edição 32
| novembro de
2008
olhando e esperando Eu
estava pintando tudo. A plantação e a árvore e os pássaros negros. Olhando
e esperando. Sempre olhando pro caminho e esperando alguém que me pudesse
entender. Só que o caminho estava sempre vazio, como o forno à lenha sem
lenha da minha avó. Mas eu tinha os meus pincéis e a plantação e a árvore
e os pássaros negros e ficava lá bem quieto, sentado à beira do caminho. É
bem triste estar no mundo e saber que nunca haverá alguém que o
compreenda. Num planeta tão cheio de gente e a gente ser sempre calado e
só. Eu deveria ter ficado quieto no meu canto com o meu mundo e os meus pincéis,
mas fui abrir a boca e me perdi e agora estou perdido e sozinho. De
segunda a sexta, tenho um trabalho e algumas roupas que lavo engomo e
ponho no corpo, mas existem então os finais de semana e os feriados e eu
venho aqui pra esse lugar e fico pintando sempre a mesma paisagem. Imagino
que estou tentando recuperar as coisas que deixei saírem da minha vida, ou
as coisas que nunca estiveram na minha vida e o caminho é sempre vazio,
como um velho navio abandonado e enferrujado que vi na infância em algum
porto de Espanha, ou de Portugal, não me lembro bem. Penso
gentilmente se numa época qualquer, do futuro ou do passado, chegará o dia
de eu ver de novo esse rosto que conheço sorrindo, contudo, sei que o
rosto se perdeu e o sorriso também. O outro lado da máscara do teatro é o
choro. E não é mesmo esse planeta um imenso palco? Você disse que eu era
pequeno-burguês, porque eu tinha um carro, um terno e um trabalho. Não era
bem isso, eu também tinha filhos a quem dar de comer, ideologias nunca
encheram a barriga de quem quer que fosse, você sabe bem, agora que passou
a viver o outro lado da coisa e administra sua arte como um negócio
promissor e lucrativo. Fico orgulhoso quando penso no seu sucesso.
Todavia, eu bem sei que o meu orgulho não faz a menor diferença pra você
que é forte e olha pro futuro. Eu é que sempre fui um fraco. Às vezes,
quase sempre pra dizer a verdade, os fortes me dão no saco. Às vezes até a
tua lembrança me dá no saco. Você sempre olhando o futuro e as avenidas,
enquanto dirigia, com aquela expressão de quem sabe exatamente onde quer
chegar. Esse mundo escroto em que você vive me dá vontade de vomitar. Mas
eu ainda te espero (ou não?) e sou paciente e tenho a paisagem e os
pássaros negros e a estrada, mesmo que a estrada esteja sempre vazia, eu
continuo por aqui. A menos que a semana comece outra
vez. Deus
é testemunha de que tentei, de que fiz de tudo pra tentar te arrancar
dentro de mim. Todos aqueles homens ao teu redor, circulando você, como se
você fosse o prato principal. E você burra e bêbada esbanjando o teu corpo
e o teu carinho com qualquer idiota que aparecesse. Todos eles só queriam
te foder no rabo. E você, míope como sempre, foi e deu o rabo pra eles se
fartarem. Sei que o rabo é e sempre foi seu e que todo o espetáculo não
representou nada pra você. Mas em algum instante você parou pra imaginar
como eu me sentiria, ouvindo aquele bando de idiotas comentando o que
fizeram com você na sexta à noite, ou no sábado de
manhã? —
Sexo é vida, meu bem! Você me gritou nos ouvidos. —
Você sabe, ele era gay, mas era tão bonitinho e tinha a festa e a cerveja,
rolou um clima e aconteceu. Você me gritou nos ouvidos com a empáfia que
lhe é característica. Sei que sexo é vida, meu bem, mas pra mim também é sagrado. Não sou moralista. Nunca fui moralista, mas acho que a gente tem que pôr um pouco o coração no meio dessa coisa toda, senão fica muito vazio, mais vazio que masturbação. Sem transcendência é pura perda de tempo. Não sei o que você pensa, também não quero saber, você põe um salto alto e chuta todo mundo pra escanteio, sem cerimônia. Na sua cabecinha de menina isso é ser forte e independente. Pra mim é só burrice e insegurança. Não é vergonha nem humilhação nenhuma a gente tentar dar o lado mais terno pra alguém. Não é vergonha nem humilhação nenhuma a gente acariciar quem ama. A própria Frida, que você tanto ama, se pintou de mãos dadas consigo mesma, com o coração de fora e seu belo vestido branco. Ela não tinha vergonha de dar o coração, como você, muito pelo contrário. Sei que vai parecer choradeira, mas que se fodam as aparências, pois eu quis criar um mundo inteiro e novo e bom pra nós dois. Eu quis te mostrar as coisas mais bonitas do mundo que moravam dentro de mim e você chutou minha canela com força. Característico. Previsível. Que a sua solidão, ao contrário da minha, seja leve. Você tem seus derivativos: a cerveja, os machos, as festas. Eu não. Gosto de beber, mas gosto demais e não posso. Tenho que viver só com a minha cabeça e essa paisagem. Agora chega, vou trocar os pincéis por uma faca e te arrancar de vez de dentro de mim. Assim que a ferida cicatrizar, e ela vai cicatrizar, vou comprar uns livros e estudar latim e russo. Quero ler Petrônio e Fiódor Dostoiévski. Lucía Lopez nasceu em 1979, é veterinária e escreve ocasionalmente para pequenos jornais do interior do Amapá. Pretende lançar, ainda este ano, um livro de contos sem título definido até o momento. Prefere os bichos aos homens. Não enxerga muito bem.
