edição 33 | dezembro de 2008
temas:  náusea | rito

 

2 contos
assionara souza

rito:

1.

Gosto de comer você de manhã, depois de ter sonhado com manadas de elefantes caminhando lentamente de forma meditativa numa paisagem africana. Gosto de comer você de manhã, depois de ter sonhado qualquer coisa e nem lembrar. Gosto de comer você de manhã sem sequer dar bom dia; seu corpo com a febre da noite, ileso de alguma morte. Gosto de comer você de manhã, como na cena daquele filme em que a moça azul mergulha numa piscina de insustentável leveza. Gosto de comer você de manhã pra me curar da má sorte que porventura o dia me traga. Gosto de comer você de manhã e sair de casa sem banho com o cheiro bom de você entranhado em minha barba por fazer. Gosto de comer você de manhã. E hoje. E amanhã. Gosto.


2.

 

Em primeiro lugar, não é verão. E ela não mora no Rio de Janeiro. O lugar é qualquer um num dia tal. E ela está de frente pro espelho. Uma mulher diante do espelho não é o mesmo que um homem diante do espelho. As sensações são outras. O momento mais filosófico é específico para um e outro. Uma mulher diante do espelho seria, em grau de experiência, o mesmo que um homem mijando. É um compromisso segurar o pau enquanto mija. É um compromisso olhar-se no espelho. Uma mulher diante do espelho pensa. Um homem segurando o pau é paciente. Reflete ao som do mijo que escorre. Gesto simbólico do semear a terra. Gesto simbólico da responsabilidade de marcar território. Uma mulher diante do espelho é, para si mesma, a outra que sabe o maior segredo desta anônima e cotidiana figura que acompanha esse homem que mija. Ela olha diante do espelho e a memória vem à tela dos olhos refletidos. Ensaia o olhar de quando de frente a um outro pôde reconhecer-se; e uma sensação cresce do centro do corpo deixando úmido o canto dos olhos. Uma mulher é sempre um segredo delicado. Primeiro gelo do lago. Chuva na vidraça. Coisas mínimas. Um homem mijando merece respeito por ser incapaz de violência. A delicadeza que ele desenvolveu até ali para segurar o pau, deveria, algumas vezes, exercitar para abraçar a mulher que se olha diante do espelho.



 

náusea:

Coça o pescoço. Cabelos e unhas longos. Precisa cortar. Deve até ter arranhado a pele, vai ver. Mas o sinal não abre. O sinal está vermelho ainda. Estaria arrependida? Sempre e por toda vida. Ontem, por exemplo, a lição de casa não foi feita. Há pessoas, disse o conselheiro, veja bem... Ela não gostava da expressão: "Veja bem...". Tudo falhava a começar daí. Era uma mentira. Veja bem... sim, eu estou vendo que você é um cretino que não consegue formular uma frase original e colou em seu discurso aquelas particulazinhas que você considera — por via das dúvidas, veja bem...! Ãh, o que você disse? Veja bem, há pessoas que demoram muito tempo pra aprender. Ele devia ser do tipo que usava esmalte. Passado delicadamente por aquela mocinha manicura sem estudo a quem só restou o exercício de concentração na arte do não borrar. Ele gostava do cheiro do esmalte. E quase fechava os olhos num gozo brevíssimo sorvendo a tinta fresca nas unhas. A mocinha, achando que o motivo daquele prazer vinha de sua espetacular precisão estética, não deixava de corar as faces na medida em que escorria um fiozinho úmido entre suas pernas, bem ali no Caminho de Swan. As pessoas são de uma ingenuidade tocante. Muda a estação do rádio. Duas marcas ferozes no pescoço.

