edição 33
| dezembro de
2008
2 contos rito: 1.
Em
primeiro lugar, não é verão. E ela não mora no Rio de Janeiro. O lugar é
qualquer um num dia tal. E ela está de frente pro espelho. Uma mulher
diante do espelho não é o mesmo que um homem diante do espelho. As
sensações são outras. O momento mais filosófico é específico para um e
outro. Uma mulher diante do espelho seria, em grau de experiência, o mesmo
que um homem mijando. É um compromisso segurar o pau enquanto mija. É um
compromisso olhar-se no espelho. Uma mulher diante do espelho pensa. Um
homem segurando o pau é paciente. Reflete ao som do mijo que escorre.
Gesto simbólico do semear a terra. Gesto simbólico da responsabilidade de
marcar território. Uma mulher diante do espelho é, para si mesma, a outra
que sabe o maior segredo desta anônima e cotidiana figura que acompanha
esse homem que mija. Ela olha diante do espelho e a memória vem à tela dos
olhos refletidos. Ensaia o olhar de quando de frente a um outro pôde
reconhecer-se; e uma sensação cresce do centro do corpo deixando úmido o
canto dos olhos. Uma mulher é sempre um segredo delicado. Primeiro gelo do
lago. Chuva na vidraça. Coisas mínimas. Um homem mijando merece respeito
por ser incapaz de violência. A delicadeza que ele desenvolveu até ali
para segurar o pau, deveria, algumas vezes, exercitar para abraçar a
mulher que se olha diante do espelho. náusea: Coça
o pescoço. Cabelos e unhas longos. Precisa cortar. Deve até ter arranhado
a pele, vai ver. Mas o sinal não abre. O sinal está vermelho ainda.
Estaria arrependida? Sempre e por toda vida. Ontem, por exemplo, a lição
de casa não foi feita. Há pessoas, disse o conselheiro, veja bem... Ela
não gostava da expressão: "Veja
bem...". Tudo falhava a começar daí. Era
uma mentira. Veja bem... sim, eu estou vendo que você é um cretino que não
consegue formular uma frase original e colou em seu discurso aquelas
particulazinhas que você considera — por via das dúvidas, veja
bem...! Ãh, o que você disse? Veja
bem, há pessoas que demoram muito tempo pra aprender. Ele
devia ser do tipo que usava esmalte. Passado delicadamente por aquela
mocinha manicura sem estudo a quem só restou o exercício de concentração
na arte do não borrar. Ele gostava do cheiro do esmalte. E quase fechava
os olhos num gozo brevíssimo sorvendo a tinta fresca nas unhas. A mocinha,
achando que o motivo daquele prazer vinha de sua espetacular precisão
estética, não deixava de corar as faces na medida em que escorria um
fiozinho úmido entre suas pernas, bem ali no Caminho de Swan. As pessoas são
de uma ingenuidade tocante. Muda a estação do rádio. Duas marcas ferozes
no pescoço. ,.................
isto me faz pensar Ontem ele estava com espírito bom, a voz de Robert Plant me diz isso. Parou exatamente em Stairway To Heaven. Por que essa música me comove tanto? O que há por trás desses versos em inglês que eu não sei o que dizem mas me fazem chorar? A mulher parada ao lado do sinal me olhou com uma cara! Qual o problema de ouvir Led Zeppelin de manhã, cercada de filhos com rosto de sono e de escola? Todos os sinais estão fechados. Outro pedinte se aproxima. Baixo o vidro e a face vesga não me emociona mais. Não tem moedas no porta-luvas e eu respondo um monossílabo. A senhora não fala a minha língua é? Fala a língua desse aí é? Me perco no olhar enviesado e digo — outro dia, talvez. Por que baixou o vidro se não vai dar nada? Não sei. Penso em divagar e explicar que nasci no interior e... esquece essa basbaquice. Fecho o vidro e a conversa. O sinal abre. O filho sentado ao lado pede para mudar a música. Pego a caixinha e escolho a Janis — mamãe, a Joplin não. Algo mais leve, por favor. Coloco no auto-rádio a trilha do filme Herói. Os acordes da música chinesa invadem o carro e me apartam dos fios de Jimmy Page. Uma tranqüilidade vespertina se instala. Paro na primeira escola e entrego um filho. Outros sinais. Outra escola. Estaciono o carro no pátio do edifício e parto para o trabalho de carona. Fazer o quê? Gasolina cara, essa porra toda. Ela estava calma de manhã. O som da música chinesa toma conta dele. Por que será que ela parou em Farewell, Hero? O pedinte põe a cara na janela. O celular ao lado toca. É um cruzamento perigoso, não dá para arriscar. Muda o CD. O sinal abre e ele parte rumo à noite ao som de B.B. King.
10 poemas imagem tal como o padre ergue a
hóstia entre os dedos o sol se levanta atrás da
montanha e consagra a
manhã re_tiro da missa não sabes a
metade um
terço (nenhum
quarto) vemo-nos por
aí e nunca mais
nus verticais horizontais e
oblíquos ano após ano
atravessamos o
corredor dentro em
pouco um pé juntinho do
outro e com a roupa do
corpo o esbarrão de
tirana ite missa
est a missa é
omissa exclui a massa do
ofício amassa a raça com os
pés o vinho bento do
cálice é privilégio
sagrado do santo senhor
vigário nossa sina é o
sacrifício o pobre cristo sou
eu fui condenado sem
culpa a carregar a
pobreza a transportar a
miséria debaixo da pele
preta olores
d'amoniaco o mundo
autoritário a vida
submissa a missa
insuportável preciso
reagir fazer xixi na
cama dizer a eles -
existo não sou
clandestino nem
otário cumpra-se o
destino (ao deixar meu
traço assumo os
riscos) devoção rezava pedia
implorava ia à missa todo
dia às
novenas prometia batia o
pé santo antonio fazia-se de
surdo devia
pensar se se casassem as
beatas o que seria do
pároco? bodum ranço no
sovaco arrogante ofendia os
fracos bajulava os
grandes alma
rastejante jeito
puxa-saco catinga de inhaca
dava
nojo infante mais que muito
bastante ama-o
demais de um tanto
sufocante transbordante a fazer cada
instante pesar como
elefante e
enjoar trombas
trombam pedidos num
caixão tampa de
pinho coração e pulmões
paralisados dedos amarrados sobre o
peito é bom que
saibam cheiro de flor velha me
enjoa usem por favor uma
mortalha a cor não importa isso não
ligo pode ser a mais barata do
mercado e junto do meu corpo ponham
livros só assim entrarei na
eternidade contrarregras tremo viver sem
trema comer linguiça não terá o
mesmo gostinho vou demorar a urdir
ideias a dormir
tranquila (arrepiam-se-me os pelos
pelos pinguins) sem tirar nem por
acho uma
feiura voo sem
acento sinto
enjoo (morderam-nos a língua e cuspiram em cima) ![]()
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