A
vida é uma máquina de triturar rancores e angústias, as alegrias são
retiradas a fórceps. Você se diz cansado da repetição dos ponteiros do
relógio, a verdade é que os meus dias também são longos e eu me arrasto.
Carrego uma mochila de pedras nas costas, porque assim evito a tentação de
apalpar a tristeza com as mãos. Mas,
diferentemente da maioria das pessoas, os dias sempre siameses não me
incomodam. Nem me importa a previsibilidade dos matemáticos, porque apesar
de toda lógica, eles não podem evitar a perfeição da medida áurea que
esgana o tempo. Também diferente de alguns, jamais deixei de ler um livro
porque conhecia o seu final, ninguém consegue retratar as minúcias e são
exatamente elas que me atraem. Quando
me olhas e achas que tenho orgulho, não se engane. Minha cabeça erguida
não é pretensão, é medo, é refúgio, é fuga dos vôos rasantes dos dragões
que se desprendem de mim, dos trilhos e das máquinas que atravessam o meu
corpo. O
amor são dedos vasculhando na ferida e dói. Às vezes, minha dor são
pássaros negros, de olhos furados e canto triste. Eles são insanos e
cavalgam sem piedade no meu corpo. Sossegue
querido, cada centímetro da minha pele conhece o seu desespero. Relaxe,
hoje é terça, venha e povoe mundos dentro de mim, enquanto as crianças
colhem pipas e ilusões na ventania.
Márcia Barbieri. Formada em
Letras (Português/Francês) pela UNESP, participa do Curso de Mestrado em
Literaturas Africanas na USP. É professora de Língua Portuguesa na Rede
Estadual de Ensino. Ministra aulas particulares de Língua Francesa e faz revisão de textos. Edita
o blogue Minha Vida Não Vale Um
Conto.
bariloche para um mamífero Quando
vê aparecer a mulher gorda na porta da casa, D se lembra da voz macia que,
ao telefone, acertou com ele o aluguel do quarto em Bariloche. Depois de
longas e maldormidas noites em Buenos Aires, lá está ele na entrada do
chalé, léguas distante do rame-rame portenho com pó barato, vinho de graça
e gringas falantes. De pé na varanda, ela acena como uma promessa de
mingau de aveia feito em casa, quente e polvilhado de canela, servido
antes de dormir. Acompanhando
os fiapos de luz que aos poucos atravessam o quarto, D acorda devagar.
Toma café, caminha pela trilha indicada por Laisa e conta exatos 38 passos
até chegar à pequena praia. Passa ali as tardes lendo, tenta não se
lembrar de sua mãe e teme um mergulho na água gelada que escorre ainda em
neve pelas montanhas. Gosta
de voltar ao chalé e encontrar coisas como uma fritada fresca de batata e
cebola no fogão. Descobre uma mulher em Laisa quando ela passa a trazer o
amante e a casa é tomada pelo ruído de grandes e furiosas fodas que
acontecem bem em cima da sua cabeça. A mão que prepara o mingau arranha as
costas e a língua que prova o tempero da fritada se enfia no ouvido do
desconhecido. A
dúvida sobre encarar ou não o mergulho se perde entre os gemidos do casal
e D começa a se assombrar, no escuro, pela imagem dos dois corpos pesados
desabando teto abaixo a esmagar seu tipo frágil. Pela manhã, corre
ofegante em direção à praia e na volta, se agarra a um radinho de pilhas
que rasga boleros mais estridentes do que as molas da cama alheia.
Na
noite antes da partida, a anfitriã se deita sozinha e o chalé silencia,
mas D não pode mais adormecer sem o rádio colado ao travesseiro. Embalado
por delírios em AM, deixa a verdade lhe sorrir em sonho. Nos peitos de
Laila, chupa o mingau, enquanto ela ordena que ele nunca deixe os pés
congelarem na água fria daquele lago escuro.