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isto me faz pensar
cida pedrosa

Ontem ele estava com espírito bom, a voz de Robert Plant me diz isso. Parou exatamente em Stairway To Heaven. Por que essa música me comove tanto? O que há por trás desses versos em inglês que eu não sei o que dizem mas me fazem chorar? A mulher parada ao lado do sinal me olhou com uma cara! Qual o problema de ouvir Led Zeppelin de manhã, cercada de filhos com rosto de sono e de escola? Todos os sinais estão fechados. Outro pedinte se aproxima. Baixo o vidro e a face vesga não me emociona mais. Não tem moedas no porta-luvas e eu respondo um monossílabo. A senhora não fala a minha língua é? Fala a língua desse aí é? Me perco no olhar enviesado e digo — outro dia, talvez. Por que baixou o vidro se não vai dar nada? Não sei. Penso em divagar e explicar que nasci no interior e... esquece essa basbaquice. Fecho o vidro e a conversa. O sinal abre. O filho sentado ao lado pede para mudar a música. Pego a caixinha e escolho a Janis — mamãe, a Joplin não. Algo mais leve, por favor. Coloco no auto-rádio a trilha do filme Herói. Os acordes da música chinesa invadem o carro e me apartam dos fios de Jimmy Page. Uma tranqüilidade vespertina se instala. Paro na primeira escola e entrego um filho. Outros sinais. Outra escola. Estaciono o carro no pátio do edifício e parto para o trabalho de carona. Fazer o quê? Gasolina cara, essa porra toda. Ela estava calma de manhã. O som da música chinesa toma conta dele. Por que será que ela parou em Farewell, Hero? O pedinte põe a cara na janela. O celular ao lado toca. É um cruzamento perigoso, não dá para arriscar. Muda o CD. O sinal abre e ele parte rumo à noite ao som de B.B. King.

 

 

10 poemas
líria porto

imagem

 

tal como o padre ergue a hóstia entre os dedos

o sol se levanta atrás da montanha

e consagra a manhã

 

 

 

 

re_tiro

 

da missa não sabes a metade

um terço

 

(nenhum quarto)

 

vemo-nos por aí

e nunca mais nus

 

 

 

verticais horizontais e oblíquos

 

ano após ano

atravessamos o corredor

 

dentro em pouco

um pé juntinho do outro

e com a roupa do corpo

o esbarrão de tirana

 

 

 

ite missa est

 

a missa é omissa

exclui a massa do ofício

amassa a raça com os pés

o vinho bento do cálice

é privilégio sagrado

do santo senhor vigário

 

nossa sina é o sacrifício

o pobre cristo sou eu

fui condenado sem culpa

a carregar a pobreza

a transportar a miséria

debaixo da pele preta

 

 

 

olores d'amoniaco

 

o mundo autoritário

a vida submissa

a missa insuportável

preciso reagir

fazer xixi na cama

dizer a eles - existo

não sou clandestino

nem otário

 

cumpra-se o destino

(ao deixar meu traço

assumo os riscos)

 

 

 

devoção

 

rezava pedia implorava

ia à missa todo dia

às novenas

prometia batia o pé

santo antonio fazia-se de surdo

 

devia pensar

se se casassem as beatas

o que seria do pároco?

 

 

 

bodum

 

ranço no sovaco

arrogante

ofendia os fracos

bajulava os grandes

 

alma rastejante

jeito puxa-saco

catinga de inhaca

 

dava nojo

 

 

 

infante

 

mais que muito bastante

ama-o demais

de um tanto sufocante

transbordante

a fazer cada instante

pesar como elefante

e enjoar

 

trombas trombam

 

 

 

pedidos

 

num caixão

tampa de pinho

coração e pulmões paralisados

dedos amarrados sobre o peito

é bom que saibam

cheiro de flor velha me enjoa

usem por favor uma mortalha

 

a cor não importa isso não ligo

pode ser a mais barata do mercado

e junto do meu corpo ponham livros

 

só assim entrarei na eternidade

 

 

 

contrarregras

 

tremo viver sem trema

comer linguiça não terá o mesmo gostinho

vou demorar a urdir ideias

a dormir tranquila

 

(arrepiam-se-me os pelos pelos pinguins)

 

sem tirar nem por

 

acho uma feiura

voo sem acento

sinto enjoo

 

(morderam-nos a língua e cuspiram em cima)

 

 

 

 

 

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