edição 30
| setembro de
2008
"Tinha resolvido seguir as estrelas. Há muito evitava desvios fortuitos para seguir o seu norte. Rumo ao que ia?, não se sabia. O que importa é que, independente dos dias, sua sombra sumia em direção aos pés da imensa montanha fria, de verde
intenso e mistérios noturnos". -
R.D.S Sua
vida era andar pelo mundo. Por aqui... acolá. Trombando, empurrando pedras
e flores, desgostos e amores. Era o seu modo de enfrentar dores. Parava
aqui, tomava um. Logo ali, mais uma boca, mais um olhar. Era mais um corpo
todo. E mais um pedaço-estilhaço que fica na calçada — mas era bem paga.
Em
outros tempos, a voz de Holanda, ainda menina, fazia logo de manhãzinha
ecoar pelo quarto um bom-dia. Cheiro de café e pães quentes, de um salto
da cama já se ia para o banheiro, cuidar dos longos cabelos negros da
noite e do rosto meigo repletos de lampejos. E assim as manhãs se abriam
em sonhos despejados sobre as carteiras de madeira velhas da escolinha do
lugarejo, a única. Aquilo era o mundo para aquele corpo petit, mais osso que carne, mais
sonhos que pedra, um ser humano como outro qualquer, uma formação de carne
e osso, que aprisionava um universo de sonhos e que a resguardava dos dias
claros demais. Assim
sempre foi. Irmã de José — filhos sabe-se lá de quem — o mais velho e
responsável pelos afazeres domésticos e pelo sustento. Tinha o Zé como uma
figura mítica que reunia no corpo de homem feito a atenção de uma mãe e o
modo austero de um pai. E era assim; chegava, beijava Holanda, pães no
armário, cheiro da carne no fogo, o sorriso companheiro e a noite se abria
para as vicissitudes da existência. Era
madrugada, o frio cortava a pele, as horas adiantadas, e Holanda num
sobressalto, pés no chão, passo apressado, um vulto pela janela, e a
certeza tão indesejada das gentes. Aquilo que até então era apenas dos
outros agora era de Holanda. A morte. A manhã encerrou aquela noite com um
sol desses de que queimar a pele e arder os olhos. Naquele dia, muitos
diziam sentir saindo da terra um vapor quente de cheiro eucaliptado. "É
uma coisa agridoce!". Para
Holanda, daquele dia, apenas o que era desatino e falta
ficou. Com
os anos que aos poucos vinham, ela redescobriu coisas como um amanhecer de
sol ameno, sem praia, com comidas simples, sem cheiros verdes, sem o Zé e
com lembranças dos sonhos de sorrisos-brilhos como os dos tempos do
orfanato. Passou
a achar bem sair nas noites e andar sem rumo. Era o desejo de debelar os
dias que a levava perambular por vielas estreitas. Aos poucos, entregou-se
às incertezas das esquinas. Era apenas uma forma de levar ou velar a vida.
Com chicotadas domou os dias. Tudo se tornou tão normal. Viver era
simples. Naquela
manhã, acordou, pegou o cigarro, colocou-o na boca, andou a passos lentos
rumo à janela, olhou o céu tingido de azul — apesar de tudo — e deu uma
enorme tragada. Só então, percebeu que o fumo estava apagado, não tinha
fogo, ainda não fumava. Num gesto sereno, se acostou na cama e começou a
ouvir músicas, sons, veredictos, ofensas, juras de amor, urros de prazer
forçado, sorrisos, gargalhadas de escárnio e o som mudo da noite. Os olhos
choveram. Naquele
dia, Holanda, mais uma vez, não dormiu. E nem fez falta, pois agora tinha
a certeza das incertezas do amanhã. Restavam apenas carne e sonhos.
Constança Serena nasceu em 1976, é dona de casa, prefere os dias
nublados e poesia. Não tem
pretensões literárias, apenas libertárias. É do
signo de Leão.
não havia noivos no meu quintal Em
algumas madrugadas, acordava no seio da noite, e vagava insone pela casa.