Maria Lutterbach nasceu em Belo Horizonte e vive em São Paulo. Foi cronista do jornal O Tempo, colunista da revista pocket Mininas e publicou o livro virtual Ziggy Stardust (Mojo Books). É jornalista free-lancer de dia e cuida de outras histórias à noite. Edita o blogue Notas Submersas.
3 contos, 3 poemas a
armadura moderna A
força da vida dói. Ela
acorda cedo, os olhos inchados. Ao se levantar, sente os pés arderem no
chão gelado. Em cada passo até o banheiro seu corpo estremece e sua frio:
o desespero lhe explode os poros, a vida amanhece e a joga em um cotidiano
febril. Não
quer mais essa rotina de mulher moderna cheia de afazeres. Deseja apenas
sua cama e suas tarefas domésticas realizáveis. Sob o chuveiro, imagina
que a água leva pelo ralo toda sua revolta pelo despertar do dia. Ao banho
foi entregue o cargo de filtro entre sua vontade de permanecer dona de
casa e a necessidade de se jogar à vida que a espera na
rua. Ela
resiste, mas depois de lavada com água e espuma, veste-se com o tal
empreendedorismo feminino e finge satisfação o dia
todo. Tudo
recomeça à noite. sessão
matinê Cinema
era bom de terça, depois do almoço. Ia sozinha e podia comer dois potes de
pipoca. Pedia tamanho médio, pois se pedisse pequeno, teria que comprar
três e evidenciaria não só sua solteirice tardia, mas também seu desespero
por ocupar a boca com algo que não viesse de outra
boca. Já
tinha passado da idade para sessões da tarde, mas o horário propiciava sua
conveniente solidão, e ninguém conhecido a veria. Podia sentar nas
poltronas do meio, bem em frente à enorme tela. Conseguia esquecer, por
algumas horas, de quem era. Imaginava-se na pele de tantas atrizes e
personagens que, inevitavelmente, ao final, saía pela porta vestida sob a
sutileza de outros papéis. Assim,
qualquer dor era remediável. O cinema era mesmo bom durante as matinês de
terça, no mesmo horário das consultas que a tentavam fazer
descobrir-se. por
trás de um disfarce Sueli
trabalha no hotel Remanso, na metade da BR-365. Sua mãe também já
trabalhou lá e ensinara à filha que devia impor respeito àqueles homens
sem paradeiro que passavam pelo local. Explicara que eles procuravam por
descanso, chuveiro e, se possível, uma companhia relaxante. E que não
fosse dela! A
garota, desde então, se veste castamente e não sabe olhar nos olhos.
Disfarça, abaixa o olhar, não encara. Quando a mãe se deu conta do sucesso
da boa educação da filha, descansou. Filha minha é exemplo, dizia
orgulhosa. No
restaurante, alguns caminhoneiros perguntam curiosos e excitados pela
garota que deixa as tais fitas de vídeo nos quartos.
Sueli
sabe fingir, mas gosta mesmo é de arrancar a roupa todas as vezes que faz
a arrumação daquelas camas e sente o cheiro daqueles desconhecidos. Leva a
câmera dentro do cesto com lençóis e faz daqueles quartos sujos seu
pequeno estúdio de fantasias. A que mais gosta é pintar as unhas dos pés
de vermelho e se imaginar de pernas ao alto, dentro de uma
boleia. Se
existisse mesmo vida após a morte, a mãe já teria voltado para acabar com
tamanho desgosto. no
final, a droga Se,
no final, a porra é sujeira, de
que vale o prazer? Todo
fim, cara no espelho, e
o diálogo com si mesma: " —
Estúpida!" Porque
eu me faço demente e
aceito o sonho como
único universo
a que pertenço. Mas
não sei andar em nuvens. Se,
no final, a euforia é o vício, de
que vale a droga? Todo
fim, corpo em pedaços, e
na reconstrução para o amor: " —
Seu Cabaço!" (in)
crível Essa
estranha beleza em
racionalizar. Ser
dolorido, mas
ser verdadeiramente. Tocar
sua carne nua, e
saber-te onde,
saber-te quando. Não
me parece mais encantado nosso
mundo. Não
tenho mais aquelas fantasias. Talvez,
a realidade não seja assim tão
boa para
amores insólitos. colombina Tenho
mágoa do mundo. E
não só pelos
amores que perdi ou pelos
filhos que não tive, mas,
talvez, por
todas as batalhas que arrisco. Com
o fundo da língua empurro
essa dor para dentro, para
o fundo. E
na boca, aqui, nessa
boca, simulo,
quem sabe, um sorriso.
Samantha Abreu é de Londrina, PR. Escreve os blogues Alta Intimidade e Mulheres sob Descontrole. Já foi publicada em antologias; tem textos em revistas e sites literários. No entanto, só escreve porque é viciada em fantasias e tem a cabeça povoada por personalidades múltiplas e intimamente reveladas.
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