edição 33
| dezembro de
2008
felicidade Dizia que me amava todos os
dias e noites. Beijava com ardor antes de
dormir e ao acordar. Chegava em casa e me trazia
presentes. Surpreendia com palavras e
gestos românticos. Jantávamos fora todos os
finais de semana. Construiu uma casa de praia
para passarmos as férias. Viajávamos para outros
países anualmente. Trocou o meu carro por um
praticamente zero. O último cartão de crédito
que ele me deu era ilimitado. Adorava que eu fosse ao
salão e comprasse roupas novas. Me achava bela e gostosa
desde quando nos conhecemos. Era o homem perfeito. O
marido que toda mulher sonhou. Agora entende por que eu o
matei?
(Enrolo o meu cigarro com as
folhas finas de um pequeno livro de mortalhas)
Aqui, na Casa de água, ao lado de Lucana que acabou de adormecer, descanso breves minutos, enquanto enrolo o meu cigarro com as folhas finas de um pequeno livro de mortalhas. Fiz muitos pôncios para amar Lucana, alguns pilatos, depois tive que lavar as mãos no chuveiro. Troquei Lucana por Barrabás, mas logo me arrependi e fui sorver, com ela, um chá verde numa xícara de linhagem. Composição para ouvido: eu preciso aprender a empurrar a chuva até a vidraça que a chuva quer molhar. Escuto a nostalgia que a chuva insiste em esquecer junto à porta. Mais molhada que o mar, a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas, desfaz meus cabelos, minha cabeça, a chuva só deixa intacto o gelo do coração que o sopro de Lucana abrasaria. Do tapete, antes de ir embora, recolho as garrafas de vinho e as pontas da erva-cidreira que fumamos desvairados, eu e Lucana, a tempestade lá fora, o perfume intenso do mar salgado lá fora, Órion e Sirius lá fora e, aqui dentro, acasos e cantigas no sereno oásis, eu e Lucana na Casa de Água escutando a última conta do rosário de neblinas.
madame viaduto Sua
morada. Murada. O chá das cinco não veio da Índia. Com água e pedra era
sabor enxofre. Vasculhando o lixo e aspirando o lodo. Dia todo. Dia todo.
Chovem lágrimas inapetentes, que transbordam o rio goela adentro.
Transvia-se em limbo o trânsito caótico. Seria vida ou seria a morte?
Madame, sobre o caixote, cruza as pernas e se delicia. Entre os dedos
nobres a xícara sem asa. Observa tudo o que vem. Tudo o que vai. Onde é a
porta da saída? Qual ônibus vai ao paraíso?
Cláudia Villela de Andrade (Rio de Janeiro, 1956). Professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o Prêmio Áureo Nonato 2007, da Prefeitura de Manaus, destinado ao melhor livro de memória: Prosas do ninho. Organizou e participou da antologia poética DiVersos (Editora Scortecci, 2002) e da antologia de prosa, Com licença da palavra (Editora Scortecci, 2003).
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