Abria a porta do fundo tateando os muros, arrastando o nariz para os
cheiros arraigados no concreto — o muro de concreto que sempre me separou
das gentes lá fora. Cega, surda, sandia e outra, oculta entre o tempo e a
verdade. A pele lambia os cheiros e eu respirava a noite. O cheiro verde
da erva doce invadindo os meus sentidos e desatando minhas armas, me
tornando mais acariciável, menos pronta para o ataque, a defesa. O alumã
amargo mascado, mascado entre pensamentos, entre palavras vindas da
África, enquanto o corpo já se entregava aos ritmos que atravessavam o
oceano, cruzavam corpos e almas ligados àquela mulher da noite, dada aos
impulsos do sono, do transe solitário cercado de presenças. Da hortelã,
cujo cheiro sempre voa, adquiria na alma a leveza para o encontro com a
suave paz, entoada pela lira de Safo nua abraçando com o corpo, braços e
pernas, o tronco jovem da aroeira, carregada de Pãs com flautas, enquanto
ninfas apareciam e desapareciam para doces carícias na mulher que, já
deitada, entregava-se aos deuses e às deusas, sem protestos. Os cheiros
amarelos das romãs que apodreciam diante da minha sede de justiça, da
minha garganta seca de homem, pois enquanto engolia os caroços da fruta, o
corpo parecia ofertar-se ao parto, à amamentação, à concepção de um filho.
E ela, Ayán, ela assistia ao cheiro da romã tomando os seus ovários, seu
útero revigorado, rejuvenescido para o momento. Mas era levada pelo cheiro
vermelho das pitangas maduras, o cheiro das folhas da pitangueira, o
cheiro da invasão das pimentas entre os meus dedos no ardor das delícias,
das lambidas largas pela pele longa da pimenta binga-de-macaco, a pele
redonda das pimentas de cheiro, pelo encantamento vermelho das malaguetas.
Em busca, não de um homem, mas de uma realização espiritual e física, de
uma experiência mágica, que transcendesse o espaço e tornasse as horas
voluptuosas, sagradas e eternas. Enfim, de um homem à espreita de mim e
dos meus mistérios, meus silêncios, capaz de ouvir a minha solidão,
observar a textura do meu silêncio, ouvir os atabaques que me regem a
vida. Um homem que me quisesse nuinha como eu estava, que me quisesse
auscultar a alma, e, agora sim, devastar o meu corpo virgem de quem nunca
esteve com outros dedos, senão os meus próprios, a me mexerem, em
rebuliço, as carnes. A minha carne. Os meus ossos envelheciam sem o embate
com outro corpo. Mas agora era a festa e a
reconciliação. Eu,
Ayán, libidinosamente transitava pela terra insone, pelos pântanos da fome
da carne velha, pelas bromélias trazidas pelo vento para enfeitar a frieza
dos meus muros de cimento. A chuva me freqüentava nessas madrugadas e me
lambia o corpo inteiro, lambuzado na terra preta do quintal, açoitada pela
ventania que dialogava com as vozes que saíam da minha boca sem que eu
fizesse gesto para. E o preto do meu corpo de mulher negra, coberto pelo
barro dos despenhadeiros da infância, pelos labirintos que desafiam a
razão de uma mulher ajuizada, respeitada. Os labirintos, e os ditirambos,
e os batuques, e os evoés que saíam da minha boca, enquanto o meu corpo
deixava-se ir na dança que nascia nos pés e no coração. Eu dançava num
transe doido, sorridente e de olhos semi-abertos, eu dançava. E Dioniso e
Exu e Baco me acompanhavam na dança orgíaca, movendo os tempos. As batidas
cardíacas, eram tambores ecoando pelo terreiro, num rum, rumpi e lê,
dentro de mim e fora de mim, movendo o mundo, o meu país e a minha rua,
enquanto eu dançava e batia nas minhas ancas, no meu couro para dele
extrair a música, o rito, o canto. Ao
longe, as luzes da cidade me diziam que eu devia deixar a minha terra, o
meu quintal e cruzar encruzilhadas, seguir novos rumos, ofertar-me aos
deuses. Oráculos, templos e Irokos me acenavam feéricas sensações na alma
que não passavam. Eram sonhos, certamente. Mas em algumas manhãs, acordei
metida na terra segurando romãs, sementes ainda na boca. E as romãs
traziam sensações de beijos, beijos em bocas de anjos, demônios, homens,
entidades que desafiavam a minha sensatez. Envelhecendo
sem machos no meu corpo, sem despertar nos homens um desejo sequer.
