caligrafia. Adélia
perguntou para quando eu deveria terminar aquela tarefa. Respondi que não
tinha nem prazo, nem tarefa. Estava fazendo aquilo como passatempo, talvez
como treinamento para a próxima pesquisa. Ela disse que a solução seria a
leitura atenta de todas aquelas páginas e fazer uma classificação por
conteúdo. Foi
o que começamos a fazer. ... Palavras? Sim.
Palavras. É
assim que Octavio Paz inicia um poema. Alguns
não têm o mínimo senso de realidade; outros, nem uma fagulha de fantasia.
Mas ambos, no mais alucinado devaneio ou na contabilização mais fria e
calculista, vivem por meio delas, são tresloucados ou sensatos, monges ou
contadores através delas: poéticas, precisas, metafóricas ou
jornalísticas: palavras. E
é necessário conhecê-las. Para não
sermos seus escravos.
Para ampliar o horizonte. Para ter um horizonte. Mas elas fazem mais do
que isso: são o mapa que nos
permite atingir o horizonte. Têm o poder de encurtar, alongar, desviar ou
interromper o caminho que nos conduz a ele. Palavras, palavras, palavras.
E é preciso conhecer muitas delas: fé, periodontia,
Verkehrsverbindungsverbesserungsmoeglichkeiten, porteira, ebúrneo,
lhaneza, tijolo, pirogue, água, bus stop. Coloquemos
juntas duas palavras quaisquer. O intervalo entre elas não é um abismo: é
um universo, um cosmos. Um jogo onde não sabemos onde é difícil distinguir
se são as regras ou as peças,
no qual os jogadores pensão que são seus donos, quando não passam de mais
uma peça em um grande tabuleiro. A esse cosmos-jogo entre as palavras os
gregos chamavam de lógos, que se traduz por "razão", por "raciocínio", às
vezes por "proporção", ou simplesmente por "coisa dita", palavra. Sim,
palavra. [Os publicitários sabem muito bem utilizar as sutilezas desses
jogos. E ignorar esses sortilégios é olhar para o mundo como um menino que
boquiaberto após o número do mágico. Nesse jogo, quem não conhece o
truque, torna-se o serviçal, o burro de carga. Deve ser por isso que
existem no mundo mais escravos que leitores, mais consumidores que
poetas.] Lembro-me de quando era criança e
estava aprendendo a ler. As primeiras leituras espontâneas foram os
rótulos das embalagens (e como meu mundo se ampliava a partir delas):
pastifício, flavorizante, umectante, acidulante, insaturada. Palavras cuja
origem remonta a mais de 2.500 anos e com as quais eu convivia
diariamente, estavam ali comigo, com suas histórias cheias de derivação,
sufixação, contatos com línguas estrangeiras, apofonias. Parecia um
encontro de personagens das Mil e uma noites, em que cada um descreve o caminho
percorrido até chegar naquele ponto. Palavras lidas de modo hesitante,
sílaba a sílaba, naquele início dos anos 70, na cozinha de uma casa de
madeira, sobre a mesa de uma família pobre da Vila São Paulo. Antes que me
alguém me pergunte: sim, é de comer!
Omira Namansil nasceu em uma família pobre do sul do Brasil. Suas primeiras leituras foram os rótulos de potes de margarina e os pacotes de fubá e feijão. Querendo conhecer mais do mundo, fugiu com um circo, foi garçonete, professora de semiótica, tradutora. Atualmente, é diaconisa e ativista ambiental.
|