Despertava com o cheiro que saía de mim nas noites em que os óvulos todos
resolviam deslocar as minhas trompas, anunciando as trombetas do inferno
de que o desejo ainda havia e me habitava, e me queria viva em outras
carnes. Ainda mulher, apesar do tempo, apesar de Ayán sem filhos, apesar
da velhice que me tomava. Apesar de, apesar do, apesar
das. —
Noivos não havia no meu quintal. Nem dentro das minhas carnes, nem no limo
dos meus ossos. Às
vezes buscava-os escondidos entre os lençóis, dentro das minhas pernas,
acendia lanternas à noite tentando localizar algum sinal de noivo entre as
peças arrumadas no velho baú, herança única de tia Caquinha, a primeira
noiva abandonada da família, de quem acabei herdando, não apenas as
colchas brancas, as toalhas de mesa, as camisolas de renda inglesa, as
colchas de retalhos tramadas em crochê, e os calçolões furados para o
casório. Mas herdara também as velhas receitas deixadas em um manuscrito,
para o ofício de prender maridos, através de bebidas retiradas de águas
advindas das partes baixas, da sangria do mês, da orelha cortada para uma
sopa infalível na arte de reacender maridos apagados; insetos em pó,
objetos pessoais, delírios de simpatias de banhos com ervas sagradas e
incensos seguros para tornar-se sedutora e irresistível. Tudo em vão! Ela precisava da parte que se
perdeu da caderneta da velha tia abandonada: uma receita para pegar
marido, pegar rapaz, pegar, antes de mais nada. —
Ia esquecendo de contar dos 33 alfinetes para espetar nos olhos do um sapo
para evitar traição. Mas
não encontrava o que me conduzisse ao outro, ao encontro. Estava tudo bem,
tudo certo. Eu era uma moça velha, virgem, que não casara, não tivera
filhos e estava secando as carnes, secando os ossos, secando a esperança
que nunca existiu dentro de mim. O
meu corpo já apresentava sinais da velhice, pentelhos brancos anunciavam a
rendição completa ao tempo, e a queda dos seios era definitiva para o meu
sério sorriso de aceitação. O rosto, diante do espelho, começava a ser um
desconhecido com tantos vincos que apareceram de ontem pra hoje, de um dia
para o outro, no meu rosto. Erupções tomavam a minha pele, expurgando o
meu aprisionamento dentro do meu próprio corpo, encarcerada era eu, dentro
do meu desejo. Dermatologista! Que nada! Um homem, apenas um homem. Não
precisaria, nas atuais circunstâncias, nem ser muito bonito, nem muito
delicado, nem muito interessante, nem muito sedutor, nem muito jovem, mas
que fosse, pelo menos um pouquinho de tudo isso, eu não abriria mão! Nem
que eu tivesse que morrer virgem! Abriu
a janela da sala, olhou a rua e olhando para o chumbo nos céus, pediu aos
orixás e às deusas e deuses todos, coragem para sair de casa, para
enfrentar o mundo, o turbilhão das buzinas, o assédio público dos homens
às mulheres, inclusive a ela — mas aquilo não era desejo, nem sedução, era
desacato, desrespeito, agressão — longe das manifestações eróticas com as
quais sempre sonhara. Lembrou do sonho que tivera na noite passada, em
muitas madrugadas, e respirou, respirou e sentiu a sensação que ficara na
pele, nos ossos, agora mais duros, mais resistentes. A dança deixara uma
dor de vida nos músculos, a carne estava mais viva e na alma, os cânticos
ecoavam ainda fortemente. A sensação duraria meses. —
Protejam a mulher que eu pari para ser ofertada ao mundo das escritoras
suicidas, protejam o seu caminho, a sua sina, as suas carnes e os seus
ossos sagrados pelo desejo, pela força da palavra, pelo grito da
existência. Permitam-me conseguir narrar a sua história que se faz,
enquanto como chocolate para conseguir sobreviver aos meus próprios
impropérios, aos meus sofreres inventados e aos reais desatinos de mulher
que alimento em mim. Proteja a minha criação e as mulheres que se dão à
feitura de vidas que se vão de dentro delas para
sempre. O
cabelo penteado com um lenço colorido, e solto atrás, bem cheio. Leite de rosas nas axilas e um
perfume da avon que ela adorava: aquele do vidro todo quadriculado e
transparente. Passou um pouco de pó compacto no rosto e concentrou-se como
uma atriz faz antes de entrar em cena. Deixou-se consigo mesma, abstraindo
até mesmo as esperanças, abstraindo as dores. Deixou-se ficar quieta
diante da penteadeira de madeira escura e espelho com um grau que
deformava a imagem, e era assim que ela sempre se via, deformada pelo
espelho. O grau intensificava e deformava a sua impressão de si mesma. A
rua estava insuportavelmente igual, eram as mesmas pessoas. O velho Chico,
fazendo a vigilância dos escândalos conjugais, dona Alzira benzendo contra
mau-olhado, a filharada das mulheres, os botecos já com os seus primeiros
bêbados do dia, e a Esquina. Ao dobrar a Esquina, não dobrou. Ficou ali mesmo. Uma criatura do sexo oposto, um homem, estava já e somente diante dela, transitando em torno do seu corpo, levitando em torno da sua nuca, alma, acalmando as suas ilhargas. Era um desmaio. Era uma absorção do Tempo, uma pausa para os ponteiros, um êxtase de olhares. Ela sempre desmaiaria assim ao vê-lo e, isso, se ficasse só nisso, e assim poderia ser, afinal, nem sempre temos a sorte de morar, viver, casar com o único homem no mundo que nos faz desmaiar, a ponto de as pernas cederem, a ponto de o ar faltar e por um minuto você viver uma eternidade e perder os sentidos com muito medo de que os transeuntes, os circunstantes, percebam a sua leseira, a sua moleira das carnes e do juízo, o seu êxtase urbano, o seu paraíso repentino em meio à multidão. Sorte? Sortilégio? Feitiço? Poderia ser que outros surgissem e a tomassem como mulher e, paulatinamente, cada um, com o passar dos anos, retirasse os vestígios de seu hímen. Mas com aquele homem, ela teria sempre, ao simples toque das suas mãos, ao simples cruzar de olhares, aquela precipitação dos sentidos, a vertigem das horas, o amolecer repentino das carnes e o desaparecimento completo dos ossos. Talvez fosse um Exu/Hermes marcando com ela um encontro na encruzilhada. Isso é coisa de outros tempos, coisas que não podem ser ditas.
Rita Santana (Ilhéus-BA, 22/08/1969). Atriz, escritora, professora licenciada em Letras pela UESC. Ganhou o Braskem de Literatura para autores inéditos em 2004, com o livro de contos Tramela, pela Fundação Casa de Jorge Amado. Em 2005, participou da coletânea de prosa e poesia Mão Cheia com quatro escritoras baianas. Em 2006, publicou Tratado das Veias, livro de poesia do selo As Letras da Bahia. Vive em Lauro de Freitas, Bahia.
morra
outro dia Estava
eu a olhar uma cena que me parecia conveniente: alguém, numa esquina
próxima, fora atropelada. Minha cabeça matutava avidamente o pensamento da
pessoa quando morrera ou sofrera o atentado. Consegui calcular os efêmeros
sentimentos humanos ao redor. Eu me aproximei, como quem não queria nada
em especial, e foi então que dei de cara, pela primeira vez, com a morte.
Ela, vestida em seu manto negro, olhava para aquela criatura estendida no
chão. Não por sua face, que não se via, mas por sua expressão, vi o que
era reclusão à vida. Cabeça abaixada, mesmo com a postura reta, como se
julgasse um condenado a ir para o céu ou inferno. Fiquei estática,
pensando no que eu deveria ter feito na manhã para estar tão alucinada a
ponto de ver a própria morte em pessoa. Foi em um instante desses que ela
ergueu sua cabeça e fitou todos ao redor. O paramédico examinava a ferida
e sentia os ossos expostos. Por algum motivo, aquilo me excitava. A morte
em si pode ser muito valorosa quando você tem o pessimismo em seu encalço.
E estava eu lá, simples ser ilusório, a ver tudo como se estivesse num
palco observando uma apresentação, uma encenação da morte. Gelei com a
virada de cara dela, e durante os mínimos segundos em que me fitara,
senti-me realmente morta naquele instante. Não senti sequer a minha pele.
E constatei, no desencadear da situação, que a morte está na vida,
estando-se vivo... ou
não.
Virgínia de Castro (Rio de Janeiro, 1980). Viúva aos 28 anos de idade, busca na orla de Copacabana — atual residência — a inspiração para o que lhe restou da vida. Escritora reclusa. Vive a divagar sobre o sentido da vida através de cartas, ensaios e inícios de romances que vem escrevendo em suas caminhadas diárias